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FRANÇOIS VARILLON
CRER PARA VIVER
Conferências sobre os
principais pontos da fé
cristã
Compilação
Bernard Housset
Tradução
Yolanda Seidel Toledo
Edições Loyola
�PREFÁCIO
Padre Varillon: O homem, o religioso, o escritor
Há livros cujo autor não é necessário conhecer. E há outros dos quais a compreensão se esclarece pelo que se sabe a
respeito daquele que os concebeu. Talvez isto seja ainda mais verdadeiro no caso dos escritos póstumos, cujo autor já
não pode explicar suas intenções. É o caso deste livro: seu texto foi estabelecido após a morte do Pe. Varillon,
conforme notas tomadas por seus ouvintes. Julgou o editor que a leitura destas conferencias deveria ser precedida por
alguns comentários sobre o homem, o religioso, o escritor, destinados àqueles que não tiveram ocasião de se
aproximar e ouvir o conferencista.
E solicitaram a um amigo que delineasse o retrato do Pe. Varillon. Tivera o privilégio, partilhado com muitos outros,
de o haver conhecido desde longa data, mais de um terço de século.
Antes de o encontrar, havia lido alguns de seus artigos de crítica literária que ele, jovem jesuíta, havia publicado na
revista Études.
Conheci-o quando era capelão geral adjunto da ACJF, e daí em diante creio poder afirmar que nossos caminhos nunca
mais se separaram; foram inumeráveis as ocasiões em que trabalhamos juntos. Pe. Varillon sempre respondeu aos
meus convites para sessões ou semanas no centro de Intelectuais Católicos. Ele foi, tornou-se o amigo de nossa casa e
de nossos filhos. Entrou para a nossa vida.
Assim, durante um quarto de século, foi um de nossos amigos mais íntimos, o que não me torna mais fácil a tarefa: é
difícil escapar à subjetividade que, inevitavelmente, afeta as relações pessoais e se liga às circunstâncias em que tais
relações foram estabelecidas. Além disso, mais que uma análise, é um testemunho que esperam de mim. E se, na
conclusão, reservo-me a tentativa de, como historiador, mensurar quais formam o seu papel e a sua influência, o
essencial será m testemunho sobre o homem.
Dois traços complicam a tarefa do retratista. Mas eles são como as primeiras pinceladas traçadas na tela.
Primeiro a extrema discrição, em tudo o que lhe tocava pessoalmente. Pouco falava de si. Era relativamente avaro para
confidências e era preciso insistir para arrancar-lhe durante os derradeiros anos, algumas indicações do seu estado de
saúde, sobre o que chamava de sua “fragilidade”. Charles Ehlinger, que teve a graça de manter longas conversas com
ele, algumas semanas antes de sua morte, declarou no belíssimo artigo que lhe consagrou no dia seguinte ao de seu
desaparecimento: “Não fala de si, a não ser com humor e pudor”. Pudor, evidente, mas é preciso qualificá-lo segundo
o registro espiritual: sua discrição e sua reserva eram a expressão do despojamento e do total desinteresse. François
Varillon dedicava-se inteiramente aos outros, à sua tarefa, à sua missão.
Todos os que dele se aproximavam impressionavam-se, comoviam-se com a atenção que lhes concedia: tomava parte
em suas preocupações e sabia encontrar palavras que o exprimissem, oralmente ou por escrito. ]As idéias ocupavam
grande lugar em sua existência.
Dedicava, igualmente, grandes cuidados aos encargos pelos quais era responsável, como por exemplo, à casa de
Châtelard, durante o tempo em que a dirigiu.
Quanto à segunda dificuldade, aqueles que não se aproximaram diretamente dele a conhecem, e tão bem quanto os
amigos íntimos: era a excepcional riqueza de sua personalidade, e esta expressão não me parece excessiva. De que
modo captar e reunir aspectos tão diversos? Seus interesses eram os mais variados. François Varillon interessava-se
por quase tudo: pelo movimento de idéias, pelas últimas criações literárias, por musica, pela poesia, pelo cinema. Esta
curiosidade não o desviava da atualidade: interessava-se pelos acontecimentos e pela política. Acompanhara com
simpatia a experiência de Pierre Mendès France, e a lembrança dele provocava-lhe nostalgia. Interessava-se pela
história em processo. Eram igualmente diversos seus talentos e aptidões: ao religioso e ao escritor seria necessário
acrescentar o “musico”, não apenas o melômano, mas o homem que executava ao piano partituras a quatro mãos com
Urs Von Balthasar, no tempo de Fourvière. De para com o conferencista , o filósofo, o teólogo, adivinhava-se a
unidade profunda da pessoa; nunca transmitira a impressão de uma personalidade fragmentada. A unidade procedia de
uma inspiração unificadora: a do padre, a do homem de Deus, a do homem em busca de Deus, que o anunciava aos
outros.
Começarei pelo aspecto sob o qual, em 1974, o Grande Prêmio Católico de Literatura chamou a atenção do grande
público para um livro que mais derivava da cultura espiritual do que da literatura: L’Humilité de Dieu. François
Varillon, escritor, sentira desde a adolescência um interesse muito vivo pela expressão escrita. Toda sua vida,
interessou-se pela literatura. Jovem jesuíta, ensinou literatura em Mongré e em Sainte-Helène. Recordei os seus
estudos críticos que apareceram em Études, pelos quais seu nome começou a tornar-se conhecido no período anteguerra. Quase ao fim da vida, exerceu uma crítica literária oral nas conferências mensais que dava em Lião, Genebra e
�Paris, nas quais fazia uma síntese da atualidade, lendo todo mês, cinco, seis, sete romances ou ensaios, exercendo um
ministério que o aproxima de Brémond ou do Pe. Blanchet.
Sua atuação mais característica é, com certeza, a de comentador e editor de Claudel. Jovem estudante, ele descobrira
Claudel nos anos vinte, no decorrer de uma época em que os seguidores de Claudel não eram muitos. O contato com
Claudel foi para ele uma iluminação, contemporânea ao nascimento de sua vocação e à sua decisão de entrar para a
Companhia de Jesus. Com Claudel, havia um sopro de gênio poético, uma visão católica do mundo, a beleza da
criação, o drama da Redenção, uma inspiração profundamente religiosa à qual ele próprio se harmonizara. Mais tarde,
o Pe. Varillon conheceu pessoalmente Claudel em Brangues, dele recebendo a missão de editar, após a sua morte, o
Diário que escrevera durante anos. À preparação desta edição, François Varillon – seus amigos todos o testemunharam
– consagrou, durante anos, todos os seus instantes disponíveis. Apenas aqueles que passaram pela experiência desse
tipo de edição crítica podem avaliar o que isto exigiu dele, o que representou, como soma de trabalho e de paciente
pesquisa, o decifrar de um manuscrito, o estabelecimento de um texto, a elucidação de citações. Para outros, teria sido
suficiente a edição do Diário para serem reputados como eruditos. Mas a preocupação de François Varillon em
proporcionar um instrumento para uma melhor compreensão do autor de Soulier de satin, nos valeu um Claudel na
coleção “Les écrivains devant Dieu”.
Esta fidelidade a Claudel, da qual jamais se afastou durante cinqüenta anos de existência, a contar da descoberta
inicial, e que lhe punha espontaneamente nos lábios uma ou outra citação de Claudel, não era exclusiva: O Padre
Varillon não era homem de um só escritor. Ninguém era menos sectário que ele. E isso em todos os âmbitos. Não só
no das admirações literária. Não empregarei o termo “ecletismo” que geralmente assume uma conotação relativista:
direi antes ecumenismo.
Havia em seus gostos culturais, em suas curiosidades literárias e em suas simpatias artísticas um extraordinário
ecumenismo; na musica, amava igualmente Bach e Shoenberg, reconciliava Mozart e Wagner... mas com uma dúvida:
exprobrava a si próprio o prazer que experimentava em ouvir Wagner, que achava um pouco suspeito, como Mauriac
em “um gole de veneno”, recolhido em seu Diário.
O leque de suas predileções esboça configurações intelectuais inesperadas. Assim o lugar de Fénelon talvez
surpreenda, por ele ser tão diferente de Claudel. Havia para isso razoes de ordem espiritual: em Fénelon, fora o
místico do puro amor que seduzira o Pe. Varillon. Assim definia ele o que chamava “o milagre feneloniano”: “O
milagre feneloniano reside no prodigioso contraste entre a densidade espiritual da coisa expressa e a harmoniosa
facilidade da expressão”. E naquele artigo que sempre menciono, publicado no dia que se seguiu à morte do Pe.
Varillon, Charles Ehlinger prosseguia: “Não é este, igualmente, o milagre de Varillon?”, e dava a palavra a François
Varillon, que dizia de Fénelon: “Filósofo, teólogo, humanistas, poeta... um homem completo, na verdade”, e
acrescentava: “tudo isto e mais: acrescente-se a música, e o perfil não seria o de François Varillon?”
Seguramente havia afinidades entre o arcebispo de Cambrai e o jesuíta lionês. François Varillon contribuiu, num
pequeno volume publicado na coleção “Maitres Spirituels”, intitulado Fénelon et le pur amour, para nos restituir o
verdadeiro Fénelon, liberto das lendas que lhe obscurecem o rosto e atrapalham a memória.
François Varillon não era escritor apenas por interessar-se por escritores. Ele o era no pleno sentido da palavra, atento
ao número da frase, saboreando a música das palavras, sensível à precisão de um epíteto, ao peso de um termo, ao
modelar imagens, buscando incansavelmente, por si mesmo, a expressão mais justa, mais concisa, mas clara,
lapidando seus textos escritos e pronunciamentos, pois redigia todas as suas conferências, sem comprazer-se com
preciosismos e artifícios literários, tendendo a uma fusão tão íntima quanto possível do pensamento com a expressão.
Que, pela fé nestas anotações e pela evocação do escritor, aqueles que não tiveram a sorte de aproximar-se dele e o
privilégio de ouvi-lo não imaginem um desses padres-homens-de-letras, um desses eclesiásticos belos espíritos, que
freqüentam saraus literários e reduzem o próprio ministério à companhia de letrados. François Varillon era, primeiro,
essencialmente um padre, um religioso, um homem de Deus. Ele jamais concebeu a literatura como divertimento. Ela
jamais o desviou de seu ministério, assim como ele não a desviou da finalidade que lhe é própria, para utilizá-la como
instrumento apologético. Conformava-se à sua visão de mundo ou à sua teologia das realidade terrestres o respeito à
distinção entre as ordens de realidade e o levar em conta a especialidade das atividades. Era, antes de tudo, um homem
de Deus: tudo se ordenava e gravitava em torno do único necessário.
É chegado o momento de tentar definir esta forma de ministério original que as circunstâncias, a vocação e as
disposições pessoais – não serão as circunstancias o modo de Deus agir nas existências individuais? – lhe designaram.
Um ministério que associava, em raro equilíbrio, palavra e ação, ensinamento e animação. A palavra inspirava a ação,
não a ação direta, que nele era rara -, quando pronunciada para aqueles que, leigos ou clérigos, estavam engajados na
ação – o que muito bem ilustra o termo “capelão”, título de François Varillon em diversas instituições da Igreja, a
ACJF e a MICIAC. Um dos traços originais do catolicismo Frances das décadas de 1930-1970 foi a aparição e o
desenvolvimento de um ministério de capelania, isto é, um ministério de proximidade, de influência; de certo modo,
uma magistratura moral entre homens carregados de responsabilidades e engajados em tarefas da Igreja ou tarefas
cívicas.
�François Varillon também animou grupos de casais, fundados na vontade de viver em plenitude o amor conjugal e a
graça do sacramento do matrimonio; exerceu um ministério semelhante ao de seu condiscípulo Henri Caffarel,
fundador das Equipes de Nossa Senhora. Os cinco verbos – dar, perdoar, oferecer, pedir e receber, propostos a estes
casais definiam uma espiritualidade de leigos. Ele tomou parte na renovação, que se tornou uma das linhas de força da
do catolicismo francês de meados do século XX.
Ao iniciar-se a ocupação, achava-se ele na origem do primeiro Cahier de témoignage chrétien. Foi ele quem, havendo
recebido a confidência dos temores de alguns militantes, foi ao encontro do Pe. Chaillet, alertou-o e deu origem ao
primeiro dos Cahiers, escrito por Gaston Fessar, France, prends garde de perdre ton ame...
Entre 1941 e 1944, associou-se ao grupo de “teólogos sem cátedra”, que teve tão destacado papel na formação dos
católicos franceses, defrontados com os problemas e dificuldades da guerra. Foi acima de tudo importante o papel que
ele desempenhou entre os movimentos da juventude da Ação Católica especializada, durante uns dez anos , como
capelão geral adjunto da ACJF, de 1945 até a desaparição desta grande associação, em 1956.
Ele gostava de dizer que esses anos foram para ele uma incomparável experiência: este jesuíta de cerca de quarenta
anos descobrir ou tomara consciência de todo um conjunto de problemas que marcaram profundamente sua visão do
mundo e da relação entre o Evangelho e o século. Permaneceu ligado a esta experiência durante toda a vida e fiel, até
seu último dia, às amizades nascidas naquele tempo.
É difícil avaliar sua contribuição, motivada por uma experiência coletiva. Mas seja permitido a quem, durante anos e
cotidianamente, o acompanhou afirmar aqui: foi considerável.
Ele associou-se, com abnegação e desinteresse, a uma pesquisa comum empreendida por leigos e padres, visando unir
ação e fé, levando avante o aprofundamento espiritual e o comprometimento na vida.
Jamais houve, no pensamento ou na prática de François Varillon, a mínima dissociação entre o que hoje às vezes se
chama o horizontal e o vertical. Uniam-se ambos e articulavam-se profundamente, situando-se sua intervenção
precisamente na junção de ambos; e com uma discrição e humildade que, aliás partilhava com a maioria de seus
confrades jesuítas; ninguém era menos clerical que ele Acreditava profundamente na necessidade de formar cristãos
adultos, homens responsáveis, e que não havia outra pedagogia – termo que não empregava com freqüência, mas cuja
realidade lhe era familiar – senão a de incitar à aceitação das responsabilidade. Ele ouvia, recordava a significação, a
bondade, a inspiração para a ação e dirigia a busca de Deus.
Em parte,foi por ocasião desta experiência que foi levado a se interrogar sobre o modo de anunciar Deus, de dar a
conhecer sua palavra aos ouvintes de nosso tempo.
Em relação a esta época, pungiam-no duas inquietações, e duas exigências o motivaram, sendo estas o corolário
daquelas. A primeira, ser compreendido por todos, acessível a todos, encontrar uma linguagem que lhe permitisse
estar em pé de igualdade com os mais variados ouvintes. Eu tive a experiência da diversidade desses ouvintes: eu o vi,
eu o ouvi dirigir-se a militantes sindicalistas, engenheiros, trabalhadores rurais minimamente instruídos e, em todas
essas circunstancias, desenvolvia uma pedagogia maravilhosamente eficaz, por ser despojada e atenta aos outros. Esta
preocupação o levou a elaborar, primeiro em colaboração com Pe. Congar, as fichas de cultura religiosa, que dariam
origem aos Élements de doctrine chrétienne retomados mais tarde na coleção “Livre de Vie”.
A segunda inquietação do pe. Varillon era de origem propriamente intelectual: é bastante raro que o mesmo homem
proponha a si próprio o problema a audiência popular e o do rigor intelectual, tentando não sacrificar nem um nem o
outro.
O Padre Varillon foi dos primeiros – não direi o primeiro, porque Henri de Lubac e Gaston Fressar lhe haviam aberto
o caminho – a levar a sério a descrença moderna; a levar em conta – precisamente sob a influência do Pe. De Lubac, a
quem dedicava uma deferente admiração – o ateísmo, a recusa à alienação que, aos olhos de muitos, a crença em Deus
acarretava ao homem, e a recusa de, como ele dizia, “um Deus jupteriano”. Reconhecia o que havia de legítimo na
vontade do homem de ser autônomo e, desde o momento em que despertara esta inquietação até seu último dia, jamais
deixou de ler os filósofos, antigos e modernos, Hegel, Nietzsche ou Marx, e os filósofos da suspeita, Sartre e os
existencialistas.
Tentava elaborar respostas no mesmo nível de reflexão e rigor intelectual que as contestações opostas ao cristianismo.
Estava profundamente convicto da necessidade de a |Igreja e os cristãos ouvirem as interrogações propostas pela
inteligência contemporânea e de para elas encontrar respostas apropriadas. Convicto da excelência do esforço
intelectual, não era dos que acham viável uma economia de reflexão, ou que se possa passar sem transição de uma
experiência prática para a profundidade espiritual. O fideísmo era para ele temível ameaça, como, aliás, o eram todos
os “ismos”. Em sua perspectiva, a mediação da inteligência era uma etapa indispensável. Não que haja uma filosófica
cristã no seio do Evangelho, mas a atividade filosófica é um ponto de passagem obrigatório, uma etapa para toda
cultura religiosa. E ele próprio unia reflexão filosófica e diligência teológica, e disso melhor nos damos conta com a
publicação de suas duas últimas obras.
A respeito da relação entre a inteligência e a fé, da reflexão teológica e da enunciação dogmática, o Pe. Varillon
convencera-se da impossibilidade de falar sobre Deus de modo adequado; quanto a este ponto, ele foi um precursor,
ao mesmo tempo avançado em relação ao seu tempo e de acordo com ele. Foi dos primeiros a denunciar a imprecisão,
�a vagueza de certas formulações, o perigo das aproximações. Recordo-me de o ter ouvido, desde 1943, levantar
imagens errôneas, alertar contra as definições demasiado escolares de uma catequese clássica, notadamente sobre os
tributos de Deus. Nem por isso estava menos convencido de que era necessário falar de Deus, embora seja impossível
fazê-lo com exatidão. Falar de Deus, para ele, não era simplesmente um dever de estado, mas uma necessidade de
falar daquele por quem vivia, com quem vivia, que era princípio de sua ação ou, para repetir uma fórmula certamente
não esquecida por nenhum dos que a ouviram, “ a iniciativa das nossas iniciativas”. Cito o Pe. Varillon em seu livro
L’humilité de Dieu: “É difícil falar de Deus com justeza, mas é preciso fazê-lo. Não saber falar de Deus aos outros,
quando dele falamos a nós mesmos sem cessar, que amargura!”
Não opunha tampouco, o anunciar Deus à ação no mundo. Reconciliava o vertical e o horizontal, e ser-me-á permitido
citá-lo mais uma vez: “Efetivamente, é preciso mudar de vida. Ma nem por isso deve-se renunciar a falar de Deus.
Mudar de vida, o melhor possível. Falar de Deus, o menos mal”
A preocupação de falar de Deus e de destacar a visão que dele temos das formulações excessivamente
antropomórficas, que são insulto à transcendência divina, levaram-no a redigir um Abrégé de La foi, publicado em
Études em 1967, ao qual atribuía grande importância. Tentara nele resumir o que era “o essencial do essencial”,
segundo sua expressão. A preocupação de responder às interrogações do mundo contemporâneo e de oferecer uma
resposta apropriada a suas exigências e aspirações levara-o a exercer um ministério da palavra original, que absorveu
totalmente os seus últimos dez anos de existência. Ministério original, porque diferente da pregação tradicional. Não
que se desinteressasse desta: publicou em colaboração com o Pe. Michonneuau, uma obra sobre a pregação. Mas
criou, de certo modo, um novo gênero, que associava a reflexão a estrita referencia à Escritura, o enunciado das
verdades essenciais, o diálogo com o pensamento contemporâneo. Para falar em termos claudelianos, suas
conferencias doutrinais solicitavam, simultaneamente, animus e anima; não era uma pregação espiritual, ou uma
exposição doutrinária, era ambas as coisas em íntima e estreita síntese. O sentimento da urgência de um tal ministério
conduziu o Pe. Varillon a responder aos inumeráveis apelos do público parisiense e do interior.
Em Paris, escolhera morar em Notre-Dame de Belleville, onde se dirigia a um auditório popular e operário. E dirigiase, igualmente, aos domingos pela manhã ao público da alta burguesia, no quadro do agrupamento diocesano da Ação
Católica. E também nos subúrbios parisienses (uma das últimas conferencias que dele ouvi realizou-se em Viroflay),
no interior, em quinze ou vinte cidades do sudeste e do sudoeste, nos últimos anos. Seu programa era estritamente
planejado; ele contava, a gracejar, que lhe acontecia passar de um trem para outro e de dormir em dezoito camas
diferentes num mesmo mês, a despeito de sua saúde que, em várias ocasiões, causava graves inquietações aos que lhe
eram próximos.
As conferências do Pe. Varillon devoravam-lhe o tempo, pois todos os anos ele as renovava. Raramente vi uma pessoa
a tal ponto preocupada com o enriquecimento de sua reflexão e que incorporasse em seus ensinamentos, ano após ano,
suas últimas leituras e reflexões. Quando ele permanecia em Châtelard, era para pregar retiros, exercícios espirituais e
sessões de formação permanente.
Possuía um real talento de conferencista, nada fácil de definir. Quem o ouvisse uma vez jamais esqueceria aquela voz
grave, a dicção, que destacava as palavras e sublinhava as idéias, a elocução, valorizadora das idéias e isentas de
truques de oratória, a não ser o da expressão, sempre e exclusivamente a serviço de um texto denso, subordinado ao
anúncio do essencial.
Alguns temas essenciais, constantemente retomados e infinitamente renovados, no tocante à expressão, retornam
constantemente nas conferencias do Pe. Varillon. Embora não se prestem a resumos, enumerarei aqui alguns dos que,
com freqüência o ouvimos desenvolver e pelos quais nós lhe somos devedores, para a compreensão do essencial.
Deus é um ser pessoal, Deus é Amor. O Amor não é um atributo de Deus. Efetivamente, pode-se dizer que Deus é
grande, que Deus é todo-poderoso, que Deus é infinito; mas o Amor não se situa no mesmo plano, não é um atributo
divino, é o próprio ser de Deus. Pode-se, pois, chamar ao próprio dEus de Amor. O Amor é que é infinito, o Amor é
que é todo-poderoso, o Amor é que é transcendente.
Esse Deus pessoal não tem ciúmes de nossa liberdade. Ele a respeita. Ele a criou, ele a quis. Ele está no princípio de
nossa ação. Não há contradição entre o reconhecimento de Deus e a afirmação da autonomia do homem, pois Deus é o
princípio do exercício de nossa liberdade, Deus é a iniciativa de nossas iniciativas. Ele nos chama a “viver de sua
própria vida”. Daquilo que é a vida de Deus é que somos chamados a participar, para difundi-lo no mundo, a serviço
dos outros. Deus e história não são inimigos, não estão separados. Pe. Varillon gostava de citar a frase de Santo Irineu:
“A glória de Deus é o homem vivo”.
Este ensinamento, esta intuição encontraram expressão aprofundada e desenvolvida em dois livrinhos: L’Humilité de
Dieu e O sofrimento de Deus, cujos títulos, trinta anos atrás, pareceriam desconcertantes, por chocarem-se com a idéia
tradicional da majestade e do poder divinos. No entanto, eles expressam uma profunda intuição e, sem dúvida, uma
experiência mística daquele cujas últimas palavras foram: “Abandono-me como criança...”, expressão da fundamental
afirmação de que Deus é Amor.
Se Deus é Amor, não é um deus ciumento, não é um deus dominador, não é Júpiter. Entre dois seres, qual o mais
desvalido, o mais dependente? Aquele que mais ama. Na relação entre Deus e o homem, Deus é o mais dependente, o
�mais humilde. Jean-François Six afirmou que ele realizara um “furo teológico”. Etienne Borne falou de “audácia
teológica”. Efetivamente, com seus dois livros, François Varillon revelou-se grande teólogo e teólogo de futuro.
Poder-se-ia crer, tendo em mente sua atividade de conferencista itinerante, que era o vulgarizador do pensamento de
outros. Mas esse pensamento, de fato, era profundamente assimilado, repensado e tornado original... Seus dois livros
marcam o termo de um itinerário, recapitulam um pensamento e uma vida.
François Varillon morreu no exercício de sua missão de conferencista, que ele cumpriu até o último dia. Por vários
anos, sua saúde dava graves e inquietantes sinais: na Páscoa de 1978, sofrera um acidente e, a conselho cordial mas
insistente dos médicos e dos confrades, decidira renunciar à maior parte de suas atividades. A ternura de Deus o
poupou da decrepitude e o retirou, de igual modo, de nossa afeição. Mas, graças a Deus, nem tudo findou: duas obras
póstumas conservam entre nós a sua presença, sua irradiação; elas estenderão sua influência e seu pensamento para
além do círculo daqueles que lhe eram próximos e o amavam. Por uma circunstancia em que se vê um sinal
providencial, Charles Ehlinger conseguiu, algumas semanas antes de sua morte, entrevistá-lo durante nove dias e
registrar de sua boca uma quantidade de recordações e reflexões, reunidas no livro publicado em 1980, sob o
admirável título de Beuaté du monde et souffrance des hommes. Ali está o essencial
O presente livro, que propõe um texto de uma das conferências de cultura religiosa por ele proferidas em toda a
França, poderá assegurar a perenidade de seus ensinamentos.
Se, ao termo desta evocação, a testemunha e o amigo apagam-se perante o historiador e solicitam a este uma tentativa
de avaliação do papel do Pe. Varillon e de lhe fizer u lugar na história religiosa, este recordará a influência exercida
sobre centenas de militantes, para a formação dos quais o Pe. Varillon, com certeza, concorreu; recordará igualmente
os milhares de ouvintes alimentados e enriquecidos pelos seus ensinamentos, aos quais ele revelou um Deus de Amor.
Outrora, ao esboçar para Informations catholiques internationales, um perfil de François Varillon, por ocasião da
entrega do Grande Prêmio Católico de Literatura, eu acreditava poder escrever: “Ele está entre aqueles quinze ou vinte
religiosos, jesuítas ou dominicanos, cuja influência foi decisiva e sem as quais a figura do catolicismo francês não
seria o que tem sido, de trinta anos para cá”. Charles Ehlinger escrevia em “La Croix”, no dia seguinte ao da morte do
Padre: “Cada geração recebe alguns homens e mulheres cuja obra, nome e presença marcam-lhe a consciência e
evocam um certo modo de ser homem e de ser cristão. Sem hesitar, situo François Varillon entre estas dez ou doze
figuras que constituem nossa grande referência”.
Terei sabido reconstituir-lhe os traços, como pessoa, para aqueles que o conheceram, ou sugeri-los aos demais? Os
primeiros perderam um amigo, cuja perda foi irremediável. Que outros saibam que homem ele foi, que seu
pensamento e sua existência ocupam um incomparável lugar na história intelectual e religiosa de nosso país.
René Rémond
�APRESENTAÇÃO
Estávamos admirando as magníficas vielas da cidade de Cordes, no Tarn. Garoava discretamente. O Pe. Varillon, cada
vez mais lento para andar, abrigara-se sob um alpendre, da grande praça do mercado, enquanto eu ia buscar o carro na
aldeia. Ainda o vejo, apoiado à margem do poço, cansado, maravilhado porém. E o ouço declamando um poema que
terminava com estes versos: “Saboreava um perfume de eternidade”. 15 de março de 1978, último dia que passei em
sua companhia. Alguns dias depois, uma grave crise cardíaca o obrigou a diminuir suas atividades. E uma segunda
crise o derrubou definitivamente, em 17 de julho do mesmo ano.
Comecei a conhecer a sua obra ao descobrir o Abrégé de La foi catholique, artigo de uma vintena de páginas. O texto
era, sem dúvida, um pouco difícil. Mas quis o acaso que, graças a uma fita cassete, eu ouvisse dele mesmo a
explicação que dera a sacerdotes, reunidos em sessão. Nessa apresentação do “essencial do cristianismo”
impressionou-me a convicção de sua palavra, o vigor da sua inteligência e a amplitude das suas perspectivas. Eu era
padre havia três anos, mas foi neste momento em que melhor senti a grandeza e a beleza da fé. Este entusiasmo pelo
Cristo ressuscitado aprofundou-se, quatro anos mais tarde, durante o mês de Exercícios Espirituais orientado pelo
Padre Varillon, na casa dos jesuítas em Châtelard. Depois ele veio a Pau, apesar da fadiga da idade e da distância de
Lião, para proferir conferências religiosas, de abril de 1974 a fevereiro de 1978. Foi então que o encontrei. E que
encontro!
Que intensidade em sua conversação, sem formalidade nem mesquinharia. Longe de sentir-me complexado pela
qualidade de sua personalidade, fiquei impressionado por sua modéstia, para não dizer humildade. A exemplo de seus
muitos amigos, acolhi com alegria sua amizade, surpreso que terminasse uma de suas cartas com a frase: “Conte-me,
rogo-lhe, entre seus melhores amigos”. Eu sabia que não se tratava de uma banal fórmula de polidez. Bem
compreendo que um homem de tal delicadeza possa haver escrito que não somos nós apenas a rogar a Deus, mas que
o próprio Deus roga a nós.
Fiquei igualmente atônito com um sacerdote de sua envergadura que, com mais de setenta anos, ousasse dizer eu ainda
não compreendia bem o sentido da expressão: “Cristo morreu por nossos pecados”. Não contentar-se com fórmulas já
feitas, mesmo as da Igreja, mas querer aprofundá-las na fidelidade à Tradição autêntica, para traduzi-las numa língua
que correspondesse à cultura contemporânea, tal era sua permanente preocupação. Ao falar sobre os jovens que
encontrara, repetiu-me: “Suponha que um deles tenha vocação de filósofo. Se compreendeu a fé cristã a partir do
interior, não tornará a dizer, como o fazem tantos, que ela é uma alienação!”
Seu amor por Jesus Cristo desenvolveu nele uma só e mesma paixão por Deus e pelo homem. Interessava-se
prodigiosamente por tudo o que interessa os homens e mulheres de hoje, em todos os âmbitos da aventura humana.
Por isso, tantos dos que o conheceram mencionam a extensão da sua cultura: não da sua erudição, mas da riqueza de
sua experiência humana, da profundidade da sua humanidade.
Em sua personalidade, como em seu ministério e em seus livros, ele manifesta aquela “união de contrários” da qual o
Concílio Vaticano II fez uma das linhas mestras da renovação da Igreja. Era a um tempo, modesto e convicto,
tradicional e audacioso, místico e realista; todas essas atitudes, no seu caso, não eram contraditórias, mas
equilibravam-se harmoniosamente.
***
Seus numerosos ouvintes de Pau, dentro da diversidade das formas de Igreja a que pertenciam (paroquianos, membros
de movimentos, catequistas, animadores de escotismo ou de preparação do matrimonio, etc.), muito apreciaram suas
conferências. Não seria possível, após sua morte brutal, correr o risco de as editar, a fim de continuar aproveitando
uma tal expressão de fé, uma vez que, enquanto vivia, ele permitira a tantas pessoas que aprofundassem a sua? Em
janeiro de 1979, abri-me ao projeto de Charles Ehlinger. Ele apresento-me aos jesuítas de Châtelard que me acolheram
com confiança e permitiram-me consultar os manuscritos e cadernos de notas pessoais do Pe. Varillon.
Tive, pois, à minha disposição, por um lado, seus manuscritos (seja integralmente redigidos, principalmente os dos
últimos anos, seja apenas com indicações de um plano ou acompanhados de fichas de suas leituras); e, por outro lado,
de centenas de transcrições policopiadas por seus ouvintes,nas diferentes cidades da França. Reconstitui onze séries
compostas, cada uma delas, de cinco ou seis temas. Desta massa de documentos, que compilei e organizei, pouco a
pouco se destacaram as seguintes idéias principais:
�- A coerência de sua posição: ela se articula em torno de um eixo, definido por ele como o “essencial do essencial”:
Deus se fez homem para que o homem se faça Deus. Ou, o que é o mesmo, mas sem dúvida fala mais alto à
experiência de cada um: o homem é capaz de amar como Deus ama, isto é, com um amor que é o próprio Amor.
Malgrado a violência do paradoxo, ele afirma em sua conferência sobre o inferno: “Se acontecer que um ponto
qualquer da doutrina cristã pareça desligado do Amor,ou como contradizendo o Amor, ou como não sendo condição
ou conseqüência do Amor, teríamos o direito de rejeitá-lo”. Coerência, não síntese ou catecismo de todas as verdades
da fé (faltam algumas delas, pois ele não se sentia capaz de falar sobre elas no contexto atual).
- Seu cristocentrismo: se “o ofício do poeta, segundo São João Persa, é o próprio aprofundamento do mistério do
homem”, a convicção do Pe. Varillon é que tal aprofundamento só se pode realizar a partir do mistério de Deus
(mistério, não no sentido de enigma, que não se pode compreender, mas no sentido de realidade, cuja exploração
jamais chega a termo). Um e outro aprofundamento só se podem realizar à luz de Jesus Cristo, plenamente Deus e
plenamente homem. O Cristo – Deus tornado homem, para que o homem se torne Deus - é sacramento de Deus e
sacramento do Homem. A unidade do homem e de Deus em Cristo é o centro que dá sentido à humanidade.
Certamente, é preciso evitar toda confusão, meditando, conforme escreveu Étienne Borne, que “um Deus, tornando-se
homem é ainda mais Deus e um homem, divinizado é mais plenamente homem”. Mas em entrever em Jesus Cristo o
Deus de Amor, humilde e vulnerável, poder-se-ia descobrir o núcleo da fé? Ele não é o deus da justiça vindicativa, que
exige o sacrifício do Filho, nem o Deus do deísmo paternalista que se contenta com a mediocridade dos homens.
- Seu realismo espiritual com a recusa de todas as abstrações, com demasiada freqüência confundidas com a vida
cristã. Esta é um permanente combate contra a sempre presente tentação do abstrato. Sua preocupação de refletir
constantemente a partir da experiência, permite ao Pe. Varillon exprimir-se com simplicidade, ao mesmo tempo
luminosa e profunda, característica de seu estilo. Simples sem ser simplório. Este realismo espiritual e que lhe
permitiu estabelecer uma pedagogia própria. Convida seus ouvintes a uma orientação que, apoiada nas objeções
habituais, permite-lhes isso, insistia ele com freqüência na “gênese da fé dos apóstolos, que devemos voltar a
encontrar na leitura atenta dos Evangelhos, se desejamos que nossa afirmação da divindade de Jesus cristo não seja
pura abstração”.
- Sua serenidade, que não se apressa em tudo compreender e tudo resolver. Uma das leis do Reino é a paciência, que
dá tempo às germinações e maturações. O Pe. Varillon quer destacar o essencial da fé, sem atravancar o caminho com
questões menores, secundárias. Definir o homem, com toda a Tradição, como divinizável é infundir-lhe confiança no
futuro. Trata-se de uma espiritualidade de construtores da civilização. Não é otimismo ingênuo e piegas (o mundo,
embora magnífico, é igualmente trágico, o sofrimento dos homens é um fato), mas uma esperança que se apóia
fundamentalmente no dom inaudito da divinização, oferecido ao homem e a toda a humanidade. “Porque se deve
tentar falar bem de Deus. Assim, talvez se atenue essa dor sem motivo aparente nem rosto que se elevou sobre o
Ocidente de onde se afirma que, a despeito do mistério de Cristo, Deus se ausentou de nossas dores, por direito de
Transcendência... É preciso tentar falar a esses homens que vomitam a si mesmos pelo desgosto de não ser amados,
pensam, por Aquele que os cristãos continuam a chamar o próprio Amor do mundo.”
***
À medida que eram descobertas essas idéias-força, meu método se definiu. Ao longo desses dezoito meses de
trabalho, recebi grande apoio e encorajamento de Charles Ehlinger e do Pe. J. de Mauroy. A eles meus profundos
agradecimentos. De igual modo, agradeço àqueles e àquelas que, por suas observações, me permitiram esclarecer e
lapidar este dossiê. Juntamente com certo número de cristãos, eu muito recebera do Pe. Varillon, bem como da ACI
(Ação Católica dos Círculos Independentes), onde exerço com prazer meu atual ministério. Não é verdade que a
inteligência da fé e a diligência da Ação Católica, longe de se excluírem mutuamente, invocam uma à outra e,
reciprocamente, se fecundam? Aqui vão algumas indicações sobre o modo pelo qual dei forma a essas conferências.
Se os manuscritos originais estavam totalmente redigido, eu nada suprimia, mas, graças às cópias xerográficas de que
dispunha, acrescentei explicações que explicitam frases muito herméticas. Fui obrigado a suprimir boa quantidade de
parágrafos, a fim de evitar repetições fastidiosas, mantendo, todavia, a expressão das convicções mestras e fazendo
votos para que a insistência, mesmo em contextos diferentes, não canse o leitor. Tais supressões, ainda que necessária,
desequilibraram muitos textos redigidos ou xerografados e exigiram uma recomposição. Os ouvintes não
reencontrarão essas conferencias tais quais o Pe. Varillon as pronunciou, em cada uma das cidades onde esteve. Ainda
mais que o mesmo tema dele recebeu dele diversas apresentações (e, portanto, diversos títulos), apropriadas a
auditórios diversificados. De igual modo, tive de efetuar o ajustamento destes múltiplos desenvolvimentos, para editar
aquele que me pareceu mais significativo. Os ouvintes não encontrarão, tampouco, mesmo resumidas, todas as
�conferencias que o Pe. Varillon pronunciou na sua vida. Retive as dos dez últimos anos, mas no eixo escolhido para
este livro: a apresentação da coerência da fé cristã.
Transcrevi certas comparações que, oralmente, talvez tenham sido enunciadas com uma ponta de humor e que, por
escrito, poderiam prestar-se à ironia. O Pe.Varillon, com aquela sua paixão por fazer-se compreender pelo grande
público, utilizou-as, uma vez que a fé é para todos e não para alguns iniciados. Evidentemente, falta aqui o requinte
de seu estilo. Que o leitor agastado com certos circunlóquios recorde-se das advertências dele: “Quando faço
conferências propriamente religiosas, não se trata de arte, mas de apostolado. Escrevo ou falo para ser compreendido
pelo maior número”. Para não subestimar sua personalidade, ou suas qualidades literárias, é indispensável reportar-se
a sua entrevista a Charles Ehlinger, bem como aos sues dois livros e verdadeiras jóias: A humildade de Deus e O
Sofrimento de Deus.
Finalmente, esforcei-me para encontrar a origem de suas referencias (indico aquelas que descobrir), mas não posso
afirmar tê-las descoberto em todos os casos. Ele estudara tantos autores, lera tantos livros! Ao consultar-lhe os
manuscritos e notas, detectei múltiplas influências, desde Claudel e o Pe. Y. de Montcheuil até às últimas letras do Pe.
Labarrière e de René Char. Ele mesmo dizia que, `\a força de ler e meditar, não sabia o que era dele ou o que era de
suas fontes.
Espero não trair ou mascarar suas convicções profundas, nem congelar o dinamismo de seu pensamento, em
maturação incessante, devido à sua curiosidade de espírito e à juventude de sua fé. Sem esquecer que a morte o
surpreendeu em pleno trabalho de redação de seu comentário da segunda parte do Credo, que encerra realidades
importantes, tais como a Igreja, o batismo e o perdão dos pecados. É preciso levar em conta a data dos manuscritos e
eu a indico no cabeçalho de cada capítulo: alguns deles são antigos e incompletos.
Após vários esboços, acabei por adotar o seguinte plano, a fim de valorizar as três dimensões de toda formação cristã,
que se entrelaçarão de modo permanente no caso deste “despertador”: iniciação espiritual, aprofundamento do
conteúdo da fé; educação para análise de situações e acontecimentos:
- Uma introdução, ou melhor, um pórtico pelo qual é necessário entrar na leitura do livro, destinado, acima de tudo,
ao leitor que nunca ouviu o Pe. Varillon, para que se familiarizasse com seu vocabulário e sua pedagogia. Ele próprio
considerava muito importante esta preparação.
- 1. O Cristo, morto e ressuscitado, coração do Real, com a admirável meditação sobre as Bem Aventuranças.
- 2. O acolhimento do Dom de Deus: Maria, imagem da Igreja, depois, a Igreja, experiência do acolhimento do Dom
de Deus por todos os batizados; François Varillon, na medida de seu itinerário de homem, de cristão e de sacerdote,
insistia nesse acolhimento; com a necessidade de se “descentrar”, de se desapropriar de si mesmo, para se receber
incessantemente de Deus e assim encontrar a plenitude.
- 3. Os principais dogmas: permitem aprofundar quem é Deus, quem é o homem e qual pode ser o seu relacionamento.
O Pe. Varillon insistia numa justa compreensão do dogma da Criação: é o Deus autenticamente Criador que funda
nossa liberdade e nossa dignidade humana.
- 4. Alguns critérios de discernimento para a realização da tarefa humana: situar o relacionamento com o Cristo no
âmago dos dinamismos humanos, não porém ao lado deles, nem em seu lugar; viver o Evangelho, que é um apelo à fé
e à liberdade; orar, visto o dom de Deus ser uma tarefa a cumprir; combater o mal e o sofrimento, ao invés de resignarse a suportá-los.
- Para concluir ou antes, para recapitular tudo, a Eucaristia: Ela é a “fonte e o cimo da vida Cristã”, segundo a
expressão do Concilio Vaticano II, retomada a propósito do Congresso Eucarístico Internacional, de julho de 1981.
Termino este trabalho em 3 de dezembro de 1980, na festa de São Francisco Xavier: solidamente enraizado na cultura
basca e na fé católica, ele não hesitou em ir ao encontro dos mundos novos de sua época: não foi este igualmente o
desígnio de François Varillon? Leio na Exortação do papa João Paulo II sobre a catequese que “o dom mais precioso
que a Igreja pode oferecer ao mundo destes tempos, tão desorientado e inquieto, é o de formar cristãos firme no
essencial e humildemente felizes em sua fé”: não é este o retrato do Pe. Varillon?
***
Expresso toda minha gratidão ao Pe. Jacques Guillet, que aceitou revisar o manuscrito em seu estado final e a René
Rémond, que consentiu em que este livro principiasse com um perfil do Pe. Varillon.
BERNARD HOUSSET
�Introdução
O essencial
da fé
O sentido e o não-sentido
Uma situação de crise como a que atualmente atravessamos é benéfica. Sei que uma crise pode ser mortal,
mas também existem crises de crescimento.
Péguy distinguia, em nossas existências individuais, bem como na historia das civilizações, períodos e
épocas. Um período é um tempo em que não acontecem coisas relevantes, os indivíduos e as coletividades
vivem do impulso recebido, nada os provoca a tomar decisões importantes. A época é um tempo em que
algo de relevante ocorre, em que a liberdade, que é o essencial do homem é provocada e lhe é vetado dormir.
Uma época é um momento verdadeiramente crucial da historia, quando é preciso, a todo custo, sair do
entorpecimento. Não são os dorminhocos que entram no Reino de Deus.
Vivemos uma época, disso não há dúvida. Temos decisões importantes a tomar e não as podemos eludir.
Decisão é palavra que me ouvem pronunciar com freqüência: nós valemos o que valem nossas decisões;
pequenas ou grandes é por nossas decisões que somos autenticamente homens.
Um tempo de crise como o nosso deve ser simultaneamente de vigilância (há crises mortais) e de otimismo.
Tanto mais que, bem o sabemos e não insistirei nisso, a crise presente não é apenas eclesial, é uma crise de
civilização, da qual a Igreja, como é normal, ressente o contragolpe.
Para dizer em duas palavras, o que caracteriza a presente crise de civilização é o afrouxamento entre o
crescente domínio do homem sobre o conjunto de seus meios (técnicos, econômicos, políticos, etc.) e uma
ausência, caca vez mais sentida, de metas comuns. Há atualmente uma inteligência, um progresso crescente
no plano dos meios e uma absurdidade no plano dos fins. Vai-se para a lua, como dizia André Malraux: se é
para lá se suicidar, não adianta nada. Persegue-se o bem-estar, mas para fazer o quê? Para fazer (ou para ser)
o quê?
�A vida tem um sentido?
A questão que se propõe a todo homem é a questão do sentido da existência. Paul Ricoeur escreveu: “É
verdade que aos homens faltam justiça e amor, mas talvez lhes falte, ainda mais, significação”. Afinal, que
significa tudo isto?
A questão mais fundamental da filosófica é a seguinte: por que existe algo e não o nada? No plano prático,
esta questão se torna: por que é preciso haver um acréscimo, uma potência, um mais-ser? A que leva isto? E
esta é toda a questão do sentido, ou do não-sentido da vida.
Sentido, segundo a dupla acepção da palavra: sentido como direção, tal como se fala do sentido de um rio ou
no sentido único de uma rua; e sentido como significação, como se diz o sentido de uma frase. Qual a
direção de nossa existência, para onde vamos? E qual a significação dela, que quer dizer isto?
Felizmente muita coisa tem sentido! A amizade tem sentido, o amor tem sentido, a cultura tem sentido, o
progresso econômico e social, o progresso da justiça no mundo, tudo isto tem sentido. Há sentido por toda
parte.
Mas há também o não sentido. Uma jovem de vinte anos que fui atender num hospital contou-me que
conhece o próprio estado: que tem câncer e vai morrer dentro de alguns meses, embora seja muito bela,
muito talentosa e tivesse um futuro magnífico pela frente.
Para ela e para seus parentes, ter a vida ceifada aos vinte anos é uma absurdo, não tem sentido. Disse-me:
“Eu me revolto”. Longe de escandalizar-me com essa revolta, respondo: “Revolto-me com você”. Ela se
admira; esperava que eu lhe dissesse que a revolta é pecado. Diante do não-sentido, diante do absurdo, a
revolta é sã.
É absurdo um pai de quatro filhos morrer subitamente em conseqüência de uma freada frustrada numa pista
molhada. Sobe a maré e muitos milhares de paquistaneses são reduzidos à fome; isso é absurdo, não tem
sentido.
Como evitar a proposição do problema de saber qual dele, afinal, vai ganhar, o sentido ou o não-sentido?
Será o não-sentido o vencedor? Será a morte o fim de tudo? E a morte? Será esse o batente contra o qual se
choca tudo o que já tem sentido, ou seremos constrangidos a dizer, como Paul Valéry: “Tudo vai para baixo
da terra e retorna ao jogo?”. O jogo da natureza: nossos cadáveres servirão de esterco para os legumes de
nossos netos!
Em termos um pouco mais filosóficos: será a nossa liberdade _ essa magnífica liberdade que nos permite
emergir acima dos seres da natureza – vencida finalmente pela natureza? Não creio que se possa evitar a
questão do sentido.
Pode-se não prestar atenção nela, certamente, e estamos rodeados de gente que se atola nos sentidos parciais
da existência: o amor, a amizade, a cultura, o progresso econômico e político. Diria Pascal: “Eles se
divertem”. Para dizer de outro modo, vivem superficialmente. Pode-se deixar de dar atenção à questão
fundamental; mas se prestarmos atenção, ela é etapa irredutível.
O cristianismo se apresenta como uma resposta a essa interrogação, que nos define como homens. Ser
cristão é acreditar na resposta que, em Jesus Cristo, Deus dá a essa interrogação humana. A fé cristã nos
torna adversários do absurdo, do não-sentido, e profetas do sentido. Ou, se vocês preferem, testemunhas do
sentido.
Ser cristão é poder dar um segundo sentido, muito mais profundo, ao que já tem sentido (como a amizade, o
amor, a cultura, a musica, e ao mesmo tempo, após me haver revoltado com ela contra o não-sentido de sua
morte prematura: “Vamos ficar nisso? Acredita que você mesma é capaz de dar sentido a esse fato, à morte,
que de fato é um absurdo e carece de sentido? E não será precisamente a grandeza de nossa liberdade que o
sentido não resida nas coisas e que a nossa tarefa seja a de dar sentido ao que não o tem?
Distinguir indiferença de dúvida
�Gostaria de abrir parênteses para falar da distinção que se deve fazer entre a indiferença e a dúvida.
Devemos compreender aqueles a quem chamo de duvidosos sinceros, os que estão “em busca”. Quem
duvida não rejeita o Cristo; ele não sabe, hesita.
A indiferença é outra coisa. Não querer saber onde se situa o mais alto nível da existência, “distrair-se”para
fugir à questão do sentido da vida, para abafar a voz da consciência – que não se pode deixar de ouvir, ainda
que se lhe dê muito pouca atenção -, isso é a indiferença. Não julguemos ninguém, pois não podemos saber
se alguém é verdadeira e totalmente indiferente. Digamos somente que se existe o indiferente total (só Deus
o sabe), ele é inumano, ou desumanizado.
No tocante à dúvida, devemos ser muito prudentes. Nas palavras de Jean Lacroix, “se muitos de nossos
contemporâneos nutrem para com os dogmas (‘verdades’ da fé) uma incerteza parcial, ou mesmo total, é
porque, em consciência, não podem fazer outra coisa”. Todo ato humano, para ser humano, deve ser
justificado, e isto inclui o ato de crer. Todos os teólogos afirmaram que é normal que tenhamos a
inteligência da fé, que busquemos compreender o que cremos. A razão tem uma parte, e parte importante,
no ato de crer. Não somos fideistas; o fideísmo é uma atitude segundo a qual a razão não tomaria parte no
ato de fé.
Ainda com Jean Lacroix: “Nada há de pior que uma intelectualidade sem espiritualidade (não se trata de
uma intelectualidade superior, reservada a espíritos particularmente inteligentes, mas da simples
intelectualidade daquele que busca fundamentar sua fé, justificá-la). Em reação a um intelectualismo árido
(efeito de um certo catecismo, durante longos anos), muitos exaltam hoje o retorno a uma fé pura, que não
buscaria nenhuma espécie de justificação.... É esquecer (e isto é capital) que os fideísmos destroem a fé, tão
seguramente quanto os tradicionalismos destroem a Tradição. Negam-se a qualquer diálogo e rapidamente
naufragam na violência, na desrazão (ou na tolice)”.
Não só não devemos apedrejar aquele que, no atual estado de suas certezas, empenhou verdadeiramente sua
honestidade na reflexão religiosa e que, decididamente, não achou um meio para crer, como temos o dever
de lhe dizer: tem razão. Um homem não tem o direito de afirmar o que a Igreja afirma, se não achar que, em
consciência, tem o dever de fazê-lo.
Tomás de Aquino ( a maior referência em matéria de tradição teológica da Igreja) não receava dizer: “Crer
no Cristo é em si boa coisa, mas é falta moral crer no Cristo se a razão estima que tal ato é mau, e cada qual
deve obedecer à própria consciência, embora errada”. Isto é evidente por si, mas vale dizê-lo: o erro não
deve ser voluntário, mesmo não o sendo senão indiretamente, por negligencia.
Refiro-me aos que duvidam por desejar ser, antes de tudo, honestos, com a coragem que a honestidade
implica. São talvez, testemunhas dolorosas da mediocridade dos cristãos: mediocridade intelectual, se não
nos esforçarmos para purificar nossas crenças dos aspectos míticos que inevitavelmente entranham (quantos,
por exemplo, alardeiam uma adoração a Deus que, na realidade, não passa de camuflagem para a adoração
da autoridade ou do poder!); mediocridade moral, se interpretarmos o Evangelho de modo mais rasteiro
(quantos, por exemplo, confundem caridade com esmola, amor com sentimento, tornando-se por isso,
incapazes de compreender o verdadeiro sentido da palavra de João: “Deus é Amor!”).
Os que duvidam por honestidade de consciência recusam-se a aderir às verdades da fé até vê-las com
clareza; recusam-se a se contentar com uma fé ingênua e, de certo modo, pré-crítica. Tudo está em que não
se passe pelo Himalaia declarando que nada há a notar. Pois não se pode deixar de reconhecer que, desde
Abraão, o grande movimento judeu-cristão detém consideráveis riquezas. É preciso pedir a eles que sejam,
pelo menos, capazes de admirar, mas, ao mesmo tempo, é preciso compreender que podem muito bem
admirar sem estar convencidos e que suas reticências não são, por isso, suspeitas.
O duvidoso sincero não é o cético, que erigiu a desconfiança como princípio, porque isto é uma doença da
inteligência. Não é tampouco o homem temeroso de se comprometer e que, devido a esse temor, se refugia
na dúvida teórica: esta é uma doença da vontade. Você duvida porque teme o compromisso? A fé é
comprometimento, não mera opinião: não se crê que Deus existe como se crê haver ou não discos voadores.
Se Deus existe, é absolutamente essencial comprometer-se com ele; comprometer o mais profundo do ser
naquilo que a ele diz respeito.
É bem evidente que hoje existem muitos males do espírito e muitos males da vontade. O grande mal é não
lhes da atenção; é não deixar irromper em si mesmo a interrogação fundamental sobre o sentido último da
existência humana ou, o que vem a ser o mesmo, não buscar destacar o essencial da fé.
�O ESSENCIAL DO ESSENCIAL
Pois existe o essencial. Não sou eu quem o digo, é o Concílio Vaticano II: “Existe uma ordem ou hierarquia
de verdades da doutrina católica, devido ao seu diferente relacionamento com os fundamentos da fé cristã”
(Decreto sobre o Ecumenismo). Em outras palavras, trata-se de não pôr tudo no mesmo plano. Faço uma
conferência sobre os anjos, mas antes digo que a questão dos anjos é muito menos essencial que o mistério
da Trindade. Mesmo os dogmas concernentes à Virgem Maria são muito mais importantes que os anjos,
embora sejam todos menos importantes que a Trindade ou a Encarnação. Ou, se a Virgem Maria é
importante, é em função da Trindade e da Encarnação, por ser ela a mãe de Jesus Cristo.
Não digo que haja essencial e acessório, pois penso que, uma vez compreendidas as coisas, acessório não
existe. Digo é que, mesmo assim, na o essencial e o menos essencial, o ligado ao essencial de modo mais ou
menos direto. Ora, o que faz muita falta na hora atual é a capacidade de destacar o essencial da fé, e eu, de
boa vontade, diria o essencial do essencial.
Desejaria que os cristãos fossem capazes de responder em duas linhas à questão: finalmente, em que vocês
crêem? Do mesmo modo, gostaria que também o descrente pudesse responder em duas linhas à pergunta:
em que você não crê? Em que se recusa a crer? Em que exatamente?
Cremos na resposta que Deus dá à inelutável interrogação sobre o sentido da existência! Essa resposta está
contida num provérbio tradicional na Igreja desde os primeiros séculos; parece que o primeiro a utilizá-lo foi
Irineu, bispo de Lião, morto por volta do ano 200; o provérbio jamais deixou de ser repetido e comentado
pelos Padres da Igreja, no Oriente e no Ocidente.
Cito-o em latim para conservar a sua autenticidade: “Deus homo factus est ut homo fierte Deus”, o que
significa: “Deus se fez homem para que o homem fosse feito Deus”ou, se preferirem: “Deus tornou-se
homem para que o homem se torne Deus”.
Isso é o essencial da fé de vocês? Se ao ouvir esta frase, vocês disserem que há exagero, essa reação
significa que não aquiesceram ainda ao essencial da fé. Acontece com freqüência que se proponha uma
pergunta: “O pecado original não é precisamente o de querer tornar-se Deus?” Há aqui um terrível equivoco:
sim, o pecado original consiste em pretender, por suas próprias forças, tornar-se o que Deus é. Mas o que
não é pecado original e que é, na verdade, o essencial da fé, é que, para nos é necessário acolher esse dom
absolutamente inaudito de nossa divinização.
Vocês refletiram suficientemente, para entender que, se não fosse assim, a Encarnação de Deus seria apenas
uma visita de Deus à terra, como há tantas nas mitologias pagãs, nas quais os deuses “badalam”pela terra
disfarçados? Não fosse assim, seria necessário dizer que Deus tomou de empréstimo nossa roupagem
humana, a fim de aparecer entre nós durante algum tempo, pregando-nos uma moral da qual é preciso dizer
quanto é superior a todas as morais, depois do que, subiu novamente ao céu, de onde vigia o nosso modo de
agir cá embaixo, a fim de nos recompensar, se praticarmos virtudes cristãs, ou de nos castigar, se
preferirmos viver no pecado. Ao pensar assim, estamos no domínio da mitologia.
Não é espantoso que os nossos contemporâneos, particularmente os jovens, recusem-se categoricamente a
entrar nessa? Se a fé consiste nisso, o dever de um homem inteligente é livrar-se dela o mais depressa
possível. Não estou brincando e o que lhes digo é muito doloroso, pois tempo que ainda existam homens e
mulheres, quem sabe até católicos praticantes, padres e religiosos, que vivem em plena mitologia sem se
aperceber.
O provérbio que citei como expressão do essencial da fé é tudo o que há de mais tradicional na Igreja. Peço
que não chamemos tradicional aquilo que alguns dentre nós aprenderam no início do século. Há equívocos
que é importante desfazer energicamente. Muitos atualmente se autodenominam tradicionais, pensando no
que aprenderam quando jovens. Porem é necessário saber que, há cinqüenta anos éramos educados numa
época em que a Igreja se afastara bastante da própria Tradição. Não há escândalo nisso. Há na vida da Igreja
momentos de baixa tensão. Um pouco como na obra de um grande escritor, a gente se surpreende ao ver, em
certos textos, coisas que tocam as raias da bobagem. Ou, por outra, na obra de um grande musico, há
momentos em que se tem a impressão de que ele esqueceu quem era, tão fracas são as suas composições.
�Numa obra imensa tal baixa de tensão é normal; de modo geral, ela não perdura, e o gênio se restabelece
muito rapidamente.
O mesmo ocorre na vida da Igreja: há momentos em que nos distanciamos bastante do essencial da
Tradição. Que os mais idosos entre vocês apelem para a memória: falavam-lhes muito em São Paulo quando
eram jovens? Não muito, tinha-se medo da liberdade. Este é um exemplo entre mil. Devemos prestar muita
atenção, para não confundir a Tradição da Igreja com aquilo que nos ensinaram e que, quase sempre (de
onde a atual crise), era relativamente estranho à verdadeira Tradição da Igreja (e digo relativamente par não
radicalizar: baixa tensão não é erro).
As duas verdades são rigorosamente correlativas, a encarnação de Deus e a divinização do homem. Isto é
absolutamente tradicional, é o núcleo da fé, o permanente, o imutável, o que não pode ser modificado por
nenhum novo contexto cultural, o que a Igreja jamais porá em dúvida, mesmo quando questiona o modo de a
formular, pois isso é realmente necessário.
Sempre nos disseram isso, mas talvez, o tenham dito me termos horrivelmente surrados, como se diz dos
tecidos usados, “através deles vê-se a luz do dia”:
GRAÇA SANTIFICANTE: graça quer dizer dom; santificante quer dizer divinizante. Santo é o nome de Deus
no Antigo Testamento (conforme Santo, santo, santo é o Senhor). Consequentemente, o que é santificante, a
rigor, é aquilo que é divinizante. Todos aprendemos que existe graça santificante, mas talvez não se tenha
dito que se tratava da nossa divinização.
SALVAÇÃO: haverá palavra mais surrada? Foi um intelectual marxista, Gilbert Mury, que me auxiliou, por
ocasião de uma Semana dos Intelectuais Católicos, em Paris, a explicar, meu próprio pensamento sobre a
salvação. “Na minha opinião”, disse-me ele, “esta palavra traz consigo quatro questões:
‘quem é salvo?
Quem salva?
Salvo de quê?
Salvo para chegar a quê?’
Eis a resposta marxista: “Quem é salvo? O homem. Quem salva? O proletariado organizado em partido.
Salvo de quê? Da alienação (injustiças, explorações, etc.). Para chegar a quê? À sociedade sem classes, à
cidade harmoniosa e fraterna”. Depois disso, dei a resposta cristã: “Quem é salvo? O homem. Quem salva?
Jesus Cristo. Salvo de quê? Da finitude da criatura (somos seres finitos!) redobrada pelo pecado, alienação
muito mais profunda. Para chegar a quê? Não à sociedade sem classes, mas a uma vida eterna divinizada, o
que não exclui o objetivo humano de uma sociedade mais justa e mais fraterna (digamos de passagem, não
seremos divinizados , não iremos para o céu – para nos expressarmos como o velho catecismo – se, agora,
não trabalharmos, tanto quanto pudermos, para criar um mundo mais justo e mais fraterno, mais
profundamente humano)”. Sempre nos falaram de salvação, mas omitindo a definição de tudo isto.
FILHO DE DEUS: esta palavra não significa apenas criatura, mas vivente da própria vida de Deus. Um pai
não dá aos filhos apenas a vida, mas a sua própria vida. Ao dizer que somos filhos de Deus, dizemos que
Deus nos dá sua própria Vida, isto é, que nos faz participar de sua própria divindade, que nós somos, a rigor,
divinizados. Isto é sério, sabem? Neste momento estou dizendo coisas enormes: que o batismo faça de nós
filhos de Deus, em sentido pleno, não é algo insignificante!
VIDA SOBRENATURAL: façam uma pesquisa no meio em que vivem: nas paróquias, escolas, liceus: que
significa esta expressão? Para alguns, uma aparição da Virgem Maria em Lourdes é um fenômeno
sobrenatural. Outros dirão que sobrenatural é o que não pode ser explicado pela natureza: um disco voador é
um fenômeno sobrenatural. Quantos cristãos atualmente saberão que essa palavra significa, do modo mais
exato, a vocação do homem a participar da própria vida de Deus, a ser divinizado?
Se as palavras estão surradas, degradadas, não deixemos perder-se a realidade que transmitiram, pois se trata
realmente do essencial.
�CRISTO REVELA QUEM É O HOMEM E QUEM É DEUS
O sentido último da existência humana é sermos chamados a nos tornar Deus. Gostaria que a palavra
divinização, ou deificação, voltasse a uso na Igreja. E aqui também haveria uma pesquisa a fazer. Essa
palavra será entendida? Certamente serão necessários alguns esclarecimentos: não seremos eternamente
Deus como Deus é Deus, não seremos infinitos, absolutos como Ele, mas viveremos da mesma vida que Ele.
Daí a necessidade de saber em que consiste essa Vida. Isto diz respeito a nós. De nada adianta repetir que
viveremos eternamente da vida de Deus, se não sabemos em que consiste essa vida. Deus não nos pode
revelar que nossa vocação é nos tornarmos o que Ele é; isso seria zombar de nós.
O que é um mistério?
A palavra mistério deve ser bem compreendida. Quando eu era criança, imaginem, diziam-me que mistério é
aquilo que não se pode compreender. Ah! Naquele tempo eu não era muito esperto!
Tivesse um pouco
de inteligência e replicaria: isso é mesmo estranho! Se Deus fala comigo, é para que eu compreenda; é
estranho que, por um lado, me afirmem que Deus, por amor, me revela sua vida e que, por outro, isso é coisa
que não se pode compreender.
É exatamente como se eu dissesse a um de vocês: tenho grande amizade e simpatia por você, dê-me um
tempo que lhe contarei minha vida, o que amo, o que faço, onde estão minhas amizades, etc. Você diria: é
muito gentil, realmente é uma grande prova de amizade que dele recebo. Mas se me ponho a falar chinês,
que diriam vocês? Ele está completamente doido, por um lado declara que, por amor, vai fazer com que eu
entre no segredo de sua existência e, por outro, fala em chinês!
Ora, isto ‘’e exatamente o que se diz ao afirmar que mistério é aquilo que não se pode compreender. Vocês
constatam, por meio de um exemplo, o que pode acontecer com um certo ensinamento, quando a Igreja
havia parcialmente esquecido sua própria Tradição. Agostinho jamais definiu o mistério como aquilo que
não pode compreender, mas sempre como aquilo que não se acaba de compreender – o que é diferente.
Um homem, muito feliz como pai de família, veio me dizer após vinte anos de casamento: “Padre, saiba que
minha mulher ainda é um mistério para mim”. Respondi: “Isso não significa que ela seja um enigma e sim
que vinte anos de vida comum não bastaram para fazê-lo penetrar na sua profundeza última. Tanto melhor,
você continuará a descobrir insuspeitadas profundezas em sua mulher”.
Do mesmo modo, se eu lhe perguntasse, após um concerto com composições de Bach: “Você gostou desse
concerto ou dessa fuga?” Você responderá: “Calma! É muito profundo. Preciso ouvir mais duas ou três
vezes. Depois disso, talvez após a décima segunda vez, uma vez que Bach não é Deus, o mistério terminará,
mas é preciso tempo!”
Deus nos faz penetrar no seu mistério. Isto nos diz respeito. Não é um caso de curiosidade intelectual, não se
trata de responder a uma pergunta filosófica: quem é Deus? Trata-se de saber o que é nossa vocação:
devemos nos tornar o que ele é. É preciso, portanto, que saibamos quem ele é.
Em outros termos, o sentido da vida é nossa relação com Deus, uma relação tal que viveremos eternamente
de sua vida. O cristianismo é essencialmente a verdade de uma relação. Compreendamos que o contrario da
verdade não é apenas o erro (dois e dois são quatro é uma verdade; dois e dois são cinco é um erro), mas
igualmente mentira. Existem relacionamentos verdadeiros e relacionamentos mentirosos. Um certo modo de
dizer à mulher que a ama e fazer-lhe gestos de amor pensando em outra faz com que a relação entre esse
homem e essa mulher seja uma relação mentirosa, não verdadeira.
No cristianismo, tudo existe para que nossa relação com Deus seja verdadeira. No cristianismo, tudo,
(dogma, moral, sacramentos) tem como meta única garantir ou autenticar a verdade de nossa relação com
Deus. É evidente que, para que nossa relação com Deus seja verdadeira, é preciso saber quem é o homem e
quem é Deus; é preciso conhecer a verdade sobre o homem e a verdade sobre Deus. Não pode haver, afinal,
uma relação verdadeira com alguém que não se conhece. O Cristo, aquele que se fez homem para que o
homem se fizesse Deus, revela-nos quem é o homem e quem é Deus.
�Quem é o homem?
Se me perguntarem o que é o homem, respondo: o homem é o divinizável. É a mais profunda das respostas,
para alem de todas as noções inéditas que nos podem das as ciências humanas. Bem sabemos que os
estudantes aglomeram-se nos pórticos das faculdades de ciências humanas: psicologia, sociologia,
psicossociologia, psicanálise, etc. Tudo isso é apaixonante, mas não toca a última profundeza humana, não
nos esclarece o mistério do homem, pois o homem é um mistério.
Por que o homem é o divinizável? Simplesmente por haver um homem que é Deus. Um homem plenamente
homem: o Evangelho e Paulo reiteram que o cristo é plenamente homem, exceto no pecado, acrescentam.
Mas é precisamente por não ser pecador que o Cristo é plenamente homem. O que nos impede de ser
perfeitamente homens é sermos pecadores.
Se realmente há um membro do gênero humano, da espécie humana que é Deus, é porque existe em todos os
homens uma capacidade de se tornar Deus. Se um homem é Deus, todos podem vir a sê-lo. O mistério de
todo homem, o sentido do homem, a significação da vida humana, é a capacidade essencial do homem de se
tornar o que Deus é.
Sem isto seria necessário dizer que o Cristo não é homem, que é um parêntese na historia da humanidade,
um aerólito, um fenômeno caído do céu. Mas a Igreja combateu durante séculos para manter a todo custo,
contra tudo e contra todos, a humanidade de Jesus Cristo. O Cristo não é um parêntese, ao contrario, é o
Homem em plenitude. Há certamente o homem, segundo Sócrates, o homem segundo Nehru, etc. Nós
cristãos cremos que só o Cristo nos diz quem é o homem verdadeiro. Só o Cristo realiza com perfeição a
própria definição do homem: Ele é o Homem e esse homem é Deus. O que significa que não seremos
plenamente homens senão quando divinizados.
Deparo com objeções como a seguinte: não me interessa saber que serei divinizado, quero simplesmente ser
humanizado; tornar-me Deus não me diz nada, tornar-me autenticamente homem sim. É preciso tentar
compreender que, com um só movimento, o Cristo nos humaniza e nos diviniza. Não é preciso escolher
entre nos tornarmos plenamente homens e nos tornarmos o que Deus é. Quiseram nos cercar. Num dilema:
ou o homem ou Deus. Se eu devesse escolher entre homem e Deus, de modo que um dos dois tivesse de ser
excluído, eu escolheria o homem. Seria conforme a minha dignidade: sou um homem. Tenho de me tornar
um homem. Não poderia crer num Deus que me obrigasse a tal escolha, um Deus assim só poderia ser um
ídolo. Tornarmo-nos o que Deus é não significa cessar de ser homens.
Que diferença há entre Cristo e nós? Duas. A primeira é que temos de vir a ser aquilo que Ele é; o fato de
não sermos como Ele desde a concepção, mas de termos de vir a sê-Lo ao longo de nossa vida basta para
estabelecer entre Ele e nós uma diferença infinita, que durará por toda a eternidade. A segunda é que é por
Ele e só por Ele que viremos a sê-Lo. O homem que é preciso realizar é o Cristo, norma absoluta, tipo de
acabada humanização. Só por Ele nos tornamos homens.
Bastam estas duas diferenças para manter entre o Cristo e nós uma distinção eternamente irredutível. Jesus é
o único Homem-Deus, mas todos os homens são divinizáveis; nós nos tornamos, bem e belamente, o que Ele
é. Jesus se me revela por sua existência de Homem-Deus. Mesmo antes de ouvir-lhe as palavras, a partir do
momento em que creio que ele é o Homem-Deus, creio que minha vocação é tornar-me, também eu, divino,
tornar-me o que Deus é. Conforme escreveu G. Morel, “nós tornamos por participação o que Deus é por
natureza”.
Quem é Deus?
Jesus nos revela quem é Deus: Deus é Amor, e nós o sabemos: mas levamos a sério esta afirmação? É
evidente que se há um homem que é Deus é porque Deus é Amor. Se Deus não é amor, não se pode pensar
na encarnação. Efetivamente, a tendência profunda, o movimento profundo do Amor é vir a ser o ser amado,
não só unir-se a ele, mas ser um só com ele. É um movimento que já existe no amor humano, mas que ainda
não se realiza plenamente.
Penso que não há alegria que se possa comparar à alegria de amar, ela nada tem em comum com a alegria da
arte ou da pesquisa científica. A alegria de amar é absolutamente única, mas não existe sem sofrimento.
Entrar no amor é entrar na alegria, e também no sofrimento, não apenas pelo risco constante da traição, da
�rotina, do amortecimento progressivo do sentimento recíproco, porem, mais profundamente, porque o voto
profundo do amor não pode ser realizado na terra; não se trata apenas de que tu e eu nos unamos, mas de que
tu e eu sejamos um só.
É isto que Deus realiza na Encarnação; torna-se um comigo; em Jesus Cristo, Deus não apenas se une ao
homem, é um só com ele. Este é o amor realizado em plenitude. Portanto, quando a Igreja me diz que Cristo
é, ao mesmo tempo, Deus e homem numa só pessoa, já sei que Deus é amor. E toda a Bíblia desenvolve esta
questão.
Do poder do amor
Toda a história da Revelação é a da conversão progressiva de um Deus visto como poder a um Deus adorado
como amor. Nessa perspectiva é que seria necessário reler toda a Bíblia e estudar a historia das religiões. É
normal que o homem, a princípio, considerasse Deus como o Todo Poderoso. Ponham-se no lugar dos
primitivos, que se viam jogados a um mundo perigoso, que conheciam a fragilidade e a precariedade de sua
existência e o fato de estarem submetidos à ameaça das feras, das tempestades, das trombas d’água, das
epidemias. Buscavam espontaneamente uma potência que os protegesse. Os pagãos sacralizaram tudo o que
dava impressão de poder: o raio, o sol, as arvores, a lua, etc.
Mas a idéia de poder é demasiado ambígua, um poder tanto pode fazer grande bem como muito mal;
existem poderes que esmagam, anulam, dominam. Hitler, durante algum tempo, foi muito poderoso; Stalin
também. Vocês admitem entregar-se, de mãos e pés atados, a esse gênero de poder? Os pagãos igualmente,
diante desse poder ambíguo, tentaram torná-lo favorável, conciliar-se com ele, oferecendo-lhe sacrifícios,
orações.
Pouco a pouco – e nisto consiste toda a historia do Antigo Testamento -, realizou-se a conversão do Deuspoder ao Deus-amor. No âmago desta evolução, os profetas revelam que Deus é desígnio de justiça: vocês
buscam, dizem eles, conciliar-se com o todo-poderoso, buscam torná-lo favorável e para isso queimam
incenso, oferecem touros e bodes, multiplicam festas e cerimônias, celebram as luas novas; convençam-se
de que não têm senão um meio de tornar favorável o Todo Poderoso: pratiquem a justiça entre si, pois Deus
é desígnio de justiça. É a grande etapa dos profetas, em pleno núcleo do Antigo Testamento.
Finalmente, Jesus revela que Deus é amor. Esta historia da conversão progressiva de um Deus que é
simplesmente todo-poderoso em um deus que é amor no fundo não repete a historia de cada um de nós? Não
estamos incessantemente nos convertendo a um Deus que é todo o amor? Dizer que Deus é amor é dizer que
Deus é todo amor.
Deus é todo Amor
Tudo está neste “É TODO”. Eu os convido a passar pelo fogo da negação, pois só alem dele é que3 a
verdade realmente se destaca. Deus é Todo Poderoso? Não, Deus é todo Amor, não me venham dizer que
ele é Todo Poderoso. Deus é infinito? Não, Deus é todo Amor, não me falem de outra coisa. Deus é sábio?
Não. Eis o que chamo atravessar o fogo da negação; é absolutamente necessário passar por isso. A todas as
perguntas a mim dirigidas, responderei: não, não! Deus é todo Amor.
Dizer que Deus é Todo Poderoso é propor como pano de fundo um poderio que se pode exercer pela
dominação, pela destruição. Há serres suficientemente poderosos para a destruição (vejam Hitler, que matou
seis milhões de judeus!). Muitos cristãos propõem o Todo Poderoso como pano de fundo e depois
acrescentam: Deus é Amor, Deus nos ama. Isso é falso! Se Deus é Todo Poderoso, ele o é pelo Amor. O
Amor é que é todo-poderoso!
Às vezes dizemos: “Deus pode tudo!” Não, Deus não pode tudo. Deus só pode o que o Amor pode. Pois ele
é todo Amor. E todas as vezes que saímos da esfera do Amor, erramos sobre Deus e estamos em vias de
fabricar algum tipo de Júpiter!
�Espero que vocês captem a diferença fundamental que há entre um todo-poderoso que nos ama e um amor
todo-poderoso. Um amor todo-poderoso não só é incapaz de destruir seja o que for como é capaz de
enfrentar a morte. Amo algumas pessoas, mas meu amor não é todo-poderoso; sei perfeitamente que não sou
capaz de dar tudo pelos que amo, isto é, de morrer por eles.
Em Deus, não existes outro poder além do poder do amor, e Jesus nos diz (ele é que nos revela quem é
Deus): “Ninguém tem maior amor do que Aquele que dá a vida por seus amigos” Jo 15,13). Ele nos revela o
poder total do amor ao consentir em morrer por nós. Quando Jesus, no jardim das Oliveiras, foi flagrado
pelos soldados, preso e amarrado, ele mesmo nos disse que poderia ter apelado para legiões de anjos, que o
arrebatariam às mãos dos soldados. Absteve-se de fazê-lo, pois nos teria assim revelado um falso Deus, nos
teria revelado um todo-poderoso, ao invés de revelar o verdadeiro, aquele que vai até a morte, pelos que
ama.
A morte de Cristo nos revela o que é o poder total de Deus; não é um poder de esmagamento, de dominação,
não é um poder arbitrário, do qual diríamos: “Que estará ele tramando lá em cima, em sua eternidade?” Não,
ele é todo amor e esse amor é todo-poderoso.
Reintegro os atributos de Deus (poder absoluto, sabedoria, beleza...), mas estes são atributos do amor. Daí a
fórmula que lhes proponho: “O amor não é um atributo de Deus, entre outros, mas os atributos de Deus são
os atributos do Amor”.
O amor é
- todo-poderoso
- sábio
- belo
- infinito
Que é um amor todo-poderoso? É aquele que atinge o ápice do amor. E o poder total do amor é a morte: ir
até o ápice do amor é morrer por quem se ama. É igualmente perdoá-lo. Se há entre vocês quem haja
passado pela dolorosa experiência de uma rixa de família, ou num grupo de amigos, saberá até que ponto é
difícil perdoar verdadeiramente. É preciso um amor rudemente poderoso para perdoar, perdoar realmente. É
preciso o poder de amar!
Que é um amor infinito? É o amor sem limites. Quanto a mim, em meu amor e nas minhas humanas
amizades, esbarro nos meus próprios limites; o amor de Deus, porem, é infinito, capaz de se fazer homem
sem deixar de ser Deus. Ele realiza o que não conseguimos, mesmo nos casamentos mais unidos (fazem-me
confidencias suficientes para compreender que, na vida conjugal, acontecem como que relâmpagos,
momentos fugazes e rápidos em que o homem e a mulher se sentem um só. Esse instante não perdura; eles
se separam e percebem que são dois). Eis porque lhes dizia ser impossível entrar no amor sem entrar no
sofrimento, se verdadeiramente se ama e se compreende o que é amar, querer tornar-se um com o outro. O
infinito de Deus não é um infinito no espaço, um oceano sem fundo e sem margens, é um amor que não
conhece limites.
CARACTERÍSTICAS DO AMOR
Mas a questão permanece: o que é o amor? Não se trata de ser sentimental; é preciso combater tanto o
sentimentalismo como o racionalismo. Uma das vantagens do canto gregoriano, pelo qual sou aficionado, é
haver-me sempre arrebatado ao árido racionalismo, bem como ao sentimentalismo bobo. Refrisar o termo
“amor” acaba por se tornar meio idiota.
Amor = acolhida e dom
Podem torcer as coisas como quiserem, mas o amor é dom e uma acolhida. O beijo é um belo símbolo de
amor, é, ao mesmo tempo, sinal de dom e de acolhida. Mas um beijo não acolhido não é verdadeiramente
beijo. Uma estatua de lábios de mármore não recebe beijos, só lábios vivos. E lábios vivos são os que
acolhem e dão ao mesmo tempo. O beijo é um gesto admirável e, exatamente por isso, é preciso não
�prostituí-lo, não brincar com ele, é preciso reservá-lo como sinal de algo extremamente profundo (e aqui
chegamos ao âmago de tudo o que a Igreja pensa em matéria de moral sexual). O beijo é a troca de sopros
que significa a troca de nossas profundezas; sopro-me em ti, expiro-me em ti, aspiro-te em mim, de tal modo
que estou em ti e tu em mim.
Ou seja, descentro-me para meu próprio centro não mais me pertencer; doravante, sejas tu o meu núcleo. A
ti é que amo, a ti que és meu centro, vivo para ti e por ti; sei que tu também te descentras, não és mais o
centro para ti mesmo, estás centrado em mim. Estou centrado em ti, vivo por ti. Estás centrado em mim,
vives por mim e vivemos os dois um pelo outro. Amar é viver para outro (dom) e viver pelo outro
(acolhida). Amar é renunciar a viver em si, por si e para si.
Eis o mistério da Trindade. Se o amor é dom e acolhida, é necessário que haja diversas pessoas em Deus.
Ninguém se dá a si mesmo, nem a si próprio acolhe. A vida de Deus é essa vida de acolhida e dom. O Pai é
movimento para o Filho, Ele não é senão pelo Filho. São realmente os filhos que dão às mulheres a condição
de mães; sem eles não o seriam. Ora, o Pai, sendo paternidade, não o é senão pelo Filho. O Filho é Filho
para o Pai e pelo Pai. E o Espírito Santo é o beijo entre eles.
Sendo essa a vida de Deus – de acolhida e dom – se devo tornar-me o que Deus é, não desejarei ser um
solitário. Se sou um solitário, não me assemelho a Deus. E se não me assemelho a Deus, a questão de
compartilhar eternamente de sua vida não me serpa proposta. É a isto que se chama pecado: não se
assemelhar a Deus, não tender a se tornar o que Ele é, dom e acolhida.
Se Deus é todo amor, ele é pobre, dependente, humilde. À primeira vista, isso parece impossível e, no
entanto, há uma frase de Cristo que tudo domina, é preciso tomá-la a serio! Ao ver Jesus ajoelhado diante
dos apóstolos, com uma toalha cingindo-lhe os rins, ocupado em lavar-lhes os pés, nesse momento, eu o
ouço: “Quem me vê, vê o Pai”, ou “quem me vê, vê a Deus” (Jo 14, 9). O paradoxo nos deixa certamente
perplexos e sentimos cambalear, vacilante a razão. Mas nada posso fazer. Deus não se nos revela como Ser
Infinito. O Deus em quem nós cremos na é o dos filósofos, o de Aristóteles, o de Platão; é o Deus revelado
por Jesus Cristo.
Aprofundemos esta meditação a partir de nossa experiência. Se não temos nenhuma experiência de amor,
não sabemos o que dizemos ao afirmar que Deus é todo amor. É preciso viver a experiência para falar. De
outro modo isto se tornaria abstrato e “aéreo”. Os jovens têm horror a tudo que é ensinado, de algum modo,
por autoridade, sem ponto de apoio na experiência.
A pobreza de Deus
Na minha experiência humana, vejo que não há amor sem pobreza. Querem tentar imaginar, alguns
instantes, um olhar de amor no qual não houvesse senão amor? É muito difícil, pois em todo olhar humano
há sempre algo que não é amor. Mesmo no mais amoroso dos olhares, há sempre um olhar voltado para si
mesmo. Sou pecador, e isto significa que, no momento mesmo em que lhe digo que o amo, deveria
acrescentar (se fosse realmente sincero): mesmo assim, existe alguém que eu prefiro a ti e esse alguém sou
eu. Eis o pecado, seja qual for a forma que revista. O pecado original é a minha incapacidade de amar
puramente; é o que faz com que o outro não seja tudo para mim (tudo, na plena acepção do termo); é o que
faz com que eu não seja um puro movimento para o outro (puro no sentido estrito) como na Trindade o Pai é
puro movimento em direção ao Filho, e o Filho, puro movimento em direção ao Pai, sendo o Espírito Santo
a reciprocidade e o dinamismo desse movimento.
Há, contudo, um meio de imaginar um olhar de amor onde nada houvesse além do amor. Creio que na
experiência do amor humano (seja amor conjugal, simpatia fraternal, amor paterno ou materno, caridade ou
dedicação aos outros, etc.), existe bastante amor, ainda que mesclado ao egoísmo, para que possamos
compreender o que é o amor quando vivido em Deus, em toda pureza e plenitude.
Ao olhar para sua mulher com olhos de amor, que poderá dizer um homem em quem não há senão amor?
Que frase pronunciará para traduzir esse olhar de amor? Só conheço uma: “Você é tudo para mim, você é a
minha alegria”. É uma palavra de pobreza: se você é tudo, eu sou nada. Fora de você, sou pobre. Minha
riqueza não está em mim, está em você. Minha riqueza é você, eu sou pobre.
Se isto é verdade quanto ao amor humano, com muito mais razão o será quando se trata de Deus! Deus é a
Pobreza Absoluta; Nele não há vestígio de ter, de posse. O Pai diz eternamente ao Filho: és tudo para mim.
O Filho responde ao Pai: és tudo para mim. E o Espírito Santo é o dinamismo desta pobreza. Deus é o mais
�pobre dos seres. Se a razão vacila diante de tal perspectiva, digam, então: Deus é rico, mas acrescentem
imediatamente: rico em amor, não em haveres. Ora, ser rico em amor e ser pobre é exatamente a mesma
coisa. Deus é um infinito de pobreza. A propriedade é o inverso de Deus.
Diante da complexidade das coisas humanas, alguma propriedade é imprescindível; quando nada possui
pode ter fugido ao trabalho. E mal é que, nada possuindo, ser-lhe-a muito penoso ser, o que significa que
neste mundo ser sem ter é impossível. Por isso, diz a Igreja, há o direito à propriedade: para que o ser
humano seja é necessário um certo haver. Em Deus, porem, isso não é preciso. E não entraremos em Deus
senão despojados de todos os haveres. A pobreza material de Belém e de Nazaré é simplesmente o sinal de
uma pobreza bem mais profunda. Pobreza imensa de Deus, infinita, absoluta, sem a qual não poderíamos
dizer que Deus é amor.
Ah! Como estamos longe de certas imagens de Deus! Encaremos a coisa com seriedade: esse é o núcleo da
fé, não é brincadeira. Há ateus nada sérios, mas também há cristãos que não o são. Se desejamos nos situar
onde devemos, será preciso confrontar o cristão serio com o ateu serio. E o cristão é aquele que afirma a
pobreza de Deus.
Dependência de Deus
Imaginemos o olhar de amor de uma esposa para seu marido, olhar em que só haveria amor e procedamos
por absurdo. Tal esposa poderia dizer ao marido: “Eu o amo, mas fique claro que se você for mandado a
Madagascar, eu fico na Franca”? Dito de outro modo: ao mesmo tempo em que expresso o meu amor,
afirmo minha independência em relação a você. Evidentemente, tal atitude é impossível, impensável. Amar
é querer depender: amo-o, eu o seguirei ao fim do mundo, quero depender de você.
Em toda comunidade humana está implícita uma frase: quero depender de você. Por que atualmente tantas
comunidades nascem e morrem tão rapidamente? Por não haver essa afirmação de dependência recíproca.
Se, no amor humano, amar é querer depender, com muito mais razão isto é verdadeiro no tocante a Deus, em
quem o amor é vivido em plenitude. Não esqueçamos o “É TODO” e não saiamos da esfera do amor. Se
Deus é todo amor, é o mais dependente dos seres, é um infinito de dependência. O pai do pródigo depende
do filho; se o filho não voltar, ele chorará; se o filho retornar, ele estará na alegria (Lc 13).
Atentemos para uma ambigüidade que é preciso esclarecer, pois há dois tipos de dependência: é o bebê que
depende da mamãe, ou a mamãe que depende do bebê? No plano do ser e da vida, é a criança que depende
da mãe, mas no plano do amor, não será a mãe que depende do filho? A dependência da criança em relação
à mãe é estranha ao amor, à liberdade. Se a mãe não estiver presente para lhe dar o seio a criança certamente
terá fome. Mas no amor é a mãe que depende do filho, a partir do momento em que ela diz: és toda a minha
alegria. E se a criança respira mal, se está doente, se o medico demonstra preocupação, mamãe não vive
mais, tanto depende do filho. Deus é o mais dependente de todos os seres: dependente no Amor, não no Ser.
Humildade de Deus
Deus é humilde, o mais humilde de todos os seres. Não é só a Jesus, que dizemos: “Jesus, manso e humilde
de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso”, mas a Deus em sua profundeza. Mas é preciso evitar
um mal-entendido: Deus não é humilde no sentido de ser deficiente ou fraco. Nós somos humildes ao
reconhecer que somos uns pobres homens, mas não é absolutamente neste sentido que Deus é humilde, mas
no sentido de que o amor não pode olhar com pretensa superioridade.
Mais uma vez, partamos da experiência do amor humano. Vocês crêem que um homem é capaz de dizer à
sua mulher, no próprio ato de amar: “Eu a amo, mas não se esqueça de que sou superior a você, que sou
doutorado em filosofia e ciências, e que você não passa de uma costureirinha com certificado de primeiro
grau”? Acreditam que isto seria amor? Um olhar atravessado de superioridade seria um olhar de amor?
Certamente não. É preciso refletir sobre isto, durante muito tempo, durante a vida toda, para começar a
compreender que o amor é, precisamente, a vida cristã.
�Quando Jesus lava os pés dos apóstolos na Quinta Feira Santa, olha para eles de baixo para cima e
precisamente nesse momento revela-nos que é Deus. Buscamos Deus na lua, quando ele está lavando os
nossos pés. O lava-pés é uma lição de amor fraterno, porem, é mais que isso, é uma revelação, um
desvelamento de quem é Deus. Deus não pode deixar de se situar no último lutar. Seria impossível. De outro
modo não poderíamos dizer que Deus é amor. Se revirarem as coisas em todos os sentidos, não sairão disto.
A humildade de Deus é a própria profundidade de Deus.
Dirão vocês: mas afinal, Deus é maior que nós! Óbvio, é maior em amor, dado que ele é todo amor.
Portanto, em humildade, Deus é maior que nós, pois jamais seremos humildes como Deus é humilde. O
Deus em quem cremos é infinitamente humilde; em outras palavras, ele se despoja de todo prestígio. O
prestígio é sempre o não-essencial. Há em nós certa necessidade de prestígio, de simulação, de falsificação,
que não existe em Deus. Deus é a Plenitude da humildade.
Compreendo os jovens que mal suportam estas palavras da liturgia: “Vosso é o reino, o poder e a glória para
sempre”. Não digo que devamos suprimir estas palavras, que são tradicionais e não de ter o seu sentido. Mas
é preciso entender que o substrato da gloria é a humildade, sem a qual o amor não é verdadeiramente amor.
O amor que é todo amor não olha de cima. Não existe olhar de amor que seja um olhar de alto a baixo.
Inclinar-se para o povo não é amar o povo. Inclinar-se sobre uma criança não é amar a criança. Deus não se
inclina.
O que existe no coração de Deus é um poder anular-se a si mesmo. Acreditam que é necessário mais poder
para se impor ou para se anular? Minha experiência ensina-me que todo mais poder é preciso para se anular.
Ora, se Deus é todo-poderoso e se não posso compreender algo de seu poder senão a partir de minha
experiência, concluo que Deus é um Infinito Poder de anulação de si mesmo.
Vejam, pois, o que vem a ser a adoração! Deixo a vocês a seguinte imagem: pensem numa jovem simples,
uma camponesa de quinze anos. Imaginem um dom-juan que a viu, achou-a linda e a quer seduzir. Ele
descobre que ela se chama Maria e mora em Nazaré. Quanto mais ele se aproxima, mais constata que dela
emana uma tal majestade que todos os seus empreendimentos de sedução naufragam. É majestade perante a
qual ninguém pode senão se inclinar e o sedutor cai de joelhos diante da majestosa humildade dessa jovem
com um manto de lã. Para saber quem é Deus, avanço no mesmo sentido e, nesse momento, alcanço a Deus:
estamos longe de Júpiter, do paternalismo e do triunfalismo! Este é o Deus que Jesus Cristo nos revela.
Morrer e ressuscitar
Se nos contentarmos com o que foi dito, esbarraremos inevitavelmente numa temível objeção: ser divinizado
é impossível, pois Deus é exatamente o que não podemos vir a ser e Deus não pode o impossível. É um erro
crer que Deus pode tudo. Deus não pode fazer com que dois e dois sejam cinco ou seis, isso não é possível;
afirmar isto é espalhar palavras ao vento. Ao dizer que Deus é transcendente, dizemos precisamente que ele
é o Totalmente Outro, absolutamente outro e que entre Ele e nós existe um abismo rigorosamente
intransponível. Por conseguinte, ousar afirmar que a vocação do homem é vir a ser o que Deus é, ousar
afirmar que o sentido da existência humana é ser divinizada é dizer coisas que não se afiguram possíveis.
Transformação
Eis por que lhes faço a proposta de transformar a frase: “Nossa vocação é ser divinizados” na seguinte:
“Nossa vocação é ser divinamente transformados”. Ninguém vem a ser o que Deus é, avançando
tranquilamente ao longo de um plano inclinado. Ninguém desemboca, tal qual está, na própria vida de
Deus. É preciso uma transformação radical (entendo esta palavra no sentido mais estrito de radix, raiz). Para
tornar-me o que Deus é, o homem precisa ser radicalmente transformado.
�Do mesmo modo que a expressão-chave da primeira conferência é: É TODO, a expressão-chave desta é:
TRANS. Encontramos este prefixo em trans-formacao, trans-figuracao, trans-ferência, trans-porte, transsiberiano, trans-atlântico. Sempre que o prefixo trans intervém, há a morte de alguma coisa e o nascimento
de outra. O viajante transportado de Paris a Pau morre para Paris, para a vida parisiense e nasce para Pau.
Quando eu for transportado de Pau a Lião, morrerei para a capital do Béarn para renascer para minha cidade
de Lião. Não há “trans” sem a morte de algo e o nascimento de algo de novo. Eis porque, se nossa vocação é
ser divinizados, é inelutável que nosso destino se configure de morte e ressurreição.
É importante definir estes dois termos. Quando falo de morte ao longo desta exposição, não aludo
simplesmente à nossa morte final, à morte que está no fim da vida, ao fato de dar o último suspiro. Trata-se
da morte necessária, ao longo de toda a vida, da morte a si mesmo, da morte ao egoísmo, que se chama
sacrifício. Todos sabem que pôr uma criança no mundo e educá-la impõe sacrifícios. Ao falar de
ressurreição, não aludo a uma volta à vida após a morte, à vida que se levava antes de morrer. Ressuscitar é
passar para uma vida completamente distinta.
O que eu desejava lhes mostrar é que a passagem ou transporte para a vida divina, a própria vida de Deus
que se opera não só após a morte, mas ao longo de toda vida, implica sempre morte e novo nascimento, ou
ressurreição. Busquemos exemplos na vida cotidiana. Trata-se de compreender que crescimento não é
aumento de dimensões, mas sempre transformação. A ampliação só existe na ordem dos minerais. Quando
se tratar de um organismo vivo, principalmente animal, há transformação. Darei três exemplos elementares,
mas muito eloqüentes.
A menina que se torna mulher
A mulher não é uma menina grande. Uma mulher que fosse uma menina grande seria um monstro. Ela só se
torna mulher ao transformar-se, isto é, morrendo ao estado, à situação de menina, para nascer à situação de
mulher adulta.
Chegamos a um ponto capital. Se interrogássemos a menina e lhe perguntássemos o que poderíamos fazer
para agradá-la, ela responderia espontaneamente: eu queria se tão grande quanto minha mãe. Mas sem
suspeitar, nem por um segundo, que para isso seria necessário renunciar às bonecas, à vida despreocupada
para passar a algo absolutamente novo, o que não se faz sem sofrimento. Ela não sabe que para se tornar
grande, é preciso morrer ao estado infantil e nascer para o estado adulto.
Esta observação, aparentemente anódina, vai, na realidade, muito longe por contar um aspecto daquilo que
no mundo moderno se chama mito. Um dos aspectos essenciais do mito é ter sempre o homem uma
tendência para projetar o presente no futuro tal qual, sem transformação.
Neste sentido podemos dizer que há mito na Bíblia no plano da expressão. A Bíblia, efetivamente,
apresenta-nos a vida eterna como descanso, e tendemos a imaginar a vida eterna na linha do descanso que
experimentamos na vida terrestre, quando fatigados. Se soltarmos a imaginação, sem corrigi-la pela
reflexão, elaboramos a representação da vida eterna como um eterno far-niente. A liturgia, dirão vocês, nos
encoraja nesse sentido, visto que no ofício dos mortos, dizemos: “Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno”. Só
que a liturgia supõe que sejamos inteligentes, isso é elementar!
Apresentam-nos igualmente a vida eterna como festim, banquete, dado que na vida presente a refeição em
comum é sinal de fraternidade, de paz e alegria. Ao mencionar o festim eterno, fazem-nos projetar no futuro
o presente, tal e qual. Isso é propriamente mítico e é preciso reconhecer que a Bíblia, o próprio Evangelho e
a liturgia têm aspectos míticos que exigem séria crítica.
Não se escandalizem se lhes digo que a expressão bíblica deve ser criticada. A Palavra de Deus é palavra
humana; Jesus dirigia-se a homens de seu tempo e, desejando ser compreendido por eles, utilizava velhos
mitos que fossem significativos para eles. É próprio da teologia criticar, no bom sentido da palavra, isto é,
fazer a crítica, refletir, compreender o que há subjacente ao mito e fazê-lo de tal sorte que nossa imaginação
não ceda à tentação, propriamente infantil, de projetar no futuro o presente, sem transformação.
Tendemos a imaginar a felicidade do céu como uma ampliação do que chamamos felicidade aqui (descanso,
festim, etc.), quando na realidade a felicidade celeste é a própria felicidade de Deus. Ser divinizados, ir para
o céu, como diz o catecismo, não é galgar uma montanha, não é ir para um lugar, é participar da vida divina.
�Ora, Deus é todo amor, portanto a vida eterna consiste unicamente em amar, em sair de si, em não pensar em
si, em não se dobrar, nem recurvar-se sobre si mesmo, em deixar os outros passarem à frente. A felicidade
celeste é isso.
A lagarta que se torna borboleta
A borboleta não é uma lagarta grande, crescimento não é mero aumento de dimensões. Se a lagarta tivesse
consciência e se eu pudesse falar com ela, como num conto de fadas, eu lhe perguntaria qual o seu sonho.
Ela, sem dúvida, responderia, de modo crítico, que gostaria de ser a maior das lagartas da floresta, a rainha,
a imperatriz das lagartas, aquela que, devido ao tamanho e ao peso, reinaria sobre todas as demais lagartas
da floresta.
Isto é o que se chama de vontade de poder e não é diferente da ampliação daquilo que se é, sem
transformação. A lagarta não sabe que, para tornar-se o que deve ser, deve despojar-se do corpo de lagarta
para que um novo corpo lhe seja dado. Pois ela existe para se tornar borboleta, tal é a sua vocação. Só
quando se tiver transformado em borboleta é que será realmente o que deve ser.
O grão de trigo que se torna espiga
Inútil deter-nos em exemplos óbvios, quando Cristo Jesus em pessoa utilizou um exemplo extremamente
eloqüente, em João 12: a historia do grão de trigo. Jesus não desenvolveu esta historia, mas é fácil fazê-lo.
Se um de vocês tivesse talento literário, eu o aconselharia de bom grado a escrever a historia do grão de
trigo. Um escritor dinamarquês tentou fazê-lo outrora. Foi Joergensen, autor de uma vida de São Francisco
de Assis; ele escreveu admirável parábola sobre a história do grão de trigo.
O grão de trigo estava perfeitamente feliz em seu celeiro. Nenhuma goteira, nenhuma umidade, os
companheirinhos do monte d trigo são muito gentis: nenhuma discussão, tudo perfeito. Permitam-me dizer:
felicidadezinha de grão de trigo num celeiro. Entendam: felicidade humana, honesto bem-estar financeiro,
êxito nos negócios, boa saúde e assim por diante... Não devemos, certamente, desprezar a felicidade
humana, desejo a todos vocês que sejam felizes dessa felicidade do grão de trigo em seu celeiro, felicidade
pequena, em relação ao que devemos ser por toda a eternidade.
Imagino esse grão de trigo muito piedoso. Ele agradece a Deus: Senhor,agradeço o que me dás, essa
felicidade que me faz tão alegre em meu celeiro. Desejo que ela dure para sempre! Ele tem razão de
agradecer a Deus. Mas, atenção! Esse grão de trigo não se deveria dirigir a um Deus que não existe. Ora, de
um Deus que fosse apenas o autor e o fiador de uma pequena felicidade de grão de trigo num celeiro,
mesmo que tal felicidade seja perfeitamente legítima, eu diria: esse Deus não existe, é um ídolo. Eis
precisamente o Deus que tantos ateus, contemporâneos nossos negam. Podemos dizer que estão errados? E
se o grão de trigo se obstina em entoar cânticos, tomo de minha pena e escrevo um tratado para falar da
alienação dos crentes.
Um dia carregam o monte de trigo para uma carroça e saem para o campo. O campo é ainda mais belo e
agradável que o celeiro. Diante do céu azul, do sol e das flores, das arvores, planícies e montanhas, o grão de
trigo agradece ainda mais a Deus: “Senhor, eu vos agradeço, tudo isto é tão belo!” Ele tem razão. É preciso
agradecer a Deus pelas belezas deste mundo. Mas ele ainda é apenas um grão de trigo: um Deus que
permitisse ao grão de trigo permanecer sempre grão de trigo, num celeiro, sem nenhuma espécie de
fecundidade, tal Deus não existe.
Chegam à terra há pouco lavrada, despejam o monte de trigo ao solo: um arrepio... que frio! Pouco
imp0orta; é uma nova e agradável sensação. Eis, porem, que enterram o grão de trigo na terra. Ele nada vê,
nem ouve, a umidade penetra-lhe até o âmago. O grão de trigo que, pela morte inevitável, está em processo
de transformação, de tornar-se aquilo que deve ser, isto é, uma bela espiga, tem saudades do celeiro onde,
efetivamente, fora muito feliz, mas feliz de uma felicidadezinha humana. Precisamente nesse momento, ele
diz o mesmo que dizem em torno de nós milhões de homens: se Deus existisse, essas coisas não
aconteceriam. É pena, pois exatamente aí é que se trata do verdadeiro Deus: do Deus que o transforma, para
fazê-lo passar do estado de grão ao de espiga, o que só é possível por meio da morte. O Deus único que
existe é Aquele que nos faz crescer, passar de uma condição simplesmente humana para a condição de
homem divinizado.
�Eis a historia de todos nós, a condição humana. Não existe crescimento sem transformação, não há
transformação sem morte e novo nascimento. Por isso existem na história da humanidade três tipos de morte
e nascimento, três tipos de transformação, três páscoas típicas.
A palavra Páscoa provém de um termo hebraico que significa, talvez, “passagem”: pèsah em hebraico,
pascha em grego, pasqua em latim, páscoa para nós.
Em nossa vida existem duas passagens.
A primeira é o nosso nascimento humano: passamos do nada onde estávamos nove meses antes de vir ao
mundo à situação do bebê em seu bercinho. Passagem prodigiosa do nada à existência humana – existência
inteligente e livre. Mas esta primeira passagem é apenas condição de uma segunda.
A segunda passagem é a de uma existência humana à existência propriamente humano-divina. Esta é uma
passagem incomensurável em relação à primeira e não sabemos o que dizemos, nesse caso, ao pronunciar o
nome de Deus. É algo incomensurável passar do nada à existência humana, mas é uma enormidade ainda
maior passar da existência humana à existência humano-divina. A primeira passagem se dá sem nosso
assentimento, não nos pedem autorização par nos pôr no mundo. Lucrécio, antigo poeta latino – que era um
pessimista -, queixava-se disso num verso admirável, no qual dizia ter sido projetado “do ventre da mãe às
margens da luz” e acrescentava: “Mas tudo isto se fez sem mim”. A segunda passagem, porem, não se faz
sem nós, ela se realiza ao longo de toda a nossa vida.
Se fosse necessário traduzir em termos de espaço a diferença entre estas duas passagens, eu diria que a
distância entre o nada e a existência humana é comparável à distância entre a terra e o sol. E a minha
comparação seria ainda banal, porque a distância da terra ao sol é mensurável e mensurada, ao passo que a
distância até Deus não se pode medir.
Aproveito a ocasião para dizer-lhes, de passagem, que, segundo o cristianismo, a existência humana é
verdadeiramente sublime. Tornar-se o que Deus é, pensem nisso! Mas se a existência humana é sublime, é
também trágica e não é possível que seja de outro modo. Não há meio-termo entre ser divinizado e ser
condenado. O sublime não seria verdadeiramente sublime se o seu oposto não fosse trágico.
A Páscoa é esta segunda passagem e existem três Páscoas, três passagens transformantes ou transfigurantes
na história da humanidade.
TRÊS PÁSCOAS OU PASSAGENS TRANSFORMADORAS
Páscoa dos hebreus
É relatada no livro do Êxodo, do qual todo cristão deveria ler ao menos alguns capítulos, mesmo porque é
um
livro
que
se
lê
como
um
romance.
Os hebreus eram, no Egito, uma minoria oprimida. Penso que todos sabem o que são minorias,
freqüentemente exploradas (migrantes, sem terra, menores, negros...). Os hebreus tinham de transportar
palha e telhas para a construção de casas. Eram obrigados à corvéia e o seu salário consistia em magra
porção de cebolas, as famosas cebolas do Egito que hoje em dia são encontradas à venda nas ruas do Cairo.
Ah! Lá é que se sabe o que é pobreza. Lembro-me quanto me senti confuso, um dia, ao entrar numa
tabacaria e ingenuamente pedir um maço de cigarros: eu estava rodeado de árabes que não pediam um maço,
mas um cigarro apenas, e tive vergonha de ser tão rico a ponto de poder comprar vinte cigarros de uma vez!
Um dia o Faraó decidiu, como se diz na indústria – e a expressão ainda é atual -, aumentar a produção,
aumentando o trabalho sem aumentar os salários. Moises dirigiu-se a Deus (entenda-se: teve uma
experiência espiritual, o que é expresso na Bíblia sob forma de diálogo com Deus). Disse ele: “Isto é
intolerável, teu ovo é um povo de escravos”. E Deus respondeu: “Tens razão, não é possível dialogar com
um povo de escravos. Quero que meus filhos sejam homens livres. O que define o homem é a liberdade.
Farás com que passem (passagem, páscoa) do Egito da escravidão à Palestina da liberdade. A Palestina é a
terra que prometi aos teus antepassados, a terra em que serão homens livres”.
Podemos levar as coisas ainda mais longe e nos perguntar o que é a liberdade para um povo.
Essencialmente, é a prosperidade econômica e a independência política. Se uma desta faltar, a liberdade não
é total. A terra da Palestina será próspera: diz a Bíblia que é uma terra “onde correm leite e mel”. Quanto à
independência política, sempre que era ameaçada pelos egípcios, babilônios, assírios, Iahweh intervinha e
daí veio a historia do povo hebreu, tal como a conhecemos.
�Entre o Egito da escravidão, ou entre a situação de um grão de trigo num celeiro, e a Palestina da liberdade,
há um deserto imenso, o Sinai. Quarenta anos são necessários para atravessá-lo, número evidentemente
simbólico, que indica um tempo muito longo. Mais os hebreus avançam pelo deserto e mais se parecem ao
grão de trigo calcado na terra e mais saudades têm do tempo em que eram escravos no Egito, quando
recebiam, pelo menos, seu salário, sua magra porção de cebolas, ao passo que em pleno deserto, falta-lhes o
que comer. Começam, portanto, a se revoltar, e Moises deve aplacá-los com o milagre das codornizes, com
o milagre do maná e com o milagre da água que jorra do rochedo. Mais avançam mais calcinado é o solo.
Querem voltar atrás.
Notem, esse povo outrora escravo, caminhando agora para a liberdade, quer regredir à escravidão.
Conhecem a peça de Paul Claudel, intitulada Le livre de Christophe Colomb?
Jean Louis Barrault a montou soberbamente em Paris, há quarenta anos. Os marinheiros revoltam-se no
meio do Atlântico e querem voltar atrás, porque têm fome, porque têm sede e estão cansados.
Em Os Irmãos Karamazov, um dos maiores romances de todas as literaturas, diz um dos personagens de
Dostoievski, o Grande Inquisidor: “Se disser ao povo para escolher entre a felicidade e a liberdade,
infelizmente, ele é capaz de escolher a felicidade”. A felicidadezinha do grão de trigo no celeiro. A
felicidade de um povo que por nada é responsável, que não participa da vida da nação, que não assume
responsabilidades (responsabilidades sem as quais não se é plenamente homem) e que se acomoda numa
vida extremamente medíocre, contanto tenha onde morar, o que vestir, o que comer. Eis a desgraça! Quando
for preciso decidir entre felicidade e liberdade, preferir a felicidade irrisória à felicidade de ser um homem
livre.
Finalmente Moisés consegue fazer o povo segui-lo até a Terra Prometida, isto é, a pátria da liberdade.
Impossível se desviar do deserto, nada resta a fazer. Os hebreus, com a impressão de se encaminharem para
a própria morte, estão se encaminhando rumo à verdadeira vida. Como o grão de trigo enterrado na terra crê
que vai morrer, quando realmente está para se transformar numa bela espiga, que não tardará a balançar-se
ao vento. Ninguém se transforma sem passar pela morte, pelo sacrifício de certo tipo de felicidade; digamos,
para ser claros, da felicidade egoísta. É preciso renunciar ao egoísmo para conhecer a verdadeira felicidade,
a própria felicidade de Deus, à qual somos chamados por toda a eternidade. É preciso passar pela morte para
alcançar a imensurável liberdade divina. Sem ser transfigurado, não se vem a ser homem livre pela própria
liberdade de Deus.
Páscoa de Cristo
Cristo reviveu, por conta própria, o que o seu povo vivera. Primeiro ele o fez de modo simbólico, ao passar
quarenta dias no deserto, no limiar de sua vida pública (quarenta dias que recordam os quarenta anos do
êxodo); mais tarde, não mais de modo simbólico e sim bem real, subindo ao Calvário: foi para a morte, na
verdade para a verdadeira vida, a vida ressuscitada no seio da Trindade, a vida mesma de Deus. A primeira
Páscoa era apenas uma imagem, a Páscoa de Cristo é a Páscoa central da história.
O Cristo, já o dissemos antes, é o homem, o Homem perfeito, aquele que vive o destino do homem em
plenitude, é o próprio Deus feito homem, que morre para ressuscitar, isto é, para “passar deste mundo ao
Pai”(Jo 13, 1). A ressurreição de Cristo não é um retorno à vida que fora sua antes de morrer, é a passagem à
vida de Deus. Após a ressurreição, o Cristo vive no seio da Trindade, as condições de sua vida são as da vida
divina. Ele tornou-se outro, não está mais, como estamos ligados a condicionamentos espaço temporais.
Reflitamos bem: o Cristo tornou-se completamente outro, mas não é outro, é o mesmo. Digamos como a
Paris das brumas de outono, que se torna completamente outra no verão, transfigurada pelo sol, mas
permanece a mesma Paris. O Cristo ressuscitado não deixa de ser homem. Conforme escreveu Romano
Guardini, de todas as religiões, “só o cristianismo ousou colocar o corpo (humano) nas mais recônditas
profundezas de Deus”. O Cristo não foi despojado de sua humanidade ao ressuscitar, não rejeitou a “carne”
ao ressuscitar, como poeira inútil. Cristo ressuscitado é Homem-Deus por toda a eternidade. Após a
ressurreição, a Trindade não é mais Pai, Filho e Espírito Santo; é o Pai, o Cristo e o Santo Espírito.
Ressuscitado, o homem - Jesus vive no próprio seio da Trindade. Por que haveria Deus de fazer-se homem,
senão para nos arrastar com Ele, para que “por Ele, com Ele e nEle”vivamos no seio da Trindade, da vida de
Deus? Vale a pena dar a vida para que os homens o saibam e para que tenham essa esperança.
�Nossa Páscoa
A terceira Páscoa da história é a nossa e não há senão uma. Quero dizer que cada uma de nossas decisões é
uma páscoa, ou melhor, é uma forma de morte e ressurreição.
1) A importância de nossas decisões
De início, é preciso compreender que o importante em nossa vida são as decisões. Minha vida real de
homem ou de mulher, ou, se quiserem, o que há de humano em minha vida é um tecido de decisões. O que
na minha vida não é decisão nada é, nada constrói, é estofo (penso na palha que se coloca nos pacotes, para
evitar estragos aos objetos preciosos). Agostinho tem comparação mais poética: “Somos comparáveis, diz
ele, a uma harpa, e a única coisa importante de uma harpa são as cordas. Existe certamente toda uma
construção, mas as cordas é que vibram. Em minha vida o que vibra, o que me constitui são as minhas
decisões, pequenas ou grandes”.
Há pequenas decisões, aparentemente insignificantes: a decisão de fazer um favor a um vizinho doente, a
decisão de renunciar a um passeio, para passar um dia no hospital, junto a um companheiro ferido, etc. Se
me dirigisse a crianças, diria: decisão de ceder o lugar no ônibus ou no trem, decisão de pegar o bife menor
da travessa, deixando o maior para quem vier depois de mim, etc. É um sacrifício, uma morte. Para a
criança, fazer isto é morrer ao próprio egoísmo.
Há grandes decisões, que orientam toda uma vida: decisão de casar, decisão de entrar para o seminário ou
para a vida religiosa, decisão de renunciar à mulher que não é aquela a quem jurei fidelidade: é terrível,
dilacerante dever renunciar a um homem ou a uma mulher que se ama: as pessoas me têm falado sobre isso.
É o mesmo que morrer! Se não se percebe como é terrível tal decisão, é porque não se é homem. Ora, o
padre deve ser um homem.
Entre as pequenas e as grandes decisões, há todo um espectro, mas o que na vida não é decisão ou ato livre,
ou opção, nada é. Ora, as decisões é que nos constroem. Dia após dia, minuto após minuto, exatamente,
decisão após decisão, é que construímos a nossa vida eterna. Por quê? Simplesmente porque o Cristo
ressuscitado está no centro das decisões que tomamos.
2) O Cristo está presente em nossas decisões
Façamos a seguinte pergunta: vocês crêem que o Cristo ressuscitou? Porque são cristãos, responderão: “Sim,
é claro”. Paulo afirma que: “Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé” (1Cor 15, 14).
Se o Cristo ressuscitou, está vivo? Vocês seriam obrigados a responder: sim. Dizer que ele ressuscitou é
dizer que está vivo.
Se está vivo, está presente. Onde querem que ele esteja? Não está na lua, não está em Sirius, não está atrás
das estrelas, não está no espaço que aqui nos separa uns dos outros (dado que haja ressuscitado, é estranho
ao espaço, nada tem a ver com ele). O Cristo está presente em nossa liberdade, visto que por ela somos
verdadeiramente homens e por ela emergimos da natureza.
Se está presente, ele é ativo, faz alguma coisa, pois presença inativa não é presença real. Recordo-me de uma
jovem que não conseguia compreender que o Cristo é ativo em nossa liberdade. Eu lhe dizia: “Afinal, não se
trata de uma simples acha de lenha!” E ela subitamente compreendeu: o Cristo não é uma acha de lenha, não
está por estar (no momento não mencionaremos a Eucaristia, dela falaremos mais tarde). O Cristo não está
num lugar diferente daquele em que estamos e não está em nosso fígado, ou no nosso pâncreas, está em
nossa liberdade. Não está na nossa liberdade enquanto dormimos, mas em nossa liberdade quando
realizamos atos livres, isto é, quando tomamos decisões.
Se o Cristo é ativo, ele é transfigurante. Que querem que ele faça, senão transfigurar? Ele é o Amor, e o
amor transfigura tudo o que toca. Olhem essa pobre moca, meio neurastênica, que não quer sair do quarto,
que se recusa a comer, que não dorme mais; eis que um dia encontra o príncipe encantado. Todo mundo diz:
que lhe ocorreu? Ela está transformada, o amor a transformou. O amor não pode deixar de transfigurar tudo
o que toca.
�Se é transfigurante, é divinizante. Uma vez que Deus é quem está presente em nossa liberdade, transfigurarnos é para ele divinizar-nos, fazer com que nos tornemos o que ele é.
Insisto, porque realmente sinto baseado em pesquisas que fiz aqui e acolá, que esta verdade absolutamente
central de nossa fé afigura-se difícil para muitos cristãos, ainda emaranhados em noções abstratas. Espero
que tudo o que lhes digo neste momento não lhes pareça difícil. Dizer que algum e está vivo não é abstrato
(uma presença é o que de menos abstrato há no mundo!). E dizer que Cristo está presente em nossos atos
livres, nas nossas decisões e que ele os transfigura tampouco é abstrato.
Não me venham dizer que sou um intelectual. Não me seria difícil demonstrar que vocês é que o são. Pois o
intelectual, no mau sentido, é aquele que utiliza palavras surradas até a trama, sem quebrá-las. E as palavras,
é preciso quebrá-las, como se fossem cofrezinho ou ovo de Páscoa, para ver o que têm dentro. Eu os forço a
quebrar palavras, isso é indispensável.
3) O Cristo diviniza nossa atividade humana humanizante
Esta fórmula, à primeira vista um pouco densa, não é abstrata, é tudo quanto há de mais real: o Cristo
outorga a nossas decisões humanas humanizantes uma dimensão divina. Em outros termos, ele diviniza o
que nós humanizamos.
Mas que querem que o Cristo divinize se nós nada humanizamos? Se permanecemos inertes” Se, sob
pretexto de não sujar as mãos, em nada tocamos de manhã à noite? Se nossa vida não é uma vida que
trabalha para transformar as relações entre as pessoas e entre as instituições sociais e políticas que
condicionam estas relações (pois as instituições podem ser tais que as relações serão necessariamente
desumanas)? Serão nossas relações realmente humanas e cada vez mais humanas? As decisões que tomamos
tendem a humanizar o mundo? No plano familiar, antes e depois no plano social e político? Por exemplo,
uma atividade sindical inteligente é uma atividade que tende a humanizar as relações dos homens entre si.
O homem não é o homem está para ser feito. Somos inícios de homem, diz Tiago (Tg 1,18). Somos esboços
de homem. Deus não cria o homem acabado. Ele tem horror ao que já está pronto. Deus cria o homem capaz
de se criar a si mesmo.
Nossa tarefa humana é criar o homem, ou fazer com que o homem seja. Não me venham dizer que o homem
é. Quem dentre nós ousaria levantar-se e dizer: “Sou um homem”? Quando vejo um bebê nos braços da mãe,
cumprimento a mãe e digo: “Ele é magnífico. Espero que faça dele um homem”. Ora, o que é absolutamente
evidente no que se refere a uma criancinha é verdadeiro para todo homem, em todas as idades. Há coisas que
já vêm prontas, mas o homem não é coisa, o homem está para ser feito. Nossas relações e instituições devem
se tornar verdadeiramente humanas, elas ainda estão em processo de humanização.
Somos homens em devir. Nossas decisões contribuirão para que sejamos homens. E nossas decisões não
serão verdadeiramente humanas se não forem humanizantes. Nossa humanidade passa pela humanidade dos
outros, nossa liberdade passa pela libertação dos outros. Não se vem a ser homem livre sozinho. Isso não
existe. Vem-se a ser um homem livre quando se trabalha para libertar os irmãos. Tornamo-nos mais homens
ao trabalhar para que o mundo se tornem mais humano.
Essas decisões humanizantes raramente deixam de ser sacrifícios, mortes ao egoísmo. Não é possível, a um
tempo, dar-se e guardar-se para si mesmo. Todo mundo sabe por experiência que não há vida humana
humanizante autêntica sem sacrifício. Contudo, o que os descrentes não sabem, e que nós temos de saber
(visto que para isso somos cristãos!), é que cada uma dessas decisões humanas humanizantes que, de algum
modo, fazem morrer nosso egoísmo são uma passagem para a vida divina, que algumas dessas mortes
parciais são um novo nascimento. A decisão tem uma estrutura pascal, estrutura de morte e de ressurreição.
Pois não passaremos à vida divina após a morte. Peço-lhes que eliminem do espírito a idéia de que Deus
despeja em nossa alma um licor ao qual chamaríamos graça, que nos permitiria, após a morte, ser
transportados para um belo jardim chamado paraíso. Isso é mitologia: e francamente, não se trata disso. A
vida divina, a vida eterna, a divinização não é apenas a vida futura, é a de já, a de agora. Tornamo-nos o que
Deus é, “vamos ao céu” por meio de cada uma de nossas decisões humanizantes.
Daí que a fórmula que prezo muito e que me basta pra ser cristão, ou melhor, para tentar ser cristão (a gente
faz o que pode). Quando me sinto tentado a deslizar pela rampa dos sonhos egoístas, quando me sinto
tentado a não dar o máximo no trabalho por um mundo mais humano, mais justo e mais fraterno, recordo
�essa frase e digo a mim mesmo: “Meu pobre amigo, mesmo assim é necessário que você ponha em prática o
que anda dizendo por toda a França!”.
Eis a fórmula: o Cristo ressuscitado, vivo – presente – ativo – transfigurante - divinizante no seio das
decisões humanas humanizantes, dá-lhes uma dimensão do Reino eterno, propriamente divina.
Parece que certas pessoas se chocam com a palavra “dimensão”, que, para elas, evoca quilômetros ou as
dimensões de um objeto. Ajudem-me a encontrar outra, há anos que procuro e não consigo. Um exemplo
pode auxiliar a compreensão das coisas. Pensemos num celibatário: sua vida tem uma dimensão filial (ele
tem pais); tem uma dimensão fraternal (ele tem irmãos e irmãs); tem uma dimensão nacional (ele é francês);
tem uma dimensão musical (ele gosta muito de música); uma dimensão profissional (ele é advogado,
médico ou marceneiro). Mas é celibatário, sua vida não tem, portanto, dimensão conjugal. Se este homem
vier a casar, sua vida adquirirá dimensão nova, absolutamente privilegiada, que vai mudar a sua existência.
E esta será a dimensão mais essencial.
O exemplo é esclarecedor: se há uma Igreja é para revelar aos homens que sua vida não é só vida humana. A
vida dos homens tem uma dimensão propriamente humano-divina. Assim, o Cristo está presente nas
decisões humanizantes daqueles que não o conhecem, por exemplo dos mais de um bilhão de chineses. Se
me fosse possível ir à China, diria estar indo não para salvar os chineses (Cristo me precedeu há muito
tempo), mas para revelar a eles Aquele que os salva, ou que os diviniza. Se me disserem que isso não tem
importância, responderei que vocês são sórdidos, que não amam verdadeiramente o Cristo. Se amo o Cristo,
quero torná-lo conhecido daqueles que o desconhecem, mesmo que sejam salvos sem o conhecer, com a
condição (como comumente se diz) de agirem de acordo com sua consciência, isto é, de que sua atividade
seja realmente humanizante.
Todas as vezes que tomo uma decisão pela verdade, pela justiça, pela liberdade3, em suma, por aquilo a que
chamam “valores”, o Cristo ressuscitado dá à minha decisão uma dimensão propriamente divina. Dizendo en
passant, ele só pode divinizar minhas decisões humanizantes. O pecado é aquilo que o Cristo não pode
divinizar por não ser humanizante; o pecado é aquilo que o Cristo não pode divinizar por não ser
humanizante; o pecado é sempre recusar a humanizar, é aquilo que é des-humanizante. Não se pode
compreender bem o que seja o pecado, se antes não se compreende o que é nossa vocação. Pois o pecado
consiste em negar-nos à nossa própria vocação. Ele é a recusa de nossa divinização e isto se traduz pelo
egoísmo sob todas as usas formas, ou seja, é o contrário do que Deus é.
Eis a páscoa da historia, e na historia há tantas páscoas quantas decisões humanas humanizantes. Dia após
dia, decisão após decisão, construímos uma eternidade humano-divina, mas essa eternidade só é humanodivina se o Cristo a construir conosco. Nós, cristãos, acreditamos que esse é o sentido de nossa existência e
que esse sentido é vivido no cumprimento de nossa tarefa humana. Se não fossemos nada alem de homens,
construiríamos apenas o humano e o humano extraído do verso de Valéry: “Tout va sous terre et rente dans
le jeu” (Tudo vai pra debaixo da terra e retorna ao jogo).
Mas Aquele que se fez homem para que o homem venha a ser Deus está no âmago de nossa liberdade e
transfigura divinamente nossa atividade humana humanizante.
Evangelho significa Boa Nova: é que Deus é todo Amor e é imensa a grandeza do homem, porque sua
vocação está infinitamente alem do que ele mesmo poderia imaginar ou conceber: ele é capaz de amar como
Deus ama.
�Primeira Parte
O Cristo
Verdadeiro Deus,
verdadeiro homem
�O NÚCLEO DO ENSINAMENTO DE JESUS:
O DISCURSO DA MONTANHA
Compreender o que Jesus diz neste grande texto é realmente atingir o núcleo do cristianismo. É um dos mais
importantes textos do Evangelho. Seria necessário deixar de chamá-lo de “Sermão”, pois essa palavra é
muito imprópria. Desse Discurso na montanha, que se encontra em Mateus 5, 6, 7) e em Lucas (6, 12-49),
destaca-se incontestavelmente uma unidade. Unidade de tom e unidade lógica. O pensamento do Cristo é
conduzido segundo uma lógica interna que é a mesma do cristianismo. Lógica de estilo de vida, da
qualidade da existência que Jesus veio instaurar. Numa palavra, a própria lógica do amor.
Ser cristão é partilhar a experiência do Filho
O Discurso é precedido de duas importantes notas em Lucas: Jesus passou a noite inteira em oração na
montanha (6,12) e, de manhã, escolheu doze discípulos a quem deu o nome de apóstolos (6, 13-14).
- Oração de Jesus: estamos diante de um grande mistério, o mistério da Trindade, Jesus se dirige ao Pai e ao
Espírito, que são outros sem ser outros em relação a ele (não há mais que um só Deus). Jesus se fez carne,
submeteu-se à lei da criatura, que é acolher antes de dar e tendo em vista dar: “Por mim mesmo, nada posso
fazer”, dirá ele, segundo João (5,30). O Discurso será um apelo à existência filial: ele falará a partir da
experiência, pois não imaginamos Jesus dizendo coisas das quais não tivesse experiência, ou que não tivesse
vivido. Ele convidará a partilhar uma experiência, a sua, da filialidade, do filho que é apenas filho. Isto é
importante se quisermos sair das abstrações e compreender, de uma vez por todas, que tudo é questão de
experiência.
- Escolha dos apóstolos: porque o ensinamento de Jesus será um convite a partilhar sua experiência de
filialidade, o amor vivido primeiramente como acolhimento (o Filho recebe o Pai), é preciso que os homens
que terão de proclamar essa Boa Nova, de que Deus é Pai, sejam os primeiros a partilhar a experiência de
seu Mestre. Daí em diante os Doze seguirão Jesus por toda parte. Marcos define com precisão: “E constituiu
Doze, para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar”(Mc 3,14). A doutrina de Jesus n ao é uma
filosofia e sim uma experiência de vida; os apóstolos de Jesus, portanto, não podem ser propagandistas de
uma filosofia, de um sistema de pensamento. Não poderiam repetir as palavras de Jesus senão sendo
testemunhas de uma experiência, da experiência de uma certa relação com Deus. Durante a vida de Jesus, o
testemunho dos Doze será bastante imperfeito: “Serão tardos para crer, prontos para deformar, pesados de
carregar”, conforme escreveu J. Guillet. Mas após Pentecostes, o Espírito Santo, que é o Espírito de Jesus,
Aquele que, do interior, inspira e anima a atividade de Jesus, lhes permitirá reproduzir o modo de viver e
agir de Jesus, seu estilo de vida, a qualidade de sua existência, a vida vivida em plenitude, segundo a lógica
do amor. Faltasse isto e o cristianismo seria um sistema, ou melhor, uma coisa completamente diferente; ao
passo que, em se tratando de experiência, ele vale a pena!
O Evangelho é para todos
Para Lucas, como para Mateus, o Discurso se dirige aos discípulos, mas nesses dois evangelhos torna-se
claro que estava presente uma multidão inumerável, vinda de longe, não apenas de Jerusalém, mas da região
marítima de Tiro e Sidon (Sur e Saida, no Líbano atual). É que a mensagem que Jesus apresentará se não é
teórica (trata-se de experiência de vida), tampouco é esotérica (é para todos, não reservada a alguns). Jesus
dirá: “O que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados” (Mt 10,27). O Vaticano II dirá como
num eco: “A Igreja é para todo o mundo”. É para a inumerável multidão dos discípulos que estão ao lado de
Jesus, na qualidade de discípulos; e o que Jesus vai dizer aos discípulos interessa a todos os homens. Se
existem discípulos, é para atestar aos olhos da multidão que a experiência de vida proposta a todos os
homens pode ser experimentada, porque alguns já o fizeram aceitando seguir a Jesus.
�O quadro que nos é apresentado é muito nítido. É o que pede Inácio de Loyola em seus Exercícios
Espirituais. Antes de ouvir, vejamos: aí está Jesus, com os discípulos agrupados em torno dele, e a multidão
acotovelando-se no meio da encosta no planalto (este detalhe é de Lucas). Vejamos:
Jesus
os discípulos
a multidão
O Santo
os santificados
os santificáveis
Deus feito homem
O homem livre
os divinizados
os já libertados
os divinizáveis
todos os “chamados à liberdade (Gl 5,13)
O Filho
perfeitamente filho
os que já fizeram
a experiência
de filialidade
a multidão dos chamados
a fazer essa experiência
O que vê a multidão? Ela vê a Jesus e os discípulos em torno dele. Os discípulos, ou antes, as pessoas que
ainda há pouco faziam parte da multidão, viviam como os demais, adotando o mesmo estilo de vida dos
demais. Agora esses homens pertencem integralmente a Jesus, vivem com ele, como ele, seguindo-o “por
toda parte”. A multidão, portanto, vê que ocorreu a esses homens algo que não ocorreu aos outros. É claro,
visível, é algo de algum modo inscrito no terreno.
Que vêem os discípulos? A multidão da qual saíram e para a qual serão enviados.
Que vê Jesus? Ele vê junto a si o núcleo de sua Igreja; e além, a grande Igreja, cujos limites quer que sejam
os mesmo do universo. Vê todos os que chama, por meio dos discípulos, a partilhar com ele a experiência de
Filho de Deus. Ele é o Enviado do Pai, os discípulos serão os enviados de Jesus (este é o sentido da palavra
“apostolo’). Ele sabe que seus discípulos serão rejeitados pelo mundo, como ele mesmo o será. O mistério
da Cruz, que é o próprio núcleo do Ato criador (quando Deus cria, arrisca a Cruz do Filho) será vivido por
eles e igualmente por Jesus.
Para evitar os contra-sensos das Bem-aventuranças
Então Jesus “abriu a boca”. Esta fórmula tradicional, utilizada por Mateus, ressalta a importância do que se
seguirá. É quase uma recomendação para fazer silêncio: calem-se, não se pode perder uma palavra. E as
primeiras palavras de Jesus, bem o sabemos, são as Bem-aventuranças. Há o deplorável hábito de isolar as
Bem-aventuranças daquilo que as segue, como se elas fossem um todo auto-suficiente, possuindo valor em
si e por si. Chega até a ocorrer, no espírito de alguns cristãos, que Bem-aventuranças e Discurso da
Montanha sejam sinônimos como se o Discurso fossem as Bem-aventuranças. Na realidade, estas ocupam
apenas dez linhas, ao passo que aquele se estende por três longos capítulos do Evangelho segundo Mateus.
É deplorável este hábito de separar as Bem-aventuranças de tudo o que as segue, pois isso conduz fatalmente
a um radical contra-senso quanto ao pensamento de Jesus. Como se a mensagem evangélica consistisse em
afirmar que tudo o que é preto subitamente tornou-se branco! Como se a desgraça (miséria, lagrimas, fome),
devesse doravante chamar-se felicidade! No extremo, chega-se a sacralizar, em nome do Cristo, o mal e o
sofrimento, ao mesmo tempo em que se desencoraja todo esforço humano que visa a deles triunfar: não
queiram enriquecer, pois Jesus disse: os pobres é são felizes. Acaba-se por permanecer passivo e resignado
diante da desgraça dos homens, pois Jesus teria dito que a desgraça, é, segundo ele, a felicidade.
O contra-senso é um fato, estamos pagando erros cometidos pelo modo com que se interpretaram as coisas.
Péguy tem sobre isto paginas de inaudita violência, em seu livro intitulado Jean Coste. Não é questão de
sacralizar a miséria, não é questão de dizer aos pobres, que não sabem como juntar as pontas do salário no
fim do mês: “Não se aborreçam, Jesus os declarou bem-aventurados porque são desgraçados!” Se as Bemaventuranças nos propusessem uma consolação vulgar, o cristianismo seria uma religião dolente e chorosa.
A verdade é que sonhamos com uma felicidade barata, feita de alegrias fáceis. Este é o sonho que Jesus veio
condenar, e o que ele propõe (eis o essencial!) é que o nosso apetite de felicidade seja transformado. Felizes,
�bem-aventurados aqueles cuja alma é bastante altiva para que seu desejo essencial seja viver como filhos do
Pai que está nos céus!
A pobreza, as lágrimas, a fome, a perseguição, não são condições para alcançar a felicidade que Jesus nos
traz. A desgraça não é uma espécie de pré-requisito, como se fosse necessário chorar e ter fome para
conhecer a verdadeira bem-aventurança. O Pe. Guillet escreveu frase, a meu ver, decisiva: “A miséria, a
escravidão, a fome, as lagrimas constituem para Jesus os diversos aspectos da desgraça do homem. Se ele
proclama felizes os que são atingidos por ela, é porque vem libertá-los... A originalidade do Evangelho não
consiste em afirmar que o que era preto subitamente tornou-se branco, mas em oferecer aos que estão em
desgraça uma saída nova e bem-aventurada”.
As bem-aventuranças comprometem o homem num processo de transformação da existência. Elas são um
comentário prévio ao mistério pascal, passagem da natureza para a historia ou para a liberdade, mistério do
arrebatamento a um eu pré-fabricado por nossa hereditariedade, por nosso meio e pela educação recebida.
Nosso desejo espontâneo e instintivo de felicidade é conforme a natureza, deve ser transformado para aceder
à verdadeira liberdade.
As bem-aventuranças são um apelo. Não formulam uma verdade de ordem geral ( os desgraçados são
felizes) mas comprometem com uma atitude, convidam a partilhar a experiência de Jesus. Ora, é a
continuação do Discurso da Montanha que dirá qual é esse novo tipo de existência que responde à
verdadeira grandeza humana e cuja conseqüência será a felicidade: não a felicidade barata, feita de alegrias
fáceis, mas a felicidade digna do homem, a felicidade ao modo da grandeza dos filhos de Deus, a felicidade
de amar e não a de ser cumulado. Que felicidade vocês querem? Felicidade de que natureza, situada em que
nível? Aí é que está. Pois existem níveis de felicidade, assim como no plano da cultura há musicas dignas do
que de mais profundo existe no homem e outras que se dirigem ao que o homem tem de mais epidérmico e
superficial.
Bem aventurados os pobres em espírito
Porque deles é o reino dos céus
Evidentemente, não se trata de traduzir pobres de espírito! “Em espírito” significa: na própria raiz, no âmago
do ser. A pobreza em espírito é interior ao amor. Amor sem pobreza não é amor (isto é ininteligível para
quem não passou pela experiência). Eis porque o próprio Deus é pobre: ele é estranho ao ter (Deus nada
tem), pois seu modo de existir é amar.
Ter uma alma de pobre (no sentido em que nos referimos à alma de um violino: é sem dúvida a melhor
tradução de “pobres em espírito”) é estar despojado de si e deixar-se questionar pelo outro, ao mesmo tempo
em que se confia nele para sua própria felicidade. As duas frases que definem o pobre são as seguintes: “Eu
te dou crédito”(Credo) – é a fé – e eu te encarrego de minha bem-aventurança”- é a esperança. Apoiado na
fé e na esperança, o pobre vive na caridade: pode servir. Pôr-se a serviço do outro, dos outros, pois está
desimpedido.
De um extremo a outro da Bíblia, o pobre de Iahweh é o servo de Iahweh; está, portanto, no Reino: felizes
os que têm uma alma de pobre, porque deles é o Reino dos céus. Vocês participaram dessa experiência,
desse estilo, desse tipo de existência? Se o fizeram, o Reino lhes pertence. Quanto aos outros, Jesus os
convida: se disserem “sim”, o Reino se tornará de vocês, isto é a relação de intimidade com Deus. A bemaventurança da pobreza domina todo o Evangelho. Ela seria impensável se o próprio Deus não fosse pobre,
ou melhor, absolutamente estranho ao ter: Deus nada tem, ele é tudo. Aquele que é tudo nada tem. E esse
tudo que ele é um tudo doado, pois ele é todo Amor.
Bem aventurados os mansos
Porque possuirão a terra
A mansidão está muito próxima da pobreza, a ponto de se poder indagar se a bem-aventurança dos mansos
não seria uma duplicação da dos pobres. A palavra hebraica anaw, efetivamente, significa a um tempo
mansidão e pobreza. É a renúncia a todo direito próprio, quando se está só em causa e se trata apenas de
uma questão de amor-próprio (na sociedade, porem, é necessária uma ordem jurídica, bem como a
autoridade que a proteja).
�A mansidão está vinculada à calma e à fortaleza de ânimo. É a caridade, não só de caráter, mas também de
inteligência. Ela leva a ouvir os outros e a compreendê-los, mesmo quando o pensamento deles difere ou se
opõe ao nosso (é o que faz com que um católico de direita leia Témolgnage chrétine e um de esquerda leia
La France catholique, para saber o que pensa “o outro” e tentar compreendê-lo). [ Entre nós se poderia falar,
aproximada e respectivamente, de Concilium e/ou Vida Pastoral e Pergunte e Responderemos e/ou
Communio]. A mansidão evita atitudes rompantes perante os imprevistos da história, ela permite inventar,
dia após dia, a resposta aos apelos dos eventos, os mais das vezes, imprevisíveis.
Bem aventurados os que choram,
Porque serão consolados
O melhor comentário, pelo menos dos tempos modernos, à bem-aventurança dos aflitos é, sem dúvida, o
grande texto de Péguy, Nous sommes des vaincus (de 1909): “Um secreto instinto, uma advertência secreta,
um remorso secreto advertem-nos de que há sempre alguma impureza no sucesso, uma grosseria na vitória,
uma certa impureza, ao menos metafísica, um resquício, um resíduo de impureza, uma impureza residual na
riqueza; e que é com pleno direito, portanto, que as grandes honras secretas da gloria, as honras supremas,
historicamente
sempre
couberam
ao
infortúnio”.
Péguy fala aqui como um profeta. Seu texto deve ser iluminado pelo de um filosofo (profeta e filosofo a
dizer a mesma coisa e o mesmo que o Evangelho: é maravilhoso!).
Demos voz a Jean Lacroix: “Em si o sucesso é bom, pois é o próprio sentido do esforço (faz-se esforço para
ser bem-sucedido). Pelo sucesso, ou melhor, pela vitória sobre o obstáculo, é que tomamos, sempre mais,
consciência de nós mesmo, e que mais criamos. Mas o sucesso (paradoxalmente) é, sobretudo o maior
revelador do fracasso... No caso de o sucesso fazer esquecer o fracasso, ele seria o pior dos divertimentos.
Os homens para os quais, como se diz, tudo dá certo e que não têm outro ideal além de triunfar, são
precisamente seres superficiais que jamais acederão à existência autêntica, não obstante pressentida pelos
evadidos, pelos distraídos, pelos desencorajados, pelos fracassados de toda espécie e que constitui seu
tormento.
Mais vale ainda ser o sobrinho de Rameau (que é o próprio tipo do fracassado, do romance de Diderot) ou o
vagabundo da esquina que M. Homais ou um novo rico (M. Homais, o imbecil que o gênio de Flaubert
tornou imortal, conforme dizia François Mauriac). E a grandeza de Don Juan não foi a de ser um homem de
sucesso, mas a de permanecer insatisfeito por todos os seus êxitos, a de perseguir em cada mulher um ideal
que jamais poderia atingir”.
Percebe-se, pois, em que sentido Jesus declara felizes os que choram, anunciando que serão consolados.
Como diz Bonhoeffer, teólogo protestante enforcado pelos nazistas, “os discípulos vêem que o barco no qual
ressoa a alegria da festa já fez água”. “Na musica de Schubert”, diz Julien Green, “a morte já está na dança”.
O homem não é para a morte e sim para a vida. Eis porque saber que se é filho de Deus é a verdadeira festa
humana e, para falar corretamente, a única. Jesus a oferece aos homens, é preciso acolhê-la, ou seja, fazer a
experiência da filiação divina: viver e não só pensar como filhos que têm um Pai.
Lembro-me de um padre a quem eu dizia espontaneamente quando o encontrava: “Como vai “. E ele,
invariavelmente, respondia: “Não posso ir mal, o Pai se ocupa de mim. E isso não se vê. É preciso crer, é
preciso experimentar. Definitivamente, não há experiência como a experiência de Jesus, pois, a rigor, ele é o
único a fazer a experiência da Paternidade de Deus e, confiados na sua palavra, cremos que o Pai se ocupa
de nós. De outro modo, como o saberíamos? Não se percebe facilmente que Deus se ocupa de quem está
para morrer de câncer num leito de hospital.
Há em Le soulier de satin, de Paul Claudel uma prodigiosa aproximação à bem-aventurança dos aflitos.
Prouhèze diz, pensando em Rodrigue, do qual está separada: “Se não lhe posso dar o céu, ao menos posso
arrebatá-lo à terra. Só eu posso oferecer-lhe uma insuficiência à medida de seu desejo”. Desgraçados, pois,
todos aqueles a quem a própria insuficiência jamais foi revelada! Em outros termos, desgraçados os
satisfeitos!
Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça:
eles serão saciados
�Ter fome e sede de justiça é o único modo de ser justos. Não se trata aqui, senão secundariamente, de justiça
social, trata-se antes de fidelidade. A fidelidade a si mesmo é jamais deixar de buscar ser. Procurar é uma
das palavras-chave da Bíblia. Jesus dirá: “Buscai e achareis”. “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua
justiça, o resto vos será dado em acréscimo. “ Mas estar satisfeito com o mundo e consigo é negar que
sejamos um infinito. Num sentido, a Igreja existe para contestar todas as sociedades, sejam quais forem, e
todas políticas, mesmo as melhores. Com sabedoria e discernimento, é claro, mas nunca o homem pode estar
plenamente satisfeito neste mundo. Pode-se dizer que o homem é um infinito côncavo que só pode estar
repleto por um infinito vivo que se doa.
Bem aventurados os misericordiosos:
alcançarão misericórdia
O misericordioso, segundo a etimologia da palavra, é o coração infeliz. É aquele que sofre com o sofrimento
dos outros. Aquele que não sabe “sofrer com” não pode acolher o dom de Deus, pois Deus é, em primeiro
lugar, aquele que sofre com o homem. O sofrimento de Cristo, sua paixão e morte na cruz, são o sinal
sensível da profundidade do amor de Deus, que sem dúvida poderemos chamar de sofrimento, algo de muito
misterioso, sem o que o amor não seria amor e que pode, só ele, nos revelar o sofrimento de Cristo.
A misericórdia implica preferência pelos pequenos, pelos fracos, pelos miseráveis, pelos doentes, pelos
solitários (um dos maiores sofrimentos humanos!), por aqueles que são humilhados, pelos que sofrem
violência, pelos que são vitimas da injustiça, que são atormentados e inquietos. Exatamente esse foi o tipo de
existência de Jesus: trabalhar para libertar aqueles que são escravos do que quer que seja; testemunhar que
não se é homem livre senão trabalhando para libertar os irmãos, pois não se pode passar à liberdade sem
passar ao amor. Não há liberdade fora do amor. Ser livere e amar é exatamente a mesma coisa.
Bem-aventurados os puros de coração:
verão a Deus
“Quem tem coração puro?”, indaga Bonhoeffer. “Aquele que não mancha o coração nem com o mal que
comete nem com o bem que faz.” Não manchar o coração com o bem que se faz, isso é divino, só Deus pode
concedê-lo. Não ser proprietário do bem que se faz, isso é ser puro ou, para falar abertamente, sem
subterfúgios: Ser puro é a atitude daquele que não se dobra sobre si, que não proclama os benefícios que faz.
Lembro-me do salvamento de uma menina quase esmagada por um trem. O homem foi heróico, arriscou a
vida. Quando lhe falavam disso, ele dizia: “É assim mesmo, não há nada demais. Vamos mudar de assunto.
Não tenho mérito algum”.
A simplicidade, no sentido exato do termo, é o contrário da duplicidade: não se olhar para si mesmo ao fazer
o bem, não se pôr num espelho, não se contemplar crescendo em caridade, como uma coquete diante do
espelho vendo o próprio embelezamento por meio de todos os artifícios que acrescenta a seu encanto
natural. A existência dupla é a existência mascarada: a máscara duplica o rosto (diz-se de certas pessoas que
têm muitas caras). Marcel Proust nos mostrou a que ponto a máscara, a maquiagem, a mascaragem –
máscara que adere à pele – é própria da vida mundana. Ele analisou as inumeráveis faces da inexistência ou
da existência mascarada. Nada mais multiforme do que algo que não existe, algo que não tem sentido,
significação: o in-significante. Deus ama nosso rosto único, não-mascarado, que é um rosto de pobre. Meu
verdadeiro rosto é aquele que Deus há de ver, que está face a face com ele, eternamente.
Bem-aventurados os artífices da paz;
serão chamados filhos de Deus
É preciso estar em paz consigo mesmo para trabalhar pela paz entre os homens. Estar em paz entre os
homens. Estar em paz consigo é estar interiormente unificado. E isto não contradiz a insatisfação básica com
tudo o que é meramente humano. A auto-satisfação seria um falso princípio de unidade.
Estar em paz consigo mesmo é situar-se para além das oposições secundarias da superfície, é até certo ponto
conciliar o que se afigura inconciliável aos espíritos superficiais e gera, falando em termos modernos, os
progressistas e os tradicionalistas, os nacionalistas e os internacionalistas, os de extrema-direita e os de
�extrema-esquerda, os místicos e os polemistas, em suma, tudo o que é “sectário”porque unilateral, tudo o
que transforma dualidades em dualismos. No tempo de Jesus, eram bem conhecidas as gritarias das seitas
religiosas. Para ser chamados “filhos de Deus”, ou melhor, para ser declarados filhos pelo próprio Pai, era
preciso trabalhar para que os homens fossem irmãos. Se o filho não for verdadeiramente filho, os homens
não serão irmãos para ele. Isso só é possível quando, estando em paz consigo mesmo, estando interiormente
unificados, vocês trabalham pela paz universal.
Bem aventurados os que são perseguidos pelo Cristo
Jesus conclui: se aceitarem viver essa experiência, vocês serão perseguidos. É inevitável. Pode-se traduzir,
se a palavra “perseguidos”causa espécie, “proscritos”. Jesus não diz aqui, mas talvez pense (e o dirá mais
tarde): como eu serei perseguido, proscrito. Porque um cristianismo que não escandaliza tem poucas chances
de ser autêntico. Dizia Baudelaire, no plano estético, que o belo é sempre estranho. Seria necessário que nos
déssemos conta de que o verdadeiro também é estranho. Ora, os homens ano amam o que é estranho. A
moda é a rejeição do estranho. Há certa estranheza ante o verdadeiro, como existe a estranheza ante o belo.
Emmanuel Levinas escreveu sobre o assunto frases decisivas: “A idéia de uma verdade perseguida é a única
modalidade possível da transcendência (o que significa que um Jesus que não houvesse sido perseguido não
seria a Testemunha do Deus transcendente, o que é impossível)... Manifestar-se com humilde, como aliado
do vencido, do pobre, do proscrito, é precisamente não integrar-se à ordem... O humilhado desconcerta
absolutamente: ele não é do mundo... A perseguição e a humilhação à qual ela expõe são modalidades do
verdadeiro”. Se vocês não forem de nenhum modo perseguidos, acautelem-se, pois se arriscam a viver em
pleno artifício, ou à flor da pele. Milhares de pessoas tentam tocar, a um tempo, dois teclados: o da
sabedoria de Cristo e o da sabedoria do mundo. Não é possível. Quem preferir o teclado da sabedoria de
Cristo será proscrito, por impedir as pessoas de andar em redor.
No fundo, embora haja em Lucas quatro bem-aventuranças e em Mateus, oito, elas são uma só: bem
aventurados os que fazem a experiência da existência verdadeira. Fazer tal experiência é, a um tempo e
indivisivelmente, a felicidade e a cruz, as duas juntas. Pois o cristianismo é a estreita ligação entre felicidade
e cruz. Para aceder à mais alta felicidade é preciso renunciar à felicidade demasiado fácil, à felicidade
frívola. O que classificamos como felicidade do céu é a felicidade de amar, ou melhor, a de sair de si, a de
não pensar mais em si, a de não estar mais curvado sobrre si mesmo. Como querem que, neste mundo, a
aprendizagem de tal felicidade deixe de ser um sacrifício? Pois se, espontaneamente, pensamos apenas em
nós mesmo, se espontaneamente, mesmo no amor humano, o outro é apenas um meio privilegiado para o
amor que dedicamos a nós mesmos... A cruz é a superação das felicidades baratas e o acesso à grande
felicidade, única digna dos filhos de Deus, a felicidade de amar. Mas o acesso a essa felicidade passa pelo
sacrifício, o que todos nós experimentamos, uns mais, outros menos, na vida cotidiana.
A nova lei: dar como Deus dá
Às bem-aventuranças, seguem-se os mandamentos da nova Lei que se resume nisto: havendo recebido, é
preciso dar. O acolhimento se dá em vista do dom. Acolher para dar. Mas acolher o quê? O que é que Deus
dá? Nada pronto. Deus nos dá tarefas a cumprir.
“Dar”, segundo o Pe. Guillet, “constitui um dos grandes refrões do Discurso da Montanha: ‘Não recuse...,
não reclame..., empreste sem nada esperar em troca..., dê e lhe será dado’. Mas cuidado: dar pode ser um
meio de conquista, de valorização de si ( há quem sente se valorizar sendo generoso). Só o pobre está em
condições de conhecer a pura alegria de dar, de unir-se a quem recebe, porque fez a experiência das bemaventuranças e percebeu o modo pelo qual Deus se dá”.
Dar como Deus dá (ele não proclama seus dons), eis o que é ser o sal da terra e a luz do mundo. O
Evangelho é sabor e luz, pois é a Presença e o Poder transformantes de Deus, captados nas vidas humanas.
Quando o sal se torna insípido, ou antes, quando o padre não é verdadeiramente padre, quando o religioso
não é verdadeiramente religioso, quando o cristão não é verdadeiramente evangélico, o discípulo deixa de
ser o que há de melhor para se tornar o que há de pior: sal insípido que só serve para ser calcado aos pés.
Não desperta o menor interesse, pois francamente não é nada. É uma hesitação perpétua em ser algo, ou
antes, alguém.
�A nova lei: apelo à liberdade
O que caracteriza a nova Lei é, a um tempo, o radicalismo de suas exigências e o apelo à liberdade com
relação à letra. Liberdade com relação à letra da Lei, o que não significa alforria nem emancipação. Jesus diz
expressamente que não veio “abolir” a Lei e sim “cumpri-la”. Não acrescentar novos preceitos, propor
acréscimos à Lei, mas revelar o verdadeiro alcance da Lei, demonstrar que ela contém o princípio de sua
própria superação.
O mandamento do amor, primeiro do Decálogo, âmago da Lei, é por si mesmo limitado. Não há limites para
o amor. Porque o amor é um absoluto, suas exigências são radicais, ao mesmo tempo que só a liberdade
pode determinar como, na prática e segundo que circunstancias o amor deve ser vivido. No Discurso da
Montanha, primeiro, a exigência é radical; segundo, vocês são livres quanto ao modo de viver esse
radicalismo da exigência. Eis porque tantas pessoas temem a liberdade e pedem sinais que Jesus não dá,
recusa-se a dar. Jesus simplesmente mostra a profundidade da liberdade do homem.
Por isso ele ressalta firmemente a oposição entre: “Vos foi dito...” e “Mas eu vos digo...” O que disseram a
vocês e que lhes digo?
- Disseram: “Não matarás”. Mas eu digo: “Quem quer que olhe para seu irmão com cólera já é um
homicida”. Porque amar é querer que o outro seja, que seja o mais possível; que viva o mais intensamente
possível. O olhar, a palavra de cólera vão de encontro à vida do irmão, de encontro à existência dele. Olhar
“atravessado”(como se costuma dizer) é, no fundo, querer que ele não seja, é tender, por pouco que seja, à
sua aniquilação. É anulá-lo em pensamento e, com o mesmo golpe, colocar-nos acima dele, é considerar
nossa vida mais valiosa que a dele.
- Disseram: “Não cometerás adultério”. Eu, porém, digo: “Aquele que olha para uma mulher desejando-a já
cometeu adultério com ela em seu coração”. Com efeito, assim como existem olhares que matam, que
anulam o outro, há olhares que possuem, que transformam o outro em algo tido como próprio. É considerar
a mulher objeto do qual se é o proprietário.
- Disseram: Amarás teu próximo e odiarás teu inimigo”. Eu, porém, digo: “Amem os seus inimigos e orem
pelos que os perseguem”. Porque o amor não será verdadeiro amor enquanto condicionado a uma exigência
de reciprocidade: “Amo-o apenas porque me ama; não o amo com a condição de que me ame, não o amo
para que me ame. Amo-o mesmo que não me ame, não o amo para que me ame. Amo-o mesmo que não me
ame. Amo-o mesmo assim. Meu amor é mais forte que sua indiferença, mais forte até que sua hostilidade.
Meu amor não oscilará segundo as vacilações de sua resposta. Trata-se de uma exigência ilimitada, de uma
ascensão sem teto. O único teto, que não é teto, é a perfeição do Pai. “Sejam perfeitos como seu Pai celeste é
perfeito”. Só existe um meio de atingir a perfeição do Pai: jamais deixar de tender para ela.
Dirão alguns: “Não estaremos em plena utopia? Pode-se praticar tudo isso? “E a tentação será responder:
“Sim, é mesmo utopia, é impraticável”. E com razão aparente. Porque isso de dar o manto a quem pede
apenas a nossa túnica, dar a face esquerda a quem nos deu um tapa na direita, extirpar o olho e cortar a mão,
privar-se do necessário por alguém que nos pede o supérfluo e não mais se pertencer, a deixar-se devorar em
vida.
O que fazer? Vamos edulcorar esses preceitos, tomar a iniciativa de baixar os níveis, sempre na pretensão de
ser discípulos de Jesus? Certamente não. Nada de hipocrisia, nada de mentira, nada de duplicidade: não se
pode, ao mesmo tempo, chamar Jesus de sonhador e declarar-se “cristão”, pois seria indigno de um homem
ser discípulo de um sonhador. Aliás, todo o contexto da vida e ensinamento de Jesus manifestam claramente
que ele é o contrário de um sonhador.
Não se deve, portanto, edulcorar nada: Jesus sabe o que diz. Mas não se deve também esquecer que ele apela
à nossa liberdade. Poder-se-ia dizer que não é ele, Jesus, o exigente e sim nós que o somos sem saber. Nós é
que mascaremos para nós mesmos as nossas exigências, porque as tememos, porque receamos ter de nos
tornar homens. Jesus apenas nos revela a nós mesmos, desvela a grandeza de nossa liberdade, arranca as
máscaras fabricadas por nossas mãos, por medo, por egoísmo. Ele nos diz: você vale mais do que imagina,
sua grandeza supera a consciência que dela adquiriu. Viva segundo essa grandeza; quanto mais fizer a
experiência dessa vida, mais se aperceberá de que é grande e essa grandeza é uma exigência. Descobrirá até
onde a liberdade pode conduzi-lo se rejeitar as máscaras.
�A nova Lei, o cristianismo, não pode ser apenas uma lista de preceitos. Ela é auxiliada por exemplos típicos,
o desvelamento dos ilimitados horizontes da grandeza humana. Temos só de ouvira a nossa consciência,
quando chegarmos a compreender o que valemos e o que realmente queremos, quando descobrirmos que as
exigências não provêm do outro, são nossas próprias exigências. É uma grandeza sem limites, vivida na vida
mais humilde e mais cotidiana. Horizonte ilimitado, no âmago dos mais familiares horizontes: o lar, os
vizinhos, o bairro, a profissão... Jesus nos diz tudo de que um homem é capaz na vida mais simples, na
condição de filho de um Deus que é Pai.
Eis porque é preciso que nos guardemos de oferecer a Deus uma espécie de demissão, que confundiríamos
com obediência. Devemos oferecer a Deus a construção, dia após dia, de nossa liberdade, para que esta
venha a ser verdadeiramente, não uma liberdade de escravos, mas a liberdade de filhos.
“CRISTO MORREU POR NÓS”
QUE SIGNIFICA ISSO?
Todas as espiritualidades juntam-se aos pés da Cruz de Cristo. Múltiplas vias abriram-se no decorrer dos
séculos para encaminhar o homem a união, tão íntima quanto possível com seu Deus. Alguns seguem a rota
traçada por João da Cruz e Teresa de Ávila; outros preferem seguir Domingos, outros, Francisco de Assis,
outros, Inácio de Loyola, outros, Francisco de Sales, sem contar os que seguem o Pe. De Foucauld. Mas
existem também os caminhos que não levam a parte alguma e se perdem nas areias da ilusão. Há o autentico
e o aberrante. Creio que se pode dizer que o critério seguro, o único critério de autenticidade espiritual é a
Cruz. Tudo o que conduz à Cruz é seriamente cristão. Tudo o que elimina ou contorna a Cruz é da ordem do
pseudo ou do ersatz.
O sentido da Cruz ainda está por ser compreendido. A morte de Cristo à altura dos 30 anos é um
acontecimento histórico situado e datado, mas que significa? Em si, não é mais que o “fracasso um tanto
banal de um pregador ambulante”, conforme Duquoc, que se pretendia profeta e Messias de Israel. Sofreu
sob Pôncio Pilatos, morreu e foi sepultado. Por ter ocorrido como conclusão de um processo bastante
rumoroso na província romana da Judéia, a tradição judaica registrou o fato, e até o historiador latino Tácito,
em seus Anais. Para nós, cristãos, este acontecimento é o centro da historia. Confessamos este evento
particular (como o são todos os eventos), como tendo significação universal. Que significação? Só quem não
desce além da superfície não se poria esta questão.
APRESENTAÇÃO RUDIMENTAR DO MISTÉRIO DA REDENÇAO
Esta questão é proposta hoje e tanto mais profundamente porque se sabe que a crise da Igreja impõe, para
alem dos múltiplos problemas que implica, uma rigorosa rescentracão ou melhor, uma re-descoberta do
Centro. Ora, o Centro não pode estar noutra parte. O que impressiona desde o início nos muitos ensaios
teológicos atualmente publicados, principalmente na Alemanha e na França, é que todos eles rechaçam uma
certa apresentação do mistério da Cruz que marcou nossos antepassados e marcou-nos também, de onde se
infere que ela deformou as coisas.
Eis como se expressa sobre este assunto o cardeal Ratzinger, arcebispo de Munique: “A consciência cristã
foi neste ponto, em larga medida, marcada por uma apresentação extremamente rudimentar da teologia da
satisfação de Anselmo de Cantuária (1033-1109)”. Peço que anotem as expressões empregadas por
Ratzinger: é um teólogo de peso. Ele não questiona propriamente a concepção atribuída a Anselmo, mas
emprega a expressão “apresentação extremamente rudimentar da teologia de Anselmo” e acrescenta:
“Para muitos cristãos, sobretudo para aqueles que conhecem a fé de longe, a cruz se situaria no interior de
um mecanismo de direito lesado e restabelecido. Seria o modo de a justiça de Deus, infinitamente ofendida,
�ser novamente reconciliada por uma satisfação infinita... Certos textos de devoção parecem sugerir que a fé
cristã na Cruz se representa um Deus cuja justiça inexorável reclamou um sacrifício humano, o sacrifício
do próprio Filho. Esta imagem é tão difundida quanto falsa. A Bíblia não apresenta a Cruz como parte de
um mecanismo de direito lesado” J. Ratzinger – A fé cristã ontem e hoje. Fiz questão de citar uma grande
autoridade em teologia.
A justiça divina exige a morte de Cristo?
A idéia é clara: o Cristo haveria substituído a humanidade pecadora, teria tomado sobre si o castigo a ela
destinado, teria feito de sua vida um sacrifício de expiação. Sublinhem nitidamente estas palavras, que
corremos o risco de manipular sem quebrar. A humanidade pecadora deve ser castigada: estamos diante de
um Deus que castiga. Se Deus castiga, não é certamente por prazer; isso não pode ser de sua parte nem
mesmo uma medida arbitrária, pois medidas arbitrárias são próprias de tiranos e Deus não é um tirano. Se
ele castiga é porque “deve castigar”, é o que a sua justiça exige. Ora, o Cristo substitui a humanidade para
sofrer esse castigo. Se morre não será portanto devido a faltas suas (ele é inocente), mas devido às nossas
faltas. Ele expia em nosso lugar.
Muitas vezes se empregam as palavras “reparação”e “compensação”. Costuma-se dizer: a ofensa feita a
Deus deve ser reparada. A homenagem que os homens recusaram prestar a Deus por causa de seus pecados,
Cristo, que é isento de pecado, a oferece em compensação. Tais são as principais palavras de um vocabulário
outrora corrente nos catecismos e manuais de devoção. Recapitularei: justiça, castigo, substituição,
expiação, reparação, compensação.
Para justificar todas estas palavras, o raciocínio é mais ou menos esse: o castigo deve estar à altura da falta.
Efetivamente, Deus não pode aplacar a cólera senão quando o castigo requerido pela transgressão for
cumprido. Mas visto que a ofensa foi feita ao próprio Deus, o homem é incapaz de oferecer uma reparação
suficiente. Deus é o infinito, o homem, finito. É, por isso, impossível que a justiça de Deus seja satisfeita.
Eis porque o cristo – que é homem, sendo Deus – substitui os homens para oferecer a Deus uma expiação
digna dele, melhor, uma expiação de valor infinito. O amor de Deus pelos homens se manifesta na
substituição imaginada para satisfazer sua justiça.
O essencial, portanto é a reparação. Não pode haver reparação senão por meio de uma compensação
oferecida à justiça de Deus. Essa compensação toma a forma de uma pena aceita pela própria vitima, e por
isso é designada em termos de satisfação ou expiação. Vejam então que o Cardeal Ratzinger tem razão ao
dizer que tal apresentação do sentido da morte de Cristo é “extremamente rudimentar”. Mas isto é muito
pouco. E por isso ele acrescenta: “Desviamo-nos horrorizados de uma justiça divina cuja cólera sombria
retira toda credibilidade à mensagem de amor.”
“Com efeito, reflitamos: dizem-nos que Deus não podia perdoar o homem sem que antes sua justiça fosse
satisfeita. Devemos, pois, concluir que Deus não é um infinito de gratuidade. Deve-se fazer intervir, numa
fase algo intercalar do processo do perdão, uma “justiça”que aparece inevitavelmente como um limite ao
amor. Vocês depositam em Deus um amor limitado pela justiça. Se a justiça de Deus exige uma
compensação pelo pecado, pode-se ainda, na estrita acepção do termo, falar de perdão? Isto significaria
que Deus não pode dar livre curso a sua misericórdia, a não ser que tenha sido previamente “vingado”.
Estabeleceu-se em Deus um certo conflito entre uma justiça vindicativa e um amor paternal; e o amor
paternal é limitado pela exigência da justiça vindicativa. O sangue de Jesus derramado no Calvário é,
então, o preço da dívida estabelecida por Deus em compensação pela ofensa infligida a sua honra pelo
pecado dos homens”. Elementos da doutrina cristã, II, página 60.
Contudo os textos do Novo Testamento...
Não se pode ser insensível a tudo o que há de inaceitável em tudo isto. Mas é preciso reconhecer que os
evangelhos e Paulo aparentemente autorizam o emprego de todas estas palavras: expiação, satisfação,
compensação, substituição. Com efeito, lemos em Marcos: “Pois o Filho do Homem... veio para dar a sua
vida em resgate de muitos”(10,45). Resgate? Busco o sentido exato da palavra num bom dicionário do Novo
Testamento. Eis o que encontro: “Soma em dinheiro entregue pela libertação de um prisioneiro de guerra ou
pela remissão de um escravo” (donde a palavra redenção, que significa remissão: o Cristo nos redimiu,
�comprou novamente). Que significa essa expressão? Não se pode simplesmente apagar esse texto de
Marcos, de cuja autenticidade não se duvida.
E menos ainda, porque vinte anos antes de Marcos, Paulo expressara a mesma idéia e quase nos mesmos
termos: “Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele queria
assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, no tempo da
paciência de Deus; ele queria manifestar a sua justiça no tempo presente para mostrar-se justo e para
justificar aquele que é pela fé em Jesus” (Rm. 3, 25). Eis um texto que introduz ineludivelmente tudo o que
se gostaria de afastar: sangue, vítima, justiça, punição. Tudo está aí. Ou ainda: “... Cristo se entregou por nós
a Deus, como oferta e sacrifício de olor suave” (Ef. 5,2). E acima de tudo temos a Epistola aos Hebreus, na
qual o autor, para dar o sentido da morte do Cristo, refere-se continuamente aos sangrentos sacrifícios do
Antigo Testamento. Nada disso pode ser apagado.
Estaremos num círculo vicioso? Estaremos condenados ou a rejeitar as palavras de Marcos e de Paulo, ou a
afirmar como dado de fé aquilo que só pode causar revolta aos nossos contemporâneos? Pois, como muito
bem expressou o Pe. Duquoc, Bossuet, ao explanar que “Deus saciava sua vingança em Jesus”, conforme o
nosso humor, nos revolta ou diverte. Revoltados, sim. Com que direito emprestar a Deus sentimentos que o
desonram e supor que sejam necessários à nossa salvação? Diverte-nos, por outro lado, saber que essa
substituição de Cristo pelos pobres homens, impotentes para reparar o próprio pecado, afigura-se como algo
de totalmente gratuito e abstrato.
A verdade é que, de início, a Cruz de Jesus pareceu aos apóstolos um revés derrisório. Haviam seguido Jesus
acreditando ter encontrado nele o rei sobre o qual ninguém poderia triunfar e eis que contrariando todas as
expectativas, haviam-se tornado os companheiros de um homem condenado e executado. Vocês dirão: A
ressurreição os esclareceu; após as aparições, reencontraram a antiga segurança; estão agora certos de que
Jesus é mesmo o Rei em que haviam crido. É verdade. Mas o que parecemos não ver é que foi necessário
muito tempo para que os apóstolos compreendessem para que servia a Cruz. A Cruz serve para quê? O
Ressuscitado diz aos discípulos de Emaús: “Não era necessário que o Cristo suportasse os sofrimentos para
entrar na gloria? (Lc. 24, 26). Por que “era necessário”? Eles foram compreendendo pouco a pouco.
Para explicar o acontecido, recorreram primeiro ao Antigo Testamento, exatamente às categorias de
pensamento próprias dos judeus. Ora, eram estruturas cultuais, rituais, O culto é que era o centro da vida
judaica. O culto e, portanto, os ritos do culto (não há culto sem ritos). Os apóstolos, portanto, convenceramse, após a ressurreição de Jesus, de que tudo o que fora dito no Antigo Testamento encontrara cumprimento
Nele e que só a partir de Jesus podia-se realmente compreender de que se tratara, na realidade, antes dele.
Paulo e os evangelistas, portanto, “explicaram” a Cruz, deram um sentido ao evento “morte de Jesus aos 30
anos na cruz”, a partir das idéias da teologia cultual do Antigo Testamento.
A palavra “sacrifício”, por exemplo, pertence a esta teologia: sabe-se que em Israel ofereciam-se ritualmente
animais em sacrifício. A palavra é novamente encontrada no Novo Testamento, mas neste caso como termos
de comparação. O próprio Jesus pensou em sua morte com o auxílio dos antigos sacrifícios: ele oferece o
próprio sangue, como o do sacrifício da Aliança, dizendo que esse sangue será derramado pela multidão (são
as palavras da consagração eucarística), e o “memorial”que ele institui nos dias da Páscoa inspira-se no
sacrifício pascoal do Cordeiro. Para Jesus, porem, isso não passava de imagens; ele bem sabia que sua morte
era algo bem diferente de um rito. Eis o que diz: “os sacrifícios antigos eram ineficazes; só a minha morte
pode realizar aquilo que os sacrifícios queriam operar e significar. Pode-se dizer, portanto, que a morte de
Jesus é “sacrifical”; é o que diz o Evangelho.
Alimentou-se, durante longo tempo, um notável contra-senso, quando se quis interpretar a epístola aos
Hebreus segundo as categorias do Antigo Testamento. De uma a outra extremidade, o autor dessa epistola
refere-se ao antigo Templo, aos sacrifícios da Lei Judaica, ao sacerdócio levítico. Era tentador acreditar que
esse autor, provavelmente discípulo de Paulo, entendesse a morte de Cristo segundo essas categorias. Mas
na verdade seu pensamento era diverso: ele compara a morte de Cristo aos antigos sacrifícios para ressaltar
que, entre essa morte e esses sacrifícios,há uma diferença essencial. Ele se serve de categorias bem
conhecidas por seus interlocutores (é uma carta a hebreus, a judeus) para que compreendam que sua espera
foi compensada além do previsível.
Ratzinger resume admiravelmente o pensamento do autor: “Todo o aparelho sacrifical da humanidade, todos
os esforços de que o mundo está repleto para se reconciliar com Deus pelo culto e pelos ritos estavam
condenados a permanecer obra humana ineficaz e vã, pois o que Deus quer não são bodes nem touros, nem
�oferendas rituais. Pode-se até sacrificar a Deus hecatombes de animais sobre toda a superfície do globo, que
Deus nada tem a fazer com eles, pois, de todo modo, eles já lhe pertencem; nada se acrescenta a Deus ao
queimar tudo isto para sua glória... O homem, só o homem interessa a Deus. A única adoração verdadeira é
o “sim” incondicional do homem a Deus. Tudo pertence a Deus, mas ele concedeu ao homem a liberdade
de dizer “sim”ou “não”, de amar ou de recusar-se a amar; a adesão livre do amor é a única coisa pode
esperar”. Fora disso tudo carece de sentido. Apenas isso é insubstituível.
Ora, todo o culto antigo buscava substituir o insubstituível, substituir a oferenda de amor do homem por
oferendas de animais. Tal substituição era perfeitamente vã. Jesus, porem, ofereceu-se a si mesmo:
pronunciou diante de Deus o “sim” da obediência filial (note-se que estou resumindo a epistola aos Hebreus,
não pretendo explicar agora por que a morte de Cristo é um “sim” filial de obediência a Deus, pois ainda
consideramos inaceitável e escandaloso o fato de Deus, em nome da justiça, exigir o sangue do Filho; mas
chegaremos lá).
Para o autor da epistola aos Hebreus, o Cristo substitui as oferendas vãs e ineficazes dos antigos por sua
própria pessoa. O texto afirma que foi pelo seu sangue que Jesus realizou a reconciliação com Deus ( 9,12).
Mas isto não significa que o sangue derramado seria um dom material, um meio de expiação
quantitativamente mensurável: o sangue derramado é a expressão concreta de um amor que raia os limites de
si mesmo. O Cristo, para o autor da carta aos Hebreus, é aquele que deu tudo, absolutamente tudo. Nisto ele
é o Homem. O Homem na plenitude de sua perfeição. Ele é o absoluto do amor, tal como só o poderia
oferecer Aquele em quem o próprio amor de Deus tinha vindo a ser amor humano.
Não é, portanto, porque os evangelhos, Paulo e a epistola aos Hebreus expressam a morte de Cristo em
termos de resgate, expiação e substituição, que devemos permanecer (já o fomos tempo demais) prisioneiros
da teoria segundo a qual o Pai teria exigido o sangue de Cristo como satisfação à sua justiça lesada pelo
pecado dos homens. Em outros termos, não constitui infidelidade à Escritura desviar-se de tal teoria (pois
não passa de teoria; e não é o único caso em que os teólogos articularam indevidamente o essencial da fé a
uma teoria explicativa). No caso do sentido da morte de Cristo, a teoria que durante séculos prevaleceu nos
tratados de teologia e nos catecismos não só é contestável, como é, repetimos, gravemente deformante!
Estamos encostados na parede. Que sentido tem a expressão do Credo: Cristo morreu por nós?
PROPOSIÇÃO DE REFLEXÕES TEOLÓGICAS
Deve-se sempre retornar à palavra de Jesus no Evangelho de João: “Quem me vê, vê o Pai”(Jo. 14,9). Ver
Jesus é ver Deus. Conhecemos Deus através de Jesus. Conhecendo Jesus, conhecemos verdadeiramente a
Deus, tanto quanto nos é necessário conhecê-lo para desenvolver um relacionamento verdadeiro. A questão
essencial é não nos enganar a respeito do que Deus é.
Tudo o que Jesus diz e faz revela ou desvela Deus. O que existe visivelmente em Jesus existe invisível,
misteriosamente em Deus. Se a Encarnação e ato de humildade, Deus é um Ser de humildade. Se Jesus é
pobre, Deus é pobre. Ao ver Jesus, na noite de Quinta-feira santa, a lavar com humildade os pés dos homens,
vejo a Deus, eternamente Servo, humilde no mais profundo de sua Glória. A humildade de Cristo não é um
avatar excepcional da glória de Deus: ela se manifesta, no tempo da história humana, que a humildade está
eternamente no seio da Glória. Não e no momento em que Jesus morre na cruz que cessarei de ouvi-lo a me
dizer: “Quem me vê, vê o Pai”. Ao contrário; a morte de Jesus é que me revela, desvela, me faz ver quem é
Deus, qual o seu ser, qual a profundidade do Ser eterno de Deus.
Para Cristo, “obedecer” ao Pai não é executar uma ordem, como vemos neste mundo um subalterno executar
a ordem dos superiores hierárquicos. Não se deve imaginar Deus Pai dizendo a Deus Filho: Eu te ordeno que
sofras e morras aos 30 anos. Se isto fosse obediência, estaríamos de acordo com os contestatários de todos
os tipos, para abominá-la. Na verdade, o Cristo “obedece” ao Pai revelando-O tal como Ele é, não tal como
os homens gostariam que Ele fosse. Revelar Deus tal qual Ele é foi, para Jesus, a aceitação da morte. Não
houvesse Jesus aceito a morte, não teria revelado Deus tal qual é.
O amor morre para si mesmo, é entrega de si
�Com efeito, o mais profundo das coisas é que em Deus a morte está eternamente no seio da vida. Deus é
Amor. Amar é morrer para si mesmo, não só preferindo os outros a si, mas (quando se trata de Deus e
quando se ama em plenitude, realiza-se eternamente a perfeição do amor) renunciando a existir por si e para
si, a fim de existir unicamente para os outros e pelos outros. Deus é Trindade: o Pai é todo movimento em
direção ao Filho e ao Espírito; o Filho é todo movimento em direção ao Pai e ao Espírito; o Espírito é todo
movimento em direção ao Pai e ao Filho; Este “é todo”, no qual insisto, pois é este “ é todo” que exprime o
mistério de Deus, significa que o mais profundo de Deus é a identidade da morte e da vida. Sair de si é
exatamente morrer para si. Viver é amar, mas amar é morrer, pois é o mesmo que ser pelos outros e para os
outros.
Eis exatamente o que Jesus manifesta ao morrer na cruz. Segundo Paulo, Deus “esvaziou-se a si mesmo, e
assumiu a condição de servo, tomando semelhança humana.... humilhou-se e foi obediente até a morte e
morte de cruz (Fl 2, 8-9). Isto quer dizer que o ser de Deus está eternamente em ato de se entregar aos
outros. É claro que não podemos compreender exatamente o que isto significa, pois o Ser eterno de Deus
está além de todas as nossas representações, mas podemos tentar compreender que esse é o “mistério” do
Ser de Deus. Devemos quando menos saber em que Deus acreditamos.
Os judeus esperavam uma manifestação triunfal de Deus. Eis que, no Calvário, Deus não intervém, escondese, cala-se. Não é o Deus Sabaoth, ou melhor, o Deus dos exércitos, é o Deus “desarmado”: o trocadilho é
clássico. Imaginava-se um Deus rico e poderoso, e ele certamente o é, sendo infinito; mas vê-se agora que
sua riqueza não é possuir, é dar; é a riqueza de uma entrega total de si, sem preserva nem segunda intenção.
Seria desconhecer o amor supor que Deus age movido por um pensamento inconfessado ou por numa
segunda intenção. O amor não entrega algo de si, reservando o principal; é o principal que Ele entrega.
Ocultar um pensamento ou intenção significaria conservar a propriedade de si mesmo. Ora, não há vestígio
de propriedade em Deus.
Longe de exigir, para satisfação de sua justiça, o sacrifício do Filho, o Pai, ao sacrificá-lo, sacrifica o que
tem de mais caro. É o mesmo que sacrificar a si mesmo. O Pai não se poupa. O Ser do Pai é todo (sempre “é
todo”) pelo Filho e para o Filho. Ao nos entregar o Filho, entrega-se a si. Seu ser, sua “natureza” é ser
“entrega de si” (a palavra “entrega” “ se entregar” é uma das mais repetidas nos Evangelhos).
A morte de Cristo nos conduz a pensar que o ser de Deus é bem diverso daquilo que representamos, que as
perfeições de Deus são, não apenas infinitamente superiores a tudo o que podemos ser em matéria de
perfeição, mas estão nEle sob um modo infinitamente distinto do nosso. Deus é Todo Outro! Nós somos
ricos ao possuir; Deus é rico despojando-se. Nós somos fortes ao dominar, Deus é forte ao servir.
O Cristo, tornando-se escravo, deixando-se amarrar durante a Paixão e despojando-se da própria vida, traduz
Deus em gestos e atos humanos. Ele é, conforme se disse, o “prisma” de Deus que se decompõe a nossos
olhos de carne a resplandecente luz branca da Divindade. Ele é este “prisma” de uma à outra extremidade de
sua vida, e acima de tudo, em sua morte. Quando Ele dá o último suspiro, despojando-se da própria vida, e
de tudo o mais, nesse momento, Ele é humanamente o que Deus é divinamente por toda a eternidade. Nesse
momento ele é humanamente todo-poderoso, como Deus é divinamente todo-poderoso. É o momento em
que Ele participa do poder total de Deus, que não é poder de dominação nem de auto-exibição, mas de
anulação de si.
Enquanto não tivermos compreendido que todo o poder de Deus é um poder te total apagamento de si,
enquanto não se tiver experimentado na própria vida que é preciso maior poder de amor para anular-se que
para exibir-se – tudo o que acabo de dizer permanecerá literalmente ininteligível. Amar outro é querer que
ele seja, não querer passar adiante dele, para que ele seja menos; eis o poder do Amor”
O poder total do Amor é o perdão
Quando o Cristo participa do poder absoluto de Deus, que é um poder de anulação de si – do qual Ele
participa ao anular-se, ao morrer -, Ele participa do poder de perdão que está no mais profundo de Deus.
Literalmente, Ele morre por nós homens, Ele nos “salva”. Isto necessita de uma explicação, pois é muito
difícil falar do perdão; no entanto, como dizia Mauriac, temos mais fome de perdão que de pão.
O perdão não é indulgencia, é re-criação. É a re-criação da liberdade daquele que deixou perecer sua
liberdade pelo pecado. Deus precisa de mais poder para perdoar do que para criar. Re-criar é mais que criar.
O poder de re-criação está no coração do poder criador como um sobre-poder. Ao criar as liberdades, Deus
�se compromete num redobrar de amor a restituir-lhes o poder que lhes dá de elas mesmas se criarem. Ora, o
ato criador em Deus é um ato de humildade e de renúncia: é Deus que é Tudo e renuncia a ser Tudo. Pois
quando se é Amor, não se aceita ser Tudo; não se pode ser Amor e ser Tudo. Então, Ele abre um espaço
para a liberdade e, nas palavras do poeta alemão Hoelderlin: “Deus faz os homens como o mar faz os
continentes; distanciando-se”.
Se, para Deus, o ato de criar é o ato de se distanciar – não será o ato de recriar, ou de perdoar, de refazer
uma liberdade, uma duplicação do distanciar-se? Perdoar não será distanciar-se duas vezes? Não será o
supremo e total Poder? A oração da missa do vigésimo sexto Domingo Comum expressa explicitamente:
“Deus, que dás a prova suprema de teu poder quando tens paciência e perdoas, sem te cansares, concede-nos
a tua graça!”
É, pois, ao morrer que o Cristo participa do Poder Supremo, re-criador, perdoante de Deus. Um homem,
nascido da Virgem Maria, de nossa raça, tem, pela morte, o divino poder de perdoar. Um Deus que nos
concedesse o perdão seria por demais suspeito. Nada mais suspeito que um certo modo paternalista de dizer:
“Eu te perdôo”. Mas, como poderíamos suspeitar de um Deus feito homem que perdoa morrendo, cuja morte
se identifica ao perdão, perdão universal?
Podemos afirmar convictamente que fomos salvos pelo sangue derramado. É o que diz a frase da
consagração eucarística: “eis o sangue a ser derramado pela remissão dos pecados”. Estas palavras não
significam que o sangue é uma compensação oferecida à justiça de Deus, que exigiria o derramamento do
sangue de Cristo. O sangue derramado é sinal de um amor que vai até o fim (cf. Jo. 13, 1). Até o ápice do
domo, do perdão, ou seja, do dom perfeito (Não temos recurso para exprimir em português o trocadilho do autor.
Literalmente “Jusqáu bout Du Don, cést-à-dire au par-don ou Don parfait” nota do tradutor).
Enfatizo que o mistério da Cruz de Cristo não passaria de enigma desprovido de significação se não
mudássemos radicalmente a idéia que fazemos espontaneamente do poder de Deus. Todo homem principia a
busca de Deus na linha do poder. Deus é o “Grande Patrão”, isto é inevitável; de início não podemos deixar
de nos orientar nesta direção que é pagã. Espontaneamente gostaríamos que Deus interviesse amiúde em
nossos negócios, que Ele próprio escrevesse nossa história em nosso lugar, que Deus nos livrasse da terrível
responsabilidade que temos: a de ser os autores de nosso destino.
Quando nos tornamos cristãos (pois não somos cristãos, nós nos tornamos cristãos; é preciso que nos
convertamos todos os dias) e contemplamos a absoluta impotência do Homem-Deus pregado na cruz, temos
grande dificuldade para abandonar a primeira atitude (pagã) que nos marcou profundamente. Nunca nos
convertemos plenamente. Oscilamos entre duas imagens do divino, tentando conciliá-las porque não
sabemos como unificá-las: a imagem do Poder pagão total, dominador, e a imagem da Total Impotência do
Cristo crucificado, agonizante e morto. A imagem do Todo-Poderoso pagão subsiste, subjacente, intacta; e a
imagem da Total Impotência do Cristo crucificado é, de algum modo, uma sobre-impressão. Mas esta
coexistência de duas imagens é um desastre para a alma e para o espírito.
É necessário comprometer-se ao longo dos dias e dos anos numa meditação propriamente cristã, que nos
persuada profundamente de que a Total Impotência do Calvário revela a verdadeira natureza do absoluto
Poder de Deus, do Ser eterno e infinito. A morte de Cristo revela em plenitude a Glória de Deus, Glória
idêntica ao Amor como Poder de aniquilamento de si. Em Jesus crucificado tornou-se manifesto o puro “por
ti” ou “por vós” do Absoluto vivo que é Trindade. Um homem desfigurado, sangrando, coberto de escarros,
de suor e sangue, comparado por Isaías ao cordeiro levado ao matadouro, des-vela o Ser eterno sem rosto. A
existência humana não tem sentido, a não ser nEle e por Ele; eis a afirmação central de nossa fé.
A partir disso podemos compreender a emoção de Paulo quando nos diz (Fl 8,18), que “chora” ao pensar
nesses homens que “são inimigos da cruz de Cristo!” Deveríamos, sem dúvida, ser ou vir a ser capazes de
chorar como ele.
A RESSURREIÇÃO DE CRISTO É UM FATO HISTÓRICO?
�Abordemos o problema da ressurreição de Cristo. Problema ou mistério importante para todos, se é que
devemos crer em Paulo, quando nos diz que “se Cristo não ressuscitou, nossa fé e vã e vazia”, o mesmo que
sem fundamento (1Cor 15,14).
História e fé
A Batalha de Austerlitz é fato histórico e a morte do general De Gaulle também. Serpa preciso dizer que a
ressurreição de Cristo é, do mesmo modo, um fato histórico? Sim e não. A Ressurreição é, ao mesmo tempo
e indisivelmente, um fato histórico e um acontecimento para a fé. Mais exatamente, ela é um acontecimento
para a fé que comporta um fato histórico (sem o qual não se poderia falar de acontecimento).
O que é histórico é o testemunho dos apóstolos: homens que, tendo convivido com Jesus e o considerado o
Messias, proclamaram tê-lo visto vivo, após a sua morte na cruz.
Este testemunho, que é histórico, implica algo que n;ao é nem pode ser histórico: a Ressurreição, como ato
de passar da morte para a vida eterna, só ode ser realidade para a fé. Os apóstolos não foram testemunhas
deste ato, nem poderiam sê-lo (mesmo que tivessem permanecido no sepulcro de Jesus até a manhã de
Páscoa). Efetivamente, com respeito a este mundo onde algo pode ser constatado, a ressurreição é pura e
simplesmente uma desaparição. O corpo de Jesus ressuscitado não pertence mais a nosso universo físico de
espaço e tempo.
Conseqüentemente, é impossível constatar a passagem – o ato de passar – da morte para a vida eterna. Eis
porque a ressurreição de Jesus não pode ser, de modo algum, assimilada à reanimação de um cadáver, como
no caso de Lázaro. ]A ressurreição de Lázaro não é a passagem da morte para a vida eterna, para o mundo
de Deus, mas o retorno à vida de antes da morte. Lázaro retornou à vida que fora a sua antes de morrer.
Quando falo a crianças, digo que, ao sair do sepulcro, Lázaro talvez tenha espirrado, tossido, apreciado o
tempo (de sol ou de chuva). Ele reencontrou parentes, amigos, o mesmo universo que deixara antes de
morrer, retomou sua vida e não foi dispensado de morrer uma segunda vez, mesmo que não tenha sido em
Marselha que ele encontrou a morte definitiva, como o quer a lenda. Portanto, nada há de comum entre o
que chamamos de ressurreição de Lázaro (que é o milagre da revivificação de um cadáver) e a ressurreição
de Jesus.
O que podemos considerar como histórico é o que foi para os apóstolos objeto de uma constatação sensorial
ou sensível (para os sentidos). Ora, o que eles constataram com os sentidos, o que foi o sepulcro vazio; por
outro lado, não me refiro à manifestação de Jesus ressuscitado, mas à manifestação de alguém que se
apresenta a eles, sem que o reconheçam ainda como sendo Jesus vivo. Se o houvessem reconhecido
imediatamente como Jesus vivo, seria possível dizer tratar-se de cadáver reanimado.
Normalmente não se faz piada com mistério tão profundo. Mas pode-se dizer o seguinte: Imaginem os
apóstolos a exclamar: “Ora vejam! Então você saiu do tumulo?” ou: “Como é que se faz isto? Você estava
morto e agora ETA aqui!” Isto é impensável. Os apóstolos primeiro constataram uma presença; jardineiro
para Madalena, viajante para os peregrinos de Emaús..., e foi num ato de fé que depois reconheceram essa
presença como sendo daquele com que tinham convivido durante três anos e de quem haviam sido
discípulos.
Insisto: seria falso imaginar que os apóstolos constataram (constatação pelos sentidos – portanto histórica)
que esse alguém que se apresentava a eles era o Jesus que haviam conhecido antes da morte na cruz, e que
logo acreditaram no Ressuscitado... Os textos evangélicos dizem o contrário:
- perceberam uma presença que não reconheceram;
- dessa percepção, passaram à fé, por meio de uma reflexão sobre sua convivência anterior com Jesus,
esclarecida agora pelas Escrituras, que Jesus interpretou para eles e pela missão que lhes confia.
Temos portanto:
1) Constatação a presença de alguém que se manifesta;
2) 20 compreensão das antigas palavras de Jesus, de sua conduta anterior e das profecias relativas à sua
morte (é no relato dos peregrinos de Emaús que este tempo de reflexão por meio das Escrituras mais
se desenvolveu, mas todos os relatos das aparições indicam claramente que a simples manifestação
�de Jesus ressuscitado não é suficiente para que os apóstolos o reconheçam, ao passo que toda gente
reconheceu Lázaro);
3) Reconhecimento (pela fé) desse alguém como sendo Jesus vivo, aquele que imediatamente os orienta
do passado para o futuro, confiando-lhes uma missão, a de formar a Igreja.
O sepulcro vazio
Quais são os sinais pelos quais Jesus Ressuscitado se manifesta? Responde o Evangelho: há dois, um
negativo (o sepulcro vazio); outro positivo (Jesus aparece aos apóstolos).
A rigor, a descoberta do tumulo vazio, tal como nos relata o Evangelho, não te papel preponderante na
gênese da fé dos apóstolos. O túmulo vazio, efetivamente, não prova, por si só, a ressurreição. Aliás,
segundo a mais antiga fórmula do Novo Testamento (anos 50), Paulo afirma que “Deus ressuscitou Jesus
dentre os mortos” 1Ts 1,9). Não se menciona o sepulcro. A descoberta do túmulo vazio foi, certamente,
relatada nos Evangelhos, mas não faz parte da mensagem apostólica fundamental (o caso das aparições é
diferente).
“O tumulo vazio é um fato curioso que propõe uma pergunta. A resposta não se impõe” diz Léon-Dufour.
Pode-se sempre interpretar o fato de outro modo, especialmente pelo roubo do corpo. Não estamos dizendo
que o tumulo vazio não é realidade, fato. Dizemos simplesmente que, se isolarmos esse fato do contexto, ou,
essencialmente, do testemunho dos apóstolos no que concerne às aparições, resta um pormenor, cuja solidez
poderá sempre ser contestada pelo historiador (como esse ou aquele fato relatado pelo historiador Tácito).
Em si, a dois mil anos de distância, tal detalhe, mesmo bem-atestado, não tem grande valor histórico. Só se
podem declarar “históricos” acontecimentos de certa amplidão, integrados num conjunto tido como
“histórico”.
Não devemos pois quedar perplexos se o historiador moderno mantiver certa reserva no tocante à descoberta
do túmulo vazio. Ele não abandonará essa reserva de historiador se não reconhecer o valor do testemunho
dos apóstolos, relativo às aparições.
A objetividade das aparições
Quanto às aparições, não se percebe absolutamente como se possa negar o fato. “Sem isto, por pouco que
renunciemos à insustentável hipótese de um embuste premeditado, o cristianismo torna-se inexplicável.” (A.
Nizin, Histoire de Jésus). Para Edouard Le Roy, filósofo amigo de Bergson e de Teilhard de Chardin, “o fato
das aparições situa-se acima de toda contestação razoável”. Mas o problema é o da significação desse fato,
de seu alcance. Ora, aqui a reflexão choca-se com freqüência com um a priori, segundo o qual toda aparição
é apenas alucinação subjetiva e patológica, sem valor objetivo. É preciso dizer que tal postulado não é
absolutamente evidente por si. Solucionar a questão de antemão não se harmoniza com o verdadeiro método
Crítico.
Fala-se de auto-sugestão: “Restaria compreender como a fé dos apóstolos, tão débil, tão frágil antes da
grande decepção da morte de Jesus, pôde depois renascer tão viva e ardorosa. Para eles, era muito maior o
perigo de pregar Jesus ressuscitado dentre os mortos que o de reconhecer, no momento do processo, que
haviam sido seus discípulos. Ora, os apóstolos não tiveram coragem de reconhecê-lo como mestre na hora
do processo. E, todavia, isto era menos difícil que ter a audácia de pregar que esse mesmo Jesus ressuscitara.
A dificuldade depois que Jesus desapareceu era muito maior do que antes quando se tratava de depositar
nele uma confiança que fosse até a aceitação jubilosa do martírio.
Notemos, no entanto, que esta observação não é, por si só, decisiva: há uma escapatória. Existem
efetivamente, casos de fenômenos coletivos de crença na sobrevida de um herói morto na guerra. Isto parece
ter sido averiguado em populações de psicologia primitiva. Sobrevida não no sentido de o herói haver
migrado para a habitação dos mortos, mas no sentido de ele continuar a pertencer, mesmo que
invisivelmente, ao nosso mundo, exercendo sobre ele uma ação histórica. Tal crença pode suscitar nos povos
primitivos a mais exaltada devoção da parte dos fieis pela causa encarnada por esse herói. É necessário ser
prudentes, pois estamos falando do fundamento da fé.
Dizemos: uma aparição só pode ser construção do espírito; é algo de subjetivo; trata-se de um mecanismo
alucinatório. Mas as nossas percepções mais comuns (por exemplo, a percepção que tenho neste momento
�deste microfone, deste papel, desta mesa, de vocês todos reunidos aqui) também comportam uma parte de
construção subjetiva. Uma aparição pode perfeitamente implicar elementos de construção subjetiva e ter um
valor objetivo. É necessário apenas entender o que se quer dizer com “objetivo”. O termo é ambíguo.
Objetivo não significa exterior. Nossa imaginação nos leva a crer que tudo o que é objetivo é exterior e que
tudo que é interior é puramente subjetivo. É verdade que todos vocês, que neste momento estão diante de
mim, são objetivos, têm uma existência objetiva (jamais se resignariam a existir apenas em meu
pensamento, ficariam furiosos e protestariam se eu lhes dissesse que só existem em meu pensamento: vocês
existem objetivamente). Ao mesmo tempo, vocês são exteriores a mim (estão separados de mim por quinze
ou vinte metros e, para tocá-los, apertar-lhes a mão ou abraçá-los, eu deveria vencer a distância que nos
separa). Mas, por si, objetivo não significa exterior. São dois conceitos absolutamente distintos.
Ao dizer que a manifestação de Jesus ressuscitado aos apóstolos foi objetiva – e isto é essencial – não
dizemos por isso que ele era exterior a eles (como vocês são exteriores a mime eu a vocês). Mesmo que os
apóstolos construindo necessariamente sua percepção (toda percepção é construção, isto é o bê-á-bá da
filosofia) e falando segundo a linguagem corrente, tenham percebido Jesus como exterior a eles, isso não
quer absolutamente dizer que Jesus era, quanto a si, exterior a eles.
Reconheço que é um ponto difícil; se preferirem pensar que Jesus ressuscitado era, ao mesmo tempo,
objetivo e exterior, podem fazê-lo. É preciso apenas prever as objeções e dificuldades, não devemos encher
de obstáculos o caminho da fé, pois o essencial, o que desencadeia a fé é que sua presença era objetiva.
O que queremos dizer, ao nos referir ao “valor” objetivo das aparições é exatamente isto; as aparições não
são a única reconstrução dos apóstolos. Elas são reais, no sentido de os apóstolos perceberem o Ressuscitado
em virtude de uma iniciativa que não provem deles, mas dele. Na alucinação, a iniciativa vem do sujeito que
a vive (cognoscente). No caso das aparições, a iniciativa não provem dos apóstolos e sim do Cristo. Em
outras palavras, os apóstolos viram Jesus porque Jesus se fez ver, deu-se a ver.
Poder-se-ia assimilar as aparições de Jesus ressuscitado às experiências místicas das quais nos falam na
historia da Igreja (as de Tereza d´´Avila, as de Catarina de Sena, ou de Bernardete Soubinous)? Sim e não.
Preferentemente não.
Sim, por haver para os apóstolos e para Bernardete, aqui e acolá, uma experiência do inefável; em Jerusalém
e Lourdes, o inefável (aquilo que naturalmente não é objeto de experiência. Leiam qualquer livro sério sobre
os místicos, Baruzi, ou Delacroix, e recordem-se de que por meio do estudo dos místicos é que Bergson
alcançou a fé. A experiência mística é a experiência do divino; é verdade para Tereza de Ávila ou
Bernardete, é verdade para os apóstolos.
Mas eu disse: preferentemente não. Na experiência dos apóstolos naquilo que chamamos aparições de Jesus
ressuscitado, há sempre algo de absolutamente original, algo de que so eles tiveram experiência. O quê?
Qual a diferença fundamental entre as aparições de Jesus aos apóstolos e as de Maria a Bernardete? Esta: a
identidade daquele que ora eles vêem, após a morte, com aquele que haviam conhecido antes de sua morte,
nas condições da existência natura. É o mesmo. Os apóstolos reconhecem Jesus como sendo aquele com
quem haviam convivido antes de sua morte. Bernardete não reconhece Maria como uma mulher com quem
tivesse pastoreado. Não houve reconhecimento de uma identidade. A experiência dos apóstolos é
absolutamente original e única na história: eles apreendem a continuidade entre a vida mortal de Jesus e sua
existência de Ressuscitado.
A gênese da fé dos apóstolos
Tentemos compreender como se passaram as coisas, se bem que estas questões não sejam assim tão simples.
Vocês estão vendo. É provável que isto não seja simples por termos sido um pouco deformados. Isto deveria
ser simples (não digo simplista), pois a fé é para todos e não para eruditos e filósofos. A gênese da fé para os
apóstolos se dá em três tempos: Primeiro tempo: os apóstolos são homens que encontraram Jesus, o homem
Jesus na vida mortal. Seguiram-no, creram nele como sendo o Messias anunciado, salvador de sua nação.
Não digo que tenham crido nele como num Deus; nenhum apostolo acreditou que Jesus fosse Deus antes de
Pentecostes! Primeiro tempo: vida mortal, de homens mortais, vivendo com um homem mortal.
Segundo tempo: essa fé, real, mas frágil, sofreu a terrível prova da morte de Jesus, não uma morte qualquer,
mas uma morte infamante. Para eles, foi o fim de um belo sonho, a interrupção de uma bela aventura. Não
acreditam mais no messias, condenado e crucificado. Ainda crerão em Deus? Não se pode estar muito certo,
�pois Deus deixou que condenassem o justo: um deus que deixa condenar um justo existe? Estão em total
desespero, nada mais esperam. No admirável episódio dos discípulos de Emaús, Lucas descreve este
desespero: nós esperávamos, mas não esperamos mais... e eles se dispersam. Restam, no entanto, os que se
haviam ligado a Jesus e o haviam seguido durante três anos. É a partir de então que a fé pascal começa a ser
gerada, pela intervenção de Jesus ressuscitado.
Terceiro tempo: alguém se apresenta a eles. Um sinal é dado; alguém que de repente se faz presente, sem
que ninguém se tenha apercebido de sua aproximação. Poderia ser o jardineiro (como a princípio Maria
Madalena pensa), poderia ser um viajante na rota de Jerusalém a Emaús. Isto não esclarece os apóstolos.
Antes os perturba. Por quê? Eles já não têm fé e esperança: como reconheceriam por meio de seus sentidos
naturais (visão, audição, tato) alguém que superou a existência natural e que ao pode ser reconhecido pelos
sentidos naturais? Se o reconhecessem de imediato, Jesus seria um cadáver reanimado, como Lázaro; teria
retornado à vida mortal. Mas Jesus tinha passado para a vida eterna, para a vida propriamente divina. A esta
altura, esse alguém lhes explica as Escrituras, aplicando-as à sua vida passada e, acima de tudo, à sua morte.
Ele propõe uma leitura das Escrituras que ultrapassa tudo o que haviam aprendido até então. Ele lhes explica
o que os Profetas haviam anunciado a respeito do Messias, que devia sofrer e morrer. Para os apóstolos, é
uma luz projetada sobre os sofrimentos e a morte de Jesus, que haviam sido a causa de sua confusão, que
haviam sido para eles as próprias trevas que lhes engoliram a fé. Renasce a fé, eis o ponto capital: os
apóstolos compreendem que Jesus, precisamente por ser o Messias, tinha de sofrer e morrer (não a despeito
de, mas por ser o Messias). Os Profetas o haviam dito e agora os apóstolos o compreendem.
E, ao mesmo tempo que a paixão e morte, as Escrituras haviam anunciado a exaltação do Messias. Agora
devem fazer crescer a Igreja. Eis porque, assim que os apóstolos reconhecem Jesus, assim que averiguam a
sua identidade, Jesus os orienta para o futuro, confiando-lhes uma missão: formar a Igreja, fazer crescer a
Igreja. Este ponto, o do envio em missão é tão importante quanto o retorno ao passado (a exegese moderna
enfatiza isso).
A seguinte objeção é freqüente: se a ressurreição de Cristo houvesse sido atestada por outros homens que
não os apóstolos, por pessoas neutras, digamos por pagãos que não houvessem conhecido Jesus, ou mesmo
por seus adversários (os fariseus, os príncipes dos sacerdotes), tal testemunho não teria maior força
comprobatória? Não existe motivo para dúvida no fato de os apóstolos estarem em situação privilegiada no
caso de uma eventual ressurreição? Seria muito menos suspeito, costuma-se ouvir dizer, se Judas houvesse
sido a testemunha da ressurreição.
Levar a sério uma objeção desta é imaginar a ressurreição como a reanimação de um cadáver, como o
retorno de Jesus à vida natural. É conceber a ressurreição como um prodígio que dispensaria um ato de fé
(não houve necessidade de fazer um ato de fé para reconhecer Lázaro saindo do tumulo!), um prodígio que
“aterrorizasse qualquer pessoa e, de algum modo, obrigasse à fé”. Imaginem Judas como testemunha da
ressurreição: ele não teria ido se enforcar, seria obrigado a crer! Mas isto é contraditório: se a fé obrigada
não é mais fé. Uma ressurreição que fosse apenas um prodígio a aterrorizar e constranger à fé não seria
séria.
Se os adversários de Jesus se encontrassem com os apóstolos no caminho de Emaús, talvez tivessem visto
um “desconhecido”; certamente não teriam reconhecido aquele que haviam crucificado. Digo “talvez”, pois
vocês bem sabem como essa questão é encarada (crianças de oito ou nove anos já o fazem). Um bom
homem lá estaria, fumando seu cachimbo, à soleira de sua porta, olhando para o caminho de Emaús; teria
visto dois ou três viajantes? Não sei. Tudo depende daquilo que se pensa: aparição exterior ou puramente
interior, mas em todo caso, certamente objetiva. Assim, talvez ele tenha visto um “desconhecido”, sem
decerto reconhecer aquele que havia crucificado – supondo-se que esse bom homem fosse um dos carrascos
que haviam crucificado Jesus.
É preciso acrescentar aqui: as aparições ao um sinal que desaparecerá. A Ascensão será o último deles e a
festa da Ascensão é a festa da derradeira aparição. A fé perfeita implica co efeito o desaparecimento de todo
sinal particular, a liberdade diante dos sinais. A fé perfeita é a fé segundo o Espírito. Pentecostes inaugura
esta fé. Para além das aparições e muito mais que elas será a expansão da Igreja a plena manifestação de
Jesus ressuscitado.
As tentações do descrente e do crente
�Que é a ressurreição de Cristo para o descrente? O descrente moderno está um pouco na situação dos
apóstolos, antes de reconhecerem Jesus num ato de fé. Os sinais (sepulcro vazio e aparições), se despojados
de seu sentido, tendem a fragmentar-se. Par os apóstolos, o Jesus que se manifesta a princípio provoca
temor; tomam-no por um fantasma. Para o historiador, enquanto permanecer aquém da fé, os sinais são
frágeis e mesmo sujeitos a caução. A fé reage pelos sinais, esclarecendo-lhes a coerência e solidez. Mas a
descrença também reage pelos sinais, deslocando-os, de algum modo e dissolvendo-os.
Para o historiador descrente, há realmente o dado literário do sepulcro vazio e das aparições: está escrito!
Mas este dado literário, isolado do seu sentido, tende a esvaziar-se, de sorte e nem mais chegar a constituir
problemática: o descrente, por seu lado, tende a suprimir o dado do sepulcro vazio como fato historio [ele
dirá que os primeiros cristãos inventaram o fato pelas necessidades da causa, ou então, se o estudo sério dos
textos concluir pelo caráter realmente histórico do sepulcro vazio, ele encontrará saída para a questão
proposta no fato histórico da lenda judaica relatada por Mateus 27, 64 e 28,13, segundo a qual “os discípulos
de Jesus vieram à noite e roubaram o corpo, a fim de poder dizer ao povo: ele ressuscitou dos mortos”] E,
com respeito às aparições, o descrente tenderá a interpretá-las como fenômenos de auto-sugestão e de
alucinação coletiva. O que importa é o seguinte: quando se desconhece o sentido do fato, tende-se a a
dissolver esse fato: o desconhecimento do sentido tende a refluir sobre o fato e dissolvê-lo.
Mas – inversamente – muito nos devemos acautelar para não superestimar o dado histórico. É a tentação do
crente: costumamos raciocinar como se o sentido do dado histórico fosse imediatamente perceptível. Como
se o sepulcro vazio fosse, por si mesmo, uma prova da ressurreição. Como se as aparições permitissem a
instantânea identificação de Jesus, sem a necessidade de um ato de fé. Como se Jesus fosse Lázaro de
regresso à vida. Cuidado Se assim fosse, seria necessário dizer que a ressurreição de Jesus sobrevém como
um bólido derivado, presa dos sentidos e da história. Seria preciso concluir, nesse caso, que o descrente é um
imbecil ou um ignorante, que desconhece os textos ou é incapaz de os ler corretamente; ou até que seja
movido por má fé (e sabe Deus que não nos privamos de tratar os descrentes como imbecis ou pessoas de
má fé). Mas isto é desonesto e não temos, absolutamente, direito de agir assim. Não supervalorizemos o
dado histórico; a ressurreição de Jesus não é pura e simplesmente fato histórico, como a batalha de
Austerlitz. A fé é livre. Se não o for, não é fé.
Não um prodígio, mas uma série de sinais
Grandes pintores tentaram registrar Jesus saindo do túmulo no esplendor de sua vitória, como, por exemplo,
o quadro de Perugino, onde o Cristo sai do tumulo com uma bandeirinha! Talvez tenham feito obras-primas,
mas também nos prestaram um péssimo serviço. Não há testemunho do que se passou. Ao ressuscitar, Jesus
não se deu a ver: ele ensinou os seus a reconhecê-lo ressuscitado. Tivesse havido uma espetacular saída do
sepulcro, o mistério se reduziria ao nível do mito; teria havido algo de maravilhoso, puramente humano,
encerrado no humano.
Gostaria que vocês refletissem (efetivamente, por meio de questões como essa é que se pode medir a
qualidade da fé, pois há quem se diga crente quando, na realidade, é simplesmente ávido de maravilhas; é
esse maravilhoso que permite triplicar a tiragem de Paris Match, quando se relata a história de uma Virgem
de bronze que chora ou de uma hóstia que sangra!): que pensariam de uma religião fundada num deus morto
que se vingaria atordoando-nos com uma vitória pela força? Tal vitoria seria muito semelhante à espécie de
vingança com a qual às vezes sonhamos, quando desejamos que a Igreja “se vingue” de todos esses “lobos
maus, comunistas e maçons, etc.”. Todos sonhamos com um Cristo mais ou menos triunfante.
Imaginar Jesus saindo espetacularmente do tumulo é escorregar para o plano das mitologias pagãs; é fazer
um Deus à nossa imagem: é introduzir Deus, não na nossa verdadeira história, que é a das nossas decisões,
mas naquilo que gostaríamos que fosse a nossa história, para nos evadir. Isto seria o triunfo do folclore e não
se trata de confundir a sublimidade da fé cristã com não sei que sucedâneo de folclores pagãos.
A ressurreição não pode ser um prodígio que arrebata pela evidência; só pode ser uma série de sinais a
solicitar a fé. Refiro-me aos chefes judeus que haviam mandado vigiar o tumulo. Vocês se lembram: eles
não haviam contestado a ressurreição de Lázaro, porque era fato, incontestável! Haviam simplesmente
concluído pela urgência de suprimir Jesus; para eles era esse o sentido do fato; visto que este homem
realizou tantos prodígios, todos crerão nele, e os romanos virão destruir nossa nação. Assim haviam
�encarnado a resposta de Abraão ao mau rico da parábola: “Se não ouvem Moisés e os Profetas, não crerão
tampouco num morto ressuscitado” (Lc.16,31).
Na verdade, não há em parte nenhuma do Evangelho prodígios que sejam meramente prodígios. Jesus os
rejeita categoricamente. Ele não desejaria que ninguém cresse movido a prodígios. Que consistência teria
uma fé assim? No deserto, não transformou pedras em pães. Quando lhe pedem um sinal do céu, responde
que o grande sinal será sua morte (Mt. 12,40). A multiplicação dos pães não é uma superprodução de
mantimentos que, por si, só poderia reafirmar o desejo humano de comodidades terrestres:
conseqüentemente pura maravilha mitológica! O verdadeiro sinal é o da orientação da esperança e da fé para
as realidade definitivas, a saber, que nem só de pão vive o homem. Por isso, o discurso sobre o Pão da vida,
a Eucaristia, incorpora-se à multiplicação dos pães (Jo. 6).
O perigo de tentar reconstruir exatamente o que ocorreu e desviar-nos do que os evangelista querem
comunicar. Ora, o que eles querem nos dizer não é o que se passou hora a hora, dia a dia, mas introduzir-nos
na experiência da nova e real presença de Jesus. Essa nova presença não é passível de registro: ele não pode
mais ser reconhecido pelo testemunho dos sentidos. Ele é absolutamente outro. Não um outro, mas o mesmo
transformado no totalmente outro.
Conforme nos escreve o Pe. X. Léon-Dufour, temos duas séries de textos evangélicos:
- Uma série insiste no fato de Jesus ressuscitado não ser um fantasma, um espírito (os judeus acreditavam
facilmente em fantasmas e espíritos); e isto foi precisamente indicado: “Apalpai-me e entendei que um
espírito não tem carne nem ossos, como estais vendo que eu tenho” (isto está escrito com todas as letras em
Lc. 24,39). É uma série destinada a afirmar que Jesus realmente ressuscitou em corpo.
- Outra série de textos afirma que esse corpo não é mais o mesmo: o Ressuscitado aparece, desaparece,
atravessa portas fechadas; seu corpo escapa ao determinismo do tempo e do espaço. Ele é o mesmo
(primeira série), mas o mesmo que se tornou totalmente outro (segunda série). Há, portanto, duas séries de
textos que nos permitem visar – esta palavra é importante – o que não pode ser objeto de uma representação
exata, a saber, um “corpo espiritual”, como diz Paulo.
Entre os sinais dados, só um pode ser objeto de uma constatação: o tumulo vazio. As aparições são outro
assunto. Podemos estar certos de que os discípulos de Emaús, Maria de Magdala e os discípulos,
isoladamente, ou em grupo, foram os únicos a ver e ouvir Aquele que se manifestava. Dispusessem eles de
máquinas fotográficas ou gravadores, nada poderiam ter registrado ou fotografado. Deviam testemunhar
apenas.
Temos de insistir na distinção entre testemunho e reportagem. Não poucos seriam tentados a ver na
reportagem, munida de todos os meios de registro, o ápice da verdade histórica. Não percebem que camaras
e gravadores não fixam senão aparências exteriores. O único instrumento válido para gravar uma
experiência profunda é o coração, no sentido bíblico do termo: a consciência. E isto nos leva a perguntar:
por que vocês crêem? Qual o motivo de sua fé? Qual o sentido que a ressurreição de Jesus dá à sua vida?
Não apenas o fato, mas o sentido do fato.
Se quisermos empregar um termo específico na fotografia, direi que o que é “impressionado” pela
experiência de Jesus ressuscitado é o âmago do ser, na nossa própria existência. Quando os apóstolos dizem:
“Nós somos testemunhas” (AT. 5, 32), não estão dizendo: “Nós o vimos sair do sepulcro”. Querem dizer:
“Estamos absolutamente certos de que Jesus vive; abriu de uma vez por todas as portas da verdadeira Vida;
ou seja, ele é a Ressurreição. E a garantia desta certeza mais que humana é o dom que fazemos de nossas
vidas até o martírio”. Eis o testemunho!
Conclusão: a ressurreição de Cristo é uma questão que se põe à historia
Para o historiador, a ressurreição de Cristo suscita uma questão insolúvel para os meios próprios à sua
profissão, uma questão da qual não nos podemos desembaraçar com explicações de ordem empírica. É uma
questão ao mesmo tempo insolúvel e iniludível; não se pode ignorá-la e no plano puramente histórico não se
pode resolvê-la. Não se trata apenas de um enigma histórico, como a identidade do Máscara de Ferro ou o
nascimento de Weygand. Trata-se de uma questão que ultrapassa todas as possibilidades de solução (vejam
bem: no plano puramente histórico). Não foi resolvida e não o será. No plano histórico, a ressurreição não
pode ser afirmada como fato, mas não pode deixar de ser encarara como questão histórica, questão
objetivamente proposta. Ao historiador é impossível passar desse ponto.
�Mas nenhum historiador é apenas historiador, assim como um especialista não é apenas especialista. Um
especialista é um homem, um historiador é um homem que pode ser casado, ter filhos, ser músico, ter fé...
Ora, por ser homem, o historiador não pode se encantoar no estudo de um objeto cuidadosamente delimitado
e analisado com a indiferença da ciência pela ciência. O historiador não pode deixar de se sentir
pessoalmente comprometido co a historia: deve deixar falar em si o homem confrontado com o sentido da
história.
Ele não pode deixar de se sentir envolvido na questão proposta por vinte séculos de cristianismo, não pode
deixar de se interrogar acerca do possível sentido divino da historia humana. O fato plenamente original da
ressurreição de Cristo (digamos, para não antecipar o julgamento: o fato perfeitamente original do
testemunho dos apóstolos sobre a ressurreição de Cristo) não pode deixar de suscitar a questão de uma
“dimensão transcendente” da historia. Portanto, ele pode razoavelmente admitir que o “dedo de Deus” está
presente, e para pode admiti-lo enquanto homem que se faz perguntas sobre o sentido da existência humana.
Será necessário ir mais longe e acrescentar que esta é realmente a única saída razoável para a iniludível
questão? Só que isto exige que se admitam os limites radicais da razão humana na explicação do
encadeamento dos fenômenos. É necessário também, se ele quiser ser verdadeiramente sério, elaborar uma
filosofia do corpo, para compreender que a desaparição do cadáver de Jesus não é volatilização da matéria,
mas assunção transfigurante dessa matéria em Deus.
É claro que ele pode rechaçar este raciocínio, mas nesse caso permanecerá preso à análise de um fato
desprovido de sentido. Só o ato de fé abre para o sentido. Este sentido é que a morte foi vencida, ou que o
amor é mais forte que a morte. Minha exigência mais profunda e a vida: quero viver para sempre. Se me
dissessem que isso não é importante para vocês, terei de romper o diálogo, sem nada poder fazer. Só poderei
dizer que não sou como vocês: Quanto a mim, desejo viver para sempre. A ressurreição me diz: e você
viverá! É este o sentido. Por isso creio.
Quando Marc Oriason era cirurgião em Bordéus, via homens morrerem diariamente, deixar de viver.
Decidiu ser padre para eu, no seio da universal mortalidade, a missa seja dita, e, por meio da missa, a
Ressurreição se torne presente no próprio centro de um universo onde tudo morre. Ele retomou este
pensamento em vários de seus livros. A Ressurreição, efetivamente, situa-se para além de toda morte, é a
Vida, a brecha no círculo da mortalidade universal, no qual, não fosse ela, estaríamos presos
definitivamente.
CRISTO RESSUSCITOU DOS MORTOS E SUBIU AOS CÉUS
A RESSURREIÇÃO
Estudaremos o sentido, a significação de Mistério. Uma frase é suficiente, creio, para dizer o essencial: “O amor é
mais forte que a morte, com a condição de que ele seja mais forte que a vida”. Amor mais forte que a vida é o
sacrifício, é a morte; o amor mais forte que a morte é a ressurreição. Em outros termos, o sacrifício, que é a morte
parcial, e a morte, que é o sacrifício total, transformam a vida segundo a carne e o sangue em vida segundo o espírito.
O mistério pascal, morte e ressurreição juntas, é um mistério de transformação, a transformação do homem carnal em
homem espiritual e mesmo divino, por participação.
O amor é um desejo de imortalidade
Para compreender isto, é preciso, como sempre, partir da experiência e refletir sobre ela, à luz da fé. É realmente a
experiência que temos do amor que nos persuade de que há no homem um incoercível desejo de imortalidade da alma
pode ser estabelecida por um argumento filosófico. Podemos até duvidar disso. Outrora os filósofos cristãos, ou
melhor, os cristãos professores de filosofia (pelo menos no ensino secundário) não duvidavam disso. Eles ensinavam
que aquilo que é espiritual é incorruptível; ora, a alma é espiritual, logo é incorruptível, isto é, imortal. Muito simples.
Hoje, vamos mais devagar com o andor e recusamos a muito cômoda dualidade entre alma e corpo. Pensamos que
Gabriel Marcel tem razão de nos advertir contra a fórmula: “Tenho um corpo” à qual devemos preferir, em sua
opinião, a fórmula “Eu sou meu corpo”. O que quer dizer que corpo e alma não são duas realidades dissociáveis: a
alma nada é sem o corpo. Por isso, o ateísmo nega toda imortalidade.
�Mas o próprio Gabriel Marcel, que é cristão e escreveu paginas admiráveis sobre a esperança, propõe diversamente a
questão da imortalidade. Como Agostinho já o fizera em Suas Confissões, ele afirma a im0ortalidade a partir da
experiência da morte de um ser amado. Realmente, diz ele, é preciso aceitar a morte de um ser querido, de um esposo
ou esposa, filho, irmão ou amigo, mas no fundo esta morte é inaceitável.
E ele particulariza: não inaceitável pela reivindicação do coração, não por causa do sofrimento, mas pelo protesto do
espírito. O coração sofre, mas diz sim. Ou, se diz não, é por pura revolta; mas revolta-se em vão. Ao passo que o
espírito não pode deixar de dizer não. Por que? Porque dizer a alguém: “Eu te amo” é o mesmo que lhe dizer: “Não
morrerás”. No “eu te amo” autêntico (e decerto é preciso sublinhar o “autêntico” por sermos bem que o “eu te amo” é
freqüentemente pronunciado com leviandade, no nível das fibras mais superficiais do ser), está inscrito, em caligrafia
enigmática, m “tu não morrerás” que resiste misteriosamente ao desespero da perda e à evidência sensível da morte.
Conforme diz Étienne Borne, Gabriel Marcel atribui título de nobreza filosófica ao famoso “Salut em l´Imortalité” que
Baudelaire, em Les fleurs de mal, endereça à sua “mui querida e mui bela”. Todos conhecem o admirável poema
intitulado Hymne:
A la très belle,
Qui remplit mon coeur de clarté,
A l´ange, à l´idole immortelle,
Salut em límortalité!
Elle se répand dans ma vie
Comme um air imprégnée de sel,
Et dans mon ^me inassouvie
Verse Le gout de l´éternel.
Comment, amour incorrutible,
T´exprimer avec vérité?
Grain de musc qui gis, invisible,
Au fond de mon éternité!
A La três bonne, à La très belle,
Qui fait ma joie et ma santé,
À Lange, à l´idole immortelle,
Salut em l´immortalité!
Os jovens que amam Baudelaire que não raro logo se apaixonam bem deveriam aprender a lição do poeta, lição de
autenticidade no amor; o amor autêntico é incorruptível, indestrutível; exige o ser; é semelhante a um apelo de infinito
(no sentido em que se fala de ma rajada de ar). Mas se o amor exige o infinito, não o pode dar. Diz ao ser amado:
“Não morrerás”, mas o ser amado morre. Tenciona a eternidade (como diz Baudelaire, “il verse em nous le gout de
l´éternel”), mas, na realidade, faz parte do mundo da morte, está encerrado como nós no círculo da mortalidade, com
sua solidão e seu poder de destruição. O paradoxo é violento.
Sobreviver por si ou num outro?
A partir deste paradoxo em que todos vivemos de um modo ou de outro é que podemos compreender o que significa o
mistério cristão da ressurreição. É o triunfo do amor sobre a morte: é o amor mais forte que a morte. Mas como o amor
pode ser mais forte que a morte O que me pode tornar imortal? Pois afinal o certo é que me voltarei ao pó. Nada pode
mudar o fato de eu estar votado à morte. Posso no máximo sobreviver em outro, outro que ainda subsista, quando eu
não mais subsistir.
É preciso compreender por que a Bíblia liga estreitamente pecado e morte, e por que Paulo afirma, por exemplo, que
“a morte é o salário do pecado”. O pecado, em essência, é uma afirmação de autarquia; o pecador é aquele que quer
ser “como Deus”, ou seja, subsistir eternamente em si e por si. Ora, o homem não pode subsistir em si e por si: querer
isto, aspirar a isto, é na realidade entregar-se à morte.
Mas como subsistir em outro ou outros? Há muitas vias possíveis. O homem experimentou-as todas. Mas há duas que
se podem destacar.
Em princípio, queremos sobreviver em nossos filhos, prolongar-nos, como se diz, nos filhos e netos. Por isso os povos
primitivos sempre tiveram o celibato e a esterilidade na conta de maldição: não ter filhos é a impossibilidade de sobre
viver; ter muitos filhos é ter a sorte de sobreviver, é uma benção.
�Além dessa forma, buscamos sobreviver na memória dos homens, aspiramos à gloria. E ao ouvir Mozart ou
contemplar Rembrandt, se diz efetivamente que eles continuam vivos entre nós. Modo de falar, é claro! Ninguém se
engana: nem Rembrandt, nem Mozart estão vivos. Eu, que os ouço e contemplo, não os ouvirei nem contemplarei para
sempre; irei reunir-me a eles numa das inumeráveis necrópoles que cobrem a terra.
Na verdade não posso sobreviver em outro a não ser que exista um Outro que seja eterno e que me ame o bastante para
me acolher em Si. Não se pode ser imortal senão em Deus, se Deus é Amor. Só um Deus que me ame terá o poder,
não de impedir que eu morra, mas de me ressuscitar. Só o Amor é mais forte que a morte.
Mas é necessário que, em mim, o amor seja mais forte que a VIDA. Há no Evangelho a seguinte sentença: “Ninguém
tem maior amor do que aquele que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo. 15,13). É a própria definição da
liberdade. Ser livre é não ser escravo (isto é evidente!). Mas de que o homem, feito de carne e sangue, será mais
escravo do que de um querer viver segundo a carne e o sangue? Bem sabemos que ser acomodados é sempre, nas
pequenas como nas grandes circunstâncias, ter a preocupação predominante de preservar o próprio bem-estar, a
fortuna, os privilégios, a posição no mundo, a saúde, numa palavra, aquilo que se chama vida. Somos escravos quando
nos agarramos ao que somos e ao que temos.
Em Jesus o amor é mais forte que a vida
Dizia Platão: “Só é digno de existir aquele que é digno de ser amado”. O que Platão não sabia e o que nós, cristãos,
acreditamos com toda a alma é que só é digno de ser amado aquele que ama. Porque é digno de existir aquele que
ama. Porque só ele é livre, só ele é homem.
Mas na história da humanidade apenas um homem foi absolutamente livre, porque só ele amou de modo perfeito, só
ele é homem em plenitude. Nós, por nosso lado, esforçamo-nos para amar; ao longo dos anos e dias, construímos
penosamente nossa liberdade; permanecemos escravos de muitas coisas, de muitos modos; aferramo-nos aos nossos
haveres e a tudo o mais que, bem sabemos, há de morrer; ligamo-nos à vida na forma da escravidão, na forma da
mortalidade. Somos mais apegados que desapegados. A vida em nós – a vida presente, a vida biológica, a vida mortal
– é mais forte que o amor.
Só em Jesus (não falemos de Maria, sua mãe), o amor foi mais forte que a vida. Sua morte é a morte de um homem
absolutamente livre, absolutamente desapegado de si e de tudo, totalmente amante.
Como não o acolheria Deus em Si, a fim de que nEle viva eternamente? O Cristo não viveu senão pelo Pai e para o
Pai, viveu mais no Outro do que em si, isto é amor: viver em outro. Mas viver em outro é morrer para si. Dizer que
Jesus ressuscitou, ou que o Pai ressuscitou Jesus, é dizer que para este homem plenamente homem, e quem o amor foi
mais forte que a vida, o amor é para sempre mais forte que a morte. Ele ressuscitou, está vivo.
Agora estamos em condições de compreender esta proposição, que até há pouco nos parecia um tanto sibilina: o amor
é mais forte que a morte, com a condição de ser mais forte que a vida.
O Cristo ressuscitado funda a nossa imortalidade
Para nós que somos pecadores, que amamos pouco e mal porque muito prezamos a carne e o sangue, para nós que não
preferimos os outros a nós mesmos, senão muito parcialmente pela criação de muitas ilusões, é claro que, se entregues
a nós mesmos não poderíamos ressuscitar. E finalmente, a existência humana seria absurda, pois o “não morrerás” que
dizemos implicitamente aos que amamos seria um voto para sempre desatendido. O Cristo ressuscitado, porém, nos
diz: “Não morrerás” que dizemos implicitamente aos que amamos seria um voto para sempre desatendido. O Cristo
ressuscitado, porem nos diz: “Não morrerás”. Dele nos diz isto ao mesmo tempo que nos fala: “Eu te amo”.
Contanto que não nos fechemos completamente em nosso egoísmo – o que, eventualmente é o caso dos condenados -,
há em nós escondido no mais profundo do nosso ser e oculto a todos os olhares, exceto ao de Jesus, algo que merece
ser amado e existir eternamente. É esse misterioso ponto de nossos ser, que existem e Judas, Hitler e Stalin, que o
Cristo atinge com sua Onipotência de perdão. Perdoar não é passar a esponja. Perdoar é recriar, refazer, ressuscitar.
Ao perdoar-nos, o Cristo nos ressuscita, nos torna, a despeito de nossa monstruosa mediocridade, capazes da eterna
vida divina. É preciso esforçar-se para ouvir, no recolhimento de quem ora, no atento silêncio da fé, o Cristo a nos
dizer: “Tu não morrerás”, É ele, só ele, quem funda nossa imortalidade.
A vida ressuscitada é uma vida transformada ou, se preferirmos, transfigurada. “Pois passa a figura deste mundo”, diz
Paulo (1Cor. 7,31), a figura apenas. “É surpreendente, escrevia o Pe. Teilhard de Chardin, que tão poucos espíritos
consigam... apreender a noção de transformação. Ora, a coisa transformada lhes parece ser a antiga coisa intacta, ora
nela não percebem senão o inteiramente novo”.
No céu continuaremos a ser o que somos. E, e não o outro, verei a Deus em sua glória e viverei sua vida, amando
como Ele ama. Não seremos absorvidos, aniquilados, mas levados a um estado totalmente outro, refundidos,
metamorfoseados, transfigurados. Não serei outro, serei realmente eu totalmente outro.
�“Nosso corpo, segundo o Pe. De Lubac, não se destina, por efeito da ressurreição que nos foi prometida, a um
recomeço sem fim de sua existência terrestre e carnal, mais ou menos sublimado apenas pelas propriedades
miraculosas; nosso corpo foi votado, não a uma reanimação qualquer, mas a uma total metamorfose, que dele fará, nas
palavras de Paulo, um “corpo espiritual”. Ora, o que é verdade de nosso corpo individual não o é menos com respeito
ao vasto corpo coletivo que a humanidade constrói através das gerações. Sua forma (sua ‘figura’) atual é provisória...
Também o Universo está votado, no Espírito Santo, à grande Metamorfose” (o padre Teilhard escrevia “Metamorfose”
com maiúscula, pela importância do conceito no seu pensamento).
A ascensão
Diz o Credo em seguida: “Subiu ao céu e está sentado à direita do Pai”. Em que medida nossos contemporâneos
deixam-se enganar por imagens, pelas três imagens reunidas nesta frasezinha? Francamente não sei. O problema está
certamente na educação dos filhos: que significa “subiu” (o Cristo subiu)? Que quer dizer “sentado”? Que quer dizer
“direita”? (á direita, ou destra, de Deus Pai)?
Imagens e realidade
Para auxiliar os educadores, os teólogos, em livros recentes, insistem na necessidade de passar das imagens para a
decodificação dos sentidos. A título de exemplo, eis o que leio num desses livros: “Ascensão”. A palavra evoca o
monte Branco, o Everest ou o pico Lenine. E todo o equipamento do alpinista... Ascensão: a imagem exprime em
termos diversos as aspirações fundamentais dos homens: “a “subida” dos povos subdesenvolvidos, a “alta do nível de
vida”, a “mobilidade na escala social”, o contentamento dos que vêem a “valorização” do outro, dos dólares ou das
ações que lhes pertencem, ou “a escalada” de seus negócios e de sua popularidade. Estas expressões simbólicas, esses
deslocamentos na vertical não enganam ninguém: manuseamos imagens, como um organista “manuseia” Bach com os
tubos de seu órgão. Tubos são apenas tubos, as imagens são apenas imagens. Muito bem, de acordo, Talvez seja isso
que se deva dizer às crianças...
Mesmo assim, impressiona-me ver o cardeal Ratzinger, cujo livro foi escrito para pessoas cultas, reprisar o mesmo
assunto. Então deve ser necessário. “Falar de ascensão ao céu ou de descida aos infernos (e mesmo, no Credo de
Nicéia, da descida do Verbo eterno à terra: ‘Por nós, homens e para nossa salvação, desceu do céu’) reflete, aos nossos
olhos de nossa geração, despertada pela crítica de Bultmann, a imagem do mundo em três andares, que chamamos
mítica e que consideramos definitivamente obsoleta. Seja ‘no alto’, ou ‘embaixo’, o mundo é, sobretudo e sempre,
mundo; regem-no as mesmas leis físicas, ele pode ser explorado em toda parte fundamentalmente pelos mesmos
métodos. Não existem andares... A concepção de um mundo em três andares, no sentido local, desapareceu. Mas será
mesmo esta concepção que desejavam afirmar os artigos de fé relativos à descida aos infernos e à ascensão do Senhor?
Ela certamente forneceu as imagens pelas quais a fé elaborou a representação destes mistérios, mas é igualmente certo
que não constituía o essencial da realidade afirmada.”. Não há três andares cósmicos, existem apenas três dimensões
metafísicas da existência humana.
Que diz o Dictionaire Du Nouveau Testament no verbete “Ascensão”? Diz o seguinte: “cena narrada por Lucas e
assinalada no final de Marcos. Dois aspectos a caracterizam. Enquanto separação ela significa a cessação de um certo
modo de relação entre o Cristo e seus discípulos, até a Parusia. Enquanto elevação ao alto, ou subida ao céu, simboliza
a exaltação, a glorificação ou o Senhorio de Cristo, presente no universo inteiro”.
Exaltação: vale buscar no Dictionaire o que se diz sobre esta palavra: “Para dizer que Jesus Cristo é Senhor em glória,
vivo para sempre após a morte, há um termo primitivo diferente de Ressurreição: Exaltação. O termo se inscreve na
tradição judaica, segundo a qual Deus eleva aquele que foi rebaixado e preserva o justo da morte, elevando-o ao céu
(por exemplo, Elias). Esta linguagem pressupõe uma teologia elaborada a partir de uma cosmologia de três andares: o
céu no alto, onde mora o Altíssimo; a terra embaixo, onde vivem os homens; os infernos abaixo dela, onde se
encontram os mortos... Outros textos não conservam a imagem da subida: Jesus “entrou (não subiu) no céu” (Heb.
9,24), “ele se foi daqui” (at. 1,10).
Lerei, enfim, o que diz no mesmo Dictionaire, a respeito da palavra “direita” (o Cristo está sentado à direita de Deus):
“Qualificação que denota o lado mais nobre do homem (Mao ou face). A direita designa igualmente o Poder divino”.
O Cristo se assenta à direita do Poder de Deus: isto significa que participa desse Poder, que é igual a Deus em Poder,
que é Todo Poderoso como Deus, que é Deus.
Há ainda uma palavra a ser explicada, que não está no Credo, mas em ucas: é a palavra “nuvem”. O teólogo que nos
falava do monte Branco, mochila e bastão de alpinista, menciona aqui a meteorologia”. “Não é nuvem que anuncia
chuva ou proporciona sombra. A nuvem, na Bíblia, é o que manifesta a presença de Deus sem desvelar seu mistério, o
que, a um tempo, o designa e o oculta”. A nuvem que, segundo Lucas, oculta Cristo ao olhar dos apóstolos é a mesma
que conduzira os hebreus no deserto e pairava sobre a arca da Aliança, a mesma da qual se elevou a voz do Pai no
momento do batismo de Jesus, a nuvem da transfiguração no Tabor; a nuvem sobre a qual Cristo retornará no final da
�história para julgar os vivos e os mortos. A nuvem bíblica é ao mesmo tempo opaca e luminosa: é elemento essencial
da linguagem das manifestações de Deus.
Céu: encontro íntimo de Deus com o homem
Dito isto, o céu, ou os céus, para onde Jesus “subiu” é exatamente a intimidade de Deus. O que os cristãos chamam
“céu” não é um lugar eterno, supra terrestre, um domínio metafísico. É Deus. O céu é o contato do ser do homem com
o ser de Deus, o encontro íntimo de Deus com o homem.
Guardini disse uma frase que faz pensar: “Só o cristianismo ousou situar um corpo de homem na profundeza de
Deus”. Evidentemente, isto não pode ser imaginado. Mais que nunca, é preciso mortificar gravemente a imaginação.
Há um homem no seio da Trindade. Um homem é igual ao Pai e ao Espírito.
E se recordarmos a palavra de Jesus segundo João, na noite de Quinta feira Santa: “ou preparar-vos um lugar” (Jo.
14,3), deveremos concluir: o céu é o futuro do homem, o porvir da humanidade. Se há um homem glorificado no seio
da Trindade, é para que toda a humanidade esteja eternamente nesse homem, Jesus Cristo no seio da Trindade. A
Ascensão é o sinal que inaugura o céu, ou, na estrita acepção da palavra, que o faz existir.
A Ascensão é igualmente, num sentido que é necessário compreender, a partida necessária de Cristo. Uma partida que
é, antes, um novo modo de presença, não mais exterior e localizada, mas interior e universal. É a verdadeira presença
no modo de ausência. Se Jesus não houvesse “subido” ao céu, estaria ainda entre nós, no meio de nós, mas ao nosso
lado, exterior a nós como eu sou exterior a vocês, como vocês são exteriores a mim. Mas na palavra de Paulo, ele
subiu aos céus, a fim de “tudo levar à Plenitude” (Ef. 4,10).
A Ascensão de cristo é o respeito à nossa liberdade
No entanto a Ascensão é a partida de Cristo, no sentido de, no momento de tomar decisões, não podermos mais
interrogá-lo para que nos diga o que devemos fazer. Decerto podemos, devemos interrogar na oração Aquele que é em
nós mais nós mesmos do que nós. Mas ao responder ele não nos alivia da responsabilidade pelas nossas decisões e
atos. Uma frase de Jesus, no Discurso após a Ceia, é extremamente esclarecedora: “É de vosso interesse que eu parta,
pois se eu não for, o Paráclito não virá a vós” (Jo. 16,7);
O Espírito Santo, com efeito, não é Aquele que dita decisões, Ele as inspira. Deus sempre se recusará a escrever nossa
história. Se o fizesse, não poderíamos dizer que nos ama, pois consentiria que permanecêssemos na infância, na
menoridade, se nos permitirem, na criancice. Não nos expressamos corretamente ao dizer que Deus tem um projeto
para o homem. Antes de tudo, minha dignidade de homem proíbe-me de aceitar que alguém tenha um projeto a meu
respeito (mesmo que esse Alguém seja Deus!). Para muita gente, isto é um profundo motivo de ateísmo. A verdade
não é que Deus tenha um projeto para o homem, mas que o homem é um projeto de Deus, o que é muito diferente.
Deus nos quer homens, adultos responsáveis, construindo nós mesmos a liberdade, escrevendo nossa própria historia.
A partida de Cristo – sua Ascensão – é essencialmente o respeito por nossa liberdade. Doravante é impossível contar
com ele para que nos ordene que ações empreender e que decisões tomar. Claudel, ao seu modo, traduz bem a frase de
Jesus: “É de vosso interesse que eu parta, pois se eu não for o Paraclito não virá a vós”, escrevendo: “Eu devo subtrair
meu rosto a vós, para que tenhais minha alma”.
Quando o Cristo desapareceu na nuvem, os apóstolos, segundo Lucas, continuaram com os olhos fixos no céu. Mas
não havia mais que ver. “ (At. 1,9). Ou seja: não percam seu tempo. Vocês têm uma tarefa a cumprir. E para realizá-la
será preciso darem prova de inteligência e coragem. Vocês são homens, possuem mente e coração. Com a inteligência
e o coração, mergulhem no mundo.
Ora, o mundo é tão complexo quanto mau. Há muitos lobos, e o seu Mestre os envia como cordeiros para o meio
deles. Há outra imagem que Jesus empregava: “Sejam cândidos como pombas e prudentes como as serpentes” (Mt.
10,16). Ou seja: vocês não podem se eximir de analisar tão corretamente quanto possível as situações – morais,
culturais, econômicas, políticas – a partir das quais deverão decidir o que fazer. São adultos. Contem com o Espírito
Santo que está em vocês, para preservar a alma de cordeiro ou pomba, mas não esperem dele soluções tiradas do
colete. Os cristãos não se podem omitir de ser homens. Ninguém é homem quando se limita a executar ordens: Deus,
que ama os homens, não lhes dá senhas. Jesus diz: É de vosso interesse que eu parta”, e Vai embora.
É assim que Jesus se torna mais profundamente presente. Nossa imaginação divaga quando nos quer persuadir de que
o Cristo, se ressuscitou,, “está sentado à direita de Deus Pai Todo Poderoso”, ou melhor, se está no céu, não está mais
na terra; se está no alto, não está mais embaixo. Certamente acreditamos que ele desce ao altar para tornar-se presente
na Hóstia consagrada. Antigamente, sempre se empregava o verbo “descer” que reforça esta ilusão.
Dizíamos o céu é o contato do ser do homem com o ser de Deus, o encontro íntimo do homem com Deus. Portanto,
onde está Deus, lá está o Cristo. O Cristo com seu corpo e sua alma de homem está, como Deus, presente em toda
parte. Ora, é exatamente neste ponto que nossa imaginação pode nos pregar uma peça de mau gosto. Os nos deixamos
levar pelo pensamento de um corpo semelhante ao nosso corpo terrestre, biológico, ampliando as dimensões do
�mundo. Um pouco como nos deixamos levar ao representar o corpo de Cristo como que “miniaturizado”, reduzido ao
infinitamente pequeno – numa parcela da Hóstia consagrada. É absurdo, como também é absurdo imaginar (o que é
pior) um Cristo sem corpo.
Rey-Mermet chega a ironizar: “Não largou o seu corpo, como um modulo lunar descartável! É o mesmo que imaginar
um Rubinstein mandar o piano para a sucata!” Podemos nos divertir com essa ironia ou ficar horrorizados. Tudo bem!
Ma então sejamos muito firmes quanto àquilo que o próprio Rey-Mermet enunciou em excelentes termos: “Se Deus se
fez homem não foi para rejeitar precisamente o que o ‘fez homem’, o que construiu sua ‘personalidade’ de homem.
Aquilo sem o que não seria mais um homem... O Senhor ressuscitado está, pois, liberado, não da matéria, mas das
limitações terrestres da matéria. Neste mundo o seu corpo, por onde passava, era igualmente entrave e barreira.
Ressuscitado, esse corpo torna-se um maravilhoso meio de comunicação com todos os irmãos em humanidade,
totalmente próximo de todos e de cada um ao mesmo tempo, como se estivesse só”.
A nós é que compete, em plena responsabilidade, reitero, tomar as decisões que convêm para o advento de um mundo
mais humano, mas o Cristo estará presente em cada uma dessas decisões humanizantes para lhes dar uma dimensão
divina. O Cristo está presente e ativo, para divinizar aquilo que nós humanizamos. Ele nos fará passar – não amanhã,
mas hoje, dia após dia, decisão após decisão (e eu disse “passar” porque a palavra “Páscoa” significa provavelmente
“passagem”) – da terra para o céu (sendo o céu a intimidade com Deus). Eis o essencial da fé.
Segunda Parte
Acolher o dom de Deus
A Virgem Maria
Afirmamos no Credo que Jesus, nascido da Virgem Maria, foi concebido pelo Espírito Santo. Incontestavelmente é
uma afirmação que escandaliza a razão. Como não sentir-se ofuscado pela idéia de um pequeno homem ter sido
concebido sem a intervenção do elemento masculino? Como uma mulher pode ter sido, ao mesmo tempo, virgem e
mãe? No entanto, é isso que os cristãos ousam afirmar tranquilamente como ponto capital de sua fé.
A concepção virginal de Cristo é um acontecimento
Não nos deve espantar que, em todos os temos, se tenha tentado minimizar, neste ponto, o testemunho do Evangelho
para lhe reduzir a importância. Quis-se distinguir diferentes camadas literárias na redação dos textos de Mateus e de
Lucas. Insistiu-se no ponto de que os antigos eram absolutamente desprovidos de espírito crítico ou científico. Tentouse reduzir o acontecimento a um símbolo: falar de concepção virginal, diz-se, pode ter uma significação magnífica,
sob a condição de não admitir que se trata de um evento histórico.
Quero citar de imediato dois teólogos lioneses: O pe. Duquoc, dominicano e o Pe. George, marista. Escreve o
primeiro: “É preciso sustentar que não se poderia salvaguardar o sentido da concepção virginal independentemente de
sua historicidade. É o acontecimento que faz pensar e não a doutrina que inventa um símbolo. As confissões de fé
sempre compreenderam dessa maneira. Não existe razão séria para pô-las em dúvida”. Esta posição é firme e clara.
O Pe. George indica: “Que significa precisamente ‘fato histórico’? É um acontecimento que conhecemos por meio de
testemunhos, cujo valor pode ser estabelecido criticamente. A existência de Napoleão, a batalha de Waterloo são,
neste sentido, eventos históricos, porque seriamente atestados. A morte de Cristo, no tempo de Tibério, sob o
�procurador Pilatos, é igualmente fato histórico criticamente atestado pelos crentes e pelos descrentes, pelos apóstolos e
também pela tradição judaica ou pelo historiador Tácito em seus Anais.
A ressurreição de Jesus é um fato da mesma ordem? Afirmar que Jesus ressuscitou é dizer que ele se destacou das
condições gerais da historia, que ele escapa ao espaço e ao tempo, no hoje eterno de Deus. Afirmar a ressurreição de
Cristo só pode ser um fato para o crente, que entra por esta afirmação na ordem da fé onde se atinge realidades que
transcendem a pura ordem histórica.
É o caso da Anunciação, apresentada como experiência sobrenatural e interior. Uma aparição angélica, na teologia
mais estrita, é fenômeno espiritual, totalmente interior. O que não significa irreal. Trata-se de uma ordem de realidades
que provém de outro tipo de conhecimentos e, por conseqüência, de uma outra forma de testemunho.
Só Maria pode saber que seu filho foi virginalmente concebido. Em si, este fato não pode provir da verificação
histórica. Só Maria pode conhecê-lo. Segundo o que Mateus narra, de início, Maria nada disse a José e isso se afigura
verossímil. Mas Lucas, que narra a Anunciação, conta-nos também no livro dos Atos dos Apóstolos (1,4) que Maria
estava presente na Igreja nascente após a Ascensão, que ela orava com os primeiros fiéis. É verossímil que, uma vez
Jesus ressuscitado e reconhecido como Deus, Maria houvesse sido interrogada. É verossímil que lhe tenham
perguntado por sua experiência, no momento em que o Espírito Santo foi dado à Igreja.
Em parte alguma o Novo Testamento registra alguma informação de ária sobre a concepção virginal. Há, porem,
indícios. Este, por exemplo: Lucas nos diz duas vezes: “Maria, contudo, conservava cuidadosamente estes
acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc. 2, 19-51). \Ora, esta é uma fórmula empregada várias vezes no
livro de Daniel quando se trata de uma revelação que se deve reservar para o futuro, ou de uma mensagem que só mais
tarde pode ser transmitida. Lucas se inspirou em Daniel na composição do seu Evangelho. Quando ele nos diz que
“Maria conservava e meditava estas coisas em seu coração”, ele o faz sem dúvida para que compreendamos que ela
não falou de imediato. Ela se calou enquanto Jesus vivia na terra. Competia a ele falar se achasse necessário. Mas
quando Jesus ressuscitou e a Igreja passou a viver do Espírito Santo, seria normal que se voltassem para Maria,
perguntando-lhe por suas lembranças.” E ela, que as guardara precisamente em vista destes tempos, as confia a Lucas.
Tentou-se igualmente inserir o testemunho do Evangelho no quadro da história das religiões, a fim de apresentar a
concepção virginal como uma variante de um mito universal. O fato é que o mito do miraculoso nascimento do
salvador e largamente difundido. Em nossos dias, foi renovado por Freud e pela psicanálise. Ele exprime uma
nostalgia da humanidade: a virgem intacta personifica a inocência, a pureza, a maternidade tranqüilizante e boa. O
Evangelho simplesmente retomaria, por conta própria, as obscuras aspirações da Humanidade em relação à “virgem
mãe”?
Um estudo aprofundado demonstraria que os relatos de Mateus e de Lucas não se enraízam na historia das religiões,
mas no Antigo Testamento. Sublinhemos, acima de tudo, com o cardeal Ratzinger, que há uma radical diferença entre
o Evangelho e os relatos pagãos do mito do nascimento miraculoso. Nos relatos pagãos é num sentido físico,
propriamente biológico, que o deus é pai do menino-salvador; o deus desenvolve uma atividade sexual, procria,
fecunda, de modo que o ser gerado é um semideus, metade deus, metade homem.
Não há nada disso no mistério da Encarnação. Deus não é o pai de Jesus no sentido biológico, como se o Espírito
Santo houvesse depositado o sêmen no útero de Maria. A virgindade de Maria não é o fundamento da filiação divina
de Jesus. Jesus não é metade Deus, metade homem. É verdadeiro Deus e verdadeiro homem, isto é, plenamente Deus e
plenamente homem.
Na opinião de Ratzinger (não compartilhada por todos os teólogos), a doutrina da divindade de Jesus não seria posta
em causa, se Jesus houvesse nascido de um casamento normal, se houvesse sido concebido como todos nós, pela
conjunção sexual de um homem e uma mulher. Ratzinger certamente tem razão, no sentido de que os apóstolos
acreditaram na divindade de Jesus graças à ressurreição, independentemente da concepção virginal. Mas os Padres da
Igreja, ao argumentar contra os hereges em defesa da divindade de Cristo, fazem com que a concepção virginal
desempenhe um papel de destaque.
Seja como for, a concepção virginal não significa, para a fé cristã, que um novo Deus-filho vai nascer. É o Filho
eterno de Deus, o próprio Deus portanto, que se torna homem. Assim, não se pode reduzir o Evangelho a simples
variante de um mito no quadro da historia das religiões.
O núcleo de tudo é que Deus é o Pai de Jesus, só Deus. Cristo não é fruto da historia da humanidade, não é a
humanidade que o fera. Ele é o Dom do Alto. Não procede das entranhas da humanidade e sim do Espírito de Deus.
Ele é, como diz Paulo, o “Novo Adão” (1Cor. 15,47). Adão é a humanidade, com o Crist, é uma nova humanidade que
começa.
Ratzinger observa que, se dermos à concepção virginal um sentido puramente simbólico, se o acontecimento for
suprimido, como hoje em dia é tendência de muitos, não haverá mais que discursos vazios e, literalmente, falta de
honestidade.
Ardor e sobriedade da fé da Igreja
�O Credo é de uma notável sobriedade. Deveríamos ser também muito sóbrios, sobretudo ao mencionar Maria. O
excesso e a intemperança da palavra acabam sempre por rebaixar o que se deseja exaltar. Com as melhores intenções
do mundo, dá-se livre curso à imaginação, à sensibilidade e até à curiosidade. E corre-se o risco de esquecer que o
Evangelho, diante do mistério de Deus, impõe a mortificação da curiosidade, da imaginação e da sensibilidade que,
não raro, desdobram-se no nível da pele em detrimento da profundidade.
A sobriedade não exclui o ardor. A verdadeira intimidade não é árida nem gélida. Há um louvor maravilhoso no
silêncio do amor. Louvar alguém, na verdade, é dar-lhe a saber que é digno de ser amado. Ora, é possível dizer isso
com a maior eloqüência por meio de um simples olhar, mais do que pela verborréia.
Ardor e sobriedade, vida profunda da Igreja. Um não se dá sem a outra. O ardor se traduz pelo jorrar espontâneo e
ininterrupto da oração no meio do povo de Deus. A sobriedade é o apanágio da s definições dogmáticas: quando a
Igreja julga necessário, formula breve e claramente o que deve ser afirmado para que a luz que vem de Cristo seja
acolhida corretamente. Se a piedade não fosse esclarecida pelo dogma, ser-lhe-ia penoso evitar o excesso, o exagero e
o extravio. Ma se a formulação dogmática não fosse vivificada pelo impulso ardoroso do coração, seria árida como um
teorema, abstrata e estéril. Para almas esfaimadas, seria como se se desse pedra a comer, quando a fome é de pão.
Desde o início de sua historia, a Igreja reflete sobre o mistério de cristo, verdadeiro deus e verdadeiro homem. A
Encarnação é o centro de tudo, o núcleo do Real, da própria Realidade. Não se trata de um mistério entre mistérios,
mas do Mistério.
Todavia, a reflexão sobre Maria acompanha a reflexão sobre Cristo. “Acompanha”: parece que esta palavra foi
pronunciada elos observadores do Oriente cristão no último Concilio e é muito esclarecedora. Quando existe melodia,
existe acompanhamento. A melodia é o que importa e, se o acompanhamento também é importante, é de modo
subordinado e em função da melodia. O acompanhamento musical não vale por si, independentemente da melodia,
mas unicamente com relação a ela.
A Igreja sempre entendeu o assunto desta forma. Ela fez orações a Maria, formulou dogmaticamente a grandeza de
Maria, mas sempre e unicamente como acompanhamento de sua oração ao Cristo, de sua reflexão sobre o cristo. Não
um acompanhamento de sua reflexão sobre o Cristo. Não um acompanhamento arbitrário, mas necessário. Conforme
escreveu o cardeal Ratzinger: “A devoção mariana não pode repousar sobre uma mariologia que seria uma espécie de
segunda edição reduzida da cristologia; não há o direito nem motivo para estabelecer esta espécie de duplicata”. Os
Padres da Igreja sempre viram em Maria a figura da Igreja, a figura do crente que não pode atingir a realização plena
de si mesmo a não ser pelo dom de amor. O Cristo é o Dom doado; Maria o Dom acolhido.
A IGREJA, FACE VISIVEL DO DOM DE DEUS
Se tantos de nossos contemporâneos, notadamente os jovens, mas também os mais velhos, fazem a pergunta: “Não
seria possível aceitar a Cristo sem pertencer à Igreja?” . Fazem-na porque a Igreja se apresenta como obstáculo à fé.
Eles bem que desejariam amar o Cristo e seu Evangelho, mas sem o que chamam de “o sistema”, entendendo-se com
isto as instituições pontifícias, diocesanas, jurídicas, morais, sacramentais, etc., que pesam sobre os ombros de tantos
deles como uma canga ou chapa de chumbo.
Visibilidade do dom de Deus
Não se vai ao encontro de Deus; Ele é quem vem ao nosso encontro
Será possível ir ao encontro de Deus sem pertencer à Igreja? Eis uma pergunta que oculta uma cilada. Nas religiões
não cristas, a questão é de fato ir até Deus: em todos os tempos, pressentiu-se que existe, alem do mundo, um ser
transcendente, todo poderoso, e as religiões tentaram elevar o homem, para que ele fosse ao encontro desse(s)
deus(es). Claro que podemos tentar nos elevar a Deus, como nos elevamos na direção de um ideal. Os artistas têm um
ideal estético; os cientistas, um ideal científico; os políticos, um ideal político. Nas religiões há um ideal religioso.
�Mas se estamos falando da divinização da humanidade, se este é o objeto de nossa fé e a originalidade do cristianismo,
não se trata de ir a Deus. Ninguém vai divinizar a si mesmo, porque isso não tem sentido. Deus é que vem. Não há
caminho do homem para Deus. Aonde vocês querem ir? Aonde pensam que vão subindo pó ruma escada de corda? Há
um caminho de Deus em direção ao homem que se chama Igreja. A Igreja é o caminho que Deus percorre para se
reunir a nós. Ele não quer divinizar os indivíduos isoladamente, mas a humanidade inteira. Deus se dá: a Igreja é a
face visível desse dom de Deus na historia, ela é a porção de humanidade que acolhe visivelmente o dom de Deus.
Note-se que Maria é a Igreja toda ao dizer “sim” a Deus. Antes de ser uma instituição, a Igreja é o acolhimento a Jesus
Cristo e a comunhão daqueles que acolhem o Senhor.
Isto é capital. No discurso após a Ceia (Jo. 13, 17), Jesus não diz: “subam até Deus”, mas “...e o Pai o amará e a ele
viremos e nele estabeleceremos morada” (J. 14,23). A morada de Deus está entre os homens. Amar a Igreja é amar o
movimento de Deus em nossa direção. É amar a pressa com a qual o Senhor se dirige a nós (conforme a parábola do
Pai Misericordioso) para nos levar consigo e nos fazer viver de sua vida. Evidentemente, podemos opor obstáculos a
esta vinda de Deus, podemos nos fechar em “capas impermeáveis” que Deus não poderá perfurar (Péguy tem paginas
encantadoras sobre aquilo que se chama “o banho” da graça divina). O certo é que Deus vem. Ele não está imóvel,
congelado na eternidade, está vivo. Ora, a vida é movimento, a vida de Deus é movimento que se dirige a nós. Jamais
deveríamos pensar nele sem os braços estendidos para nós correndo ao nosso encontro.
Pertencer invisivelmente à Igreja
Que acontece aos que não conhecem a Igreja? Salvam-se? A questão é saber por que razão eles rejeitam a Igreja. É
mais que provável que muitos o façam por boas razoes: alguns não vêem nela a manifestação visível de Jesus Cristo e
sim uma organização que lhes parece decadente; têm a impressão de que a Igreja é o ninho de todas sãs superstições;
julgam (e nem sempre estão errados) que ela é aliada dos poderes deste mundo, etc.; em suma, nada vêem na Igreja
além de caricatura. Bem sei que, com freqüência, damos motivo a caricaturas e devemos rezar nosso mea culpa.
O certo é que os milhões de pessoas que não conhecem a Igreja, ou, se a conhecem, não querem ouvir falar dela pelas
razoes acima pertencem invisivelmente à Igreja, isto é, estão salvas, divinizadas, terão uma eternidade igual à que
esperamos (participação na própria vida de Deus), na medida em que obedecem à própria consciência. Só Deus pode
saber se alguém pertence ou não invisivelmente à Igreja. Eu não posso julgar. Como dizia Agostinho: “Há os que
crêem que estão dentro e estão fora; e há os que se crêem fora e estão dentro”. A questão é saber se todas essas
pessoas a quem chamamos descrentes adeririam ou não se a Igreja lhes fosse apresentada tal qual é, sem caricatura,
como o sinal histórico de nossa divinização.
É melhor não dizer que existe uma Igreja visível e uma invisível. Só há uma Igreja, visível. Como querem que não o
seja, uma vez que é o sinal de nossa divinização? Um sinal é evidentemente visível. Pode-se dizer que haja quem
pertença invisivelmente à Igreja e quem pertença visivelmente. Os novecentos milhões de chineses estão salvos,
divinizados, por uma Igreja que não conhecem, sob a condição de sua atividade ser verdadeiramente humanizante. Em
outros termos, se não houvesse Igreja, não haveria salvação.
A Igreja não é uma instituição que rege do exterior a vida dos cristãos, como uma organização que possui regras, leis e
programas que todos deveríamos subscrever para dela fazer parte. A Igreja nos transmite a vida divina, ao mesmo
tempo que nos comunica também as suas regras. Nossa vida tem necessidade de ser, ao mesmo tempo, animada,
dinamizada e regulamentada. Se não houver regras, o puro dinamismo é capaz de nos conduzir às piores aberrações.
Inversamente, onde não houver senão regras, leis e disciplinas sem vida, sem impulso, haverá um puro juridicismo que
não corresponde a nenhuma de nossas necessidades profundas. O essencial é a vida, é a fonte.
A fonte é o cristo. Nós nos comunicamos com deus através de Cristo e nos comunicamos com o Cristo por meio da
Igreja. É muito fácil abandonar a Igreja, querer ir ao encontro de Cristo sem o intermédio da Igreja; mas é de “nossa
Santa Madre Igreja” que aprendemos quem é Jesus Cristo. Que história é essa de subir aos ombros daquela que foi a
nossa ama para calcá-la aos pés? Ela tem defeitos e faltas que nos fazem sofrer, tanto quanto padecemos com as
imperfeições de nossa mãe. Mas sem a Igreja, de que modo saberíamos que Deus é amor e se encarnou? Suprimam a
Igreja. Em vinte anos ninguém mais saberá que Deus se doa. Ninguém mais saberá que o sentido da vida é
compartilhar eternamente da vida de Deus. Decerto existem na Igreja pedagogias o mais das vezes obsoletas,
estruturas a modificar de fio a pavio. A Igreja é semper reformanda, segundo tradicional provérbio. Mas isso não
impede que o ensinamento fundamental sobre as coisas, a saber, que existe um homem-Deus e que nele somos
plenamente humanizados e divinizados, nos seja oferecido pela Igreja. E não só este ensinamento, mas a própria vida
de cristo na administração dos sacramentos.
A Igreja não é, como pensam alguns, uma necessidade pedagógica transitória, comparável à autoridade dos pais, da
qual nos libertamos à medida que avançamos vida adentro. Ao contrário, quanto mais avançamos na vida, mais
próxima está a Igreja, uma vez que é por meio dela que avançamos, é ela que nos faz avançar.
Farei uma comparação: o homem é polarizado, ou imantado pelo Deus que vem e nos atrai a si. A força de imantação
é a Igreja: deixar a Igreja é deixar o campo magnético.
�Conseqüentemente, a Igreja não é – e há quem a exprobre por isso – uma espécie de intermediário entre o homem e
Deus, impedindo que haja contato direto. Não é mediadora, no sentido em que uma nação é mediadora entre duas
outras, cujos pontos de vista são opostos, com o fim de as aproximar e remover uma conciliação. A Igreja não se
mantém exatamente no meio entre o homem e Deus; ao contrário, ela estabelece o contato. De certo modo, ela é a luz
graças à qual existe comunicação direta entre o homem e deus em Cristo. Para aprofundar esta compreensão da Igreja,
é preciso conhecer sua tríplice origem.
TRÍPLICE ORIGEM DA IGREJA
Origem histórica
A Igreja nasceu da fé na ressurreição de Jesus e da fidelidade dos crentes ao dinamismo provocado por essa
ressurreição. A convicção primeira, da qual vive a Igreja primitiva, é a seguinte: o Cristo ressuscitou, ele vive para
sempre. Progressivamente, todos aqueles que partilham esta convicção chegam às conseqüências: uma superação
radical das possibilidades humanas manifestou-se em Jesus. Ele é o Senhor universal, aquele do qual se pode dizer o
que se dizia de Iahweh: O “Santo”, é aquele pelo qual temos uma relação com o Absoluto vivo. O fato histórico que
ninguém pode eludir é o testemunho dos apóstolos, ligado ao nascimento da Igreja.
A Igreja é o desígnio de conservar este testemunho numa comunidade que se organiza. Em pleno meio judaico, o fato
cristão é o surgimento de uma absoluta novidade. Para a mentalidade judaica, a distância entre Deus e o homem era
intransponível; o judeu estava como que esmagado pela transcendência de Deus. Ora, eis que se prestava um culto a
Jesus de Nazaré. Os que o conheceram dizem que ele era “Senhor e Cristo”(At. 2,36; 4,26); “autor da Vida” (At.
3,15); “Chefe e Salvador” (At. 5,31); “Senhor de Todos” (At. 10,36); “Juiz dos vivos e dos mortos” (At. 10,42); “Luz
das nações” (At. 13,47).
Encontraram-se pessoas, ainda na véspera, incrédulas e desamparadas, para testemunhar em público, no dia seguinte,
ou quase simultaneamente ao fato, em favor de um homem, Jesus, que todos haviam visto morrer no infamante
madeiro da cruz; para testemunhar, diante dos próprios juízes dele, cuja cólera havia ainda que temer, para afirmar que
aquele morto estava ainda e estaria sempre vivo e que ele é o Senhor da Glória de Deus (P. Moingt). Os apóstolos não
puderam deixar de apresentar esse testemunho: “Não podemos deixar de dizer o que vimos e ouvimos” (At. 4,20). Os
membros dessa comunidade descobrem (segundo os Atos dos Apóstolos) que a transcendência de Deus, manifesta em
Jesus, implica a absoluta universalidade de sua mensagem. ]Todos os homens, portanto, são chamados a constituir o
povo de Deus.
Origem da Igreja: Deus
A palavra começo tem dois sentidos: origem e emergência. O importante é distinguir bem uma coisa da outra: a
origem de uma criança é sua concepção; sua emergência é o dia de seu nascimento. A origem é o primeiro começo,
original, oculto, não observável. A emergência é o começo observável, explícito, a manifestação visível. Acabamos de
refletir sobre a emergência da Igreja. Do mesmo modo como alguns nos dizem: nasci em tal cidade, em tal dia, em tal
hora, a Igreja nos diz: nasci na Páscoa e em Pentecostes, mas minha origem (minha concepção está em Deus, n
“mistério oculto de Deus” (Ef. 3,9).
Deus se fez Cristo, para que o Cristo se fizesse Igreja. Para dizer de outro modo, a Encarnação não se conclui na
pessoa de Cristo. Se o Cristo existe, é para que toda a humanidade seja cristificada. O que Deus, em sua eternidade,
visa é a união com a humanidade inteira, é a união `qual chamamos Igreja.
Notem que a orem da execução é inversa à ordem da intenção. A eterna intenção de Deus é a comunidade de todos os
homens divinizados, aquilo que Teilhard chama de “ponto ômega”. Daí a emergência de uma realização progressiva:
criação da matéria, da vida (vegetal e animal), do homem, advento do Cristo, desenvolvimento da Igreja que é a
visibilidade do dom de Deus, ou da vocação do homem para acolher o dom de Deus.
Não digamos aos homens retos que não são cristãos: “São cristãos sem o saber”. Nada os pode agastar mais. Isso não
passa de um trocadilho. Vamos, 0ois, distinguir os três sentidos da palavra “Igreja”:
• O que é primeiro no desígnio de Deus: a reunião comunitária final (eterna) em Cristo;
• A pertinência invisível à Igreja visível;
• A própria Igreja visível.
Os dois primeiros sentidos só podem ser entendidos pelos que crêem. Nos dois primeiros sentidos, falamos sobretudo
do Reino. O terceiro sentido é aquele que suscita agravos, incompreensões, à medida que a Igreja se apresenta como
tela e não como sinal.
�Origem da Igreja no homem
Há uma profunda correspondência entre o que a Igreja quer significar e o que o homem é no mais íntimo do seu ser. O
que a Igreja propõe existe no coração do homem como aspiração essencial. Fosse a Igreja, de algum modo, estranha
ao homem, não seria senão peça de encaixe, caída de pára-quedas, desinteressante! O homem, efetivamente, é um ser
relacional com duas dimensões, uma horizontal, outra vertical. A relação com o mundo e com outrem é essencial para
ele. Sem isto, não existiria; que seria de uma criança sem os pais? O outro é essencial para mim, sem o outro nada sou.
O homem busca perdidamente a comunhão (coleguismo, amizade, fraternidade, amor, etc.).
A relação com Deus, porem, não é menos essencial para ele. Cada um, ao refletir, não pode deixar de convir nisto:
“Não sou minha própria fonte, não sou o centro unificador de todas as consciências, não posso ser o autor da
comunhão universal, à qual todos os homens aspiram, conscientemente, u não; é preciso que a comunhão fraternal dos
homens funde-se em algo, tal como minha existência”. Mais profundamente que toda “prova” e Deus no plano
intelectual, o homem “sente que o sentido da vida, ainda que seja dele (ele é criador), é de Outro, o Absoluto vivo que
dá origem a sua existência.
A Igreja (não a caricatura, mas a Igreja, tal como Cristo a quer) apresenta-se como realização dessa dupla dimensão:
união do homem com Deus, união dos homens entre si. Ela nos diz: tu és divinizavel, tu és atraído por Deus do mais
íntimo de teu ser, teu itinerário pessoal em direção a Deus prossegue a par de tua união com os homens. O “vertical”
não acontece sem o “horizontal”. Um se enraíza no outro. A Igreja é a figura histórica da própria natureza humana.
Desfigurada pelas infidelidades dos cristãos, ela decepciona na medida em que não é sinal de Cristo. Isto explica a
errância de tantas pessoas que buscam Cristo em toda parte, sem o buscar na Igreja, tal como se apresenta. Pois o
homem, que não pode renunciar à Igreja sem renegar o que, fundamentalmente, o constitui, vai criar ersatz de Igreja,
transformando o sexo, o dinheiro, a droga e os “paraísos artificiais” num absoluto e num meio de reunião. Mas o caos
da historia incita a Igreja a renascimentos dos quais emerge uma fidelidade renovada, apresentando ao mundo, de
modo mais autêntico, o rosto de Cristo.
MISTÉRIO DE AMOR
Para penetrar no mistério da Igreja, até a sua realidade profunda, que é o Cristo ressuscitado dando-nos o Espírito de
amor, e preciso compreender que não há diferença entre a frase fundamental de Jesus: “Nisto reconhecerão que sois
meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35), e o que nos diz o Credo: “Creio em uma só Igreja,
santa, católica e apostólica”. O amor é uma palavra imprecisa, facilmente superficial, sentimental. É sempre possível
enganar-se sobre o que é o verdadeiro amor. São as quatro notas, ou as características da Igreja que nos dizem como
ela deve ser animada pelo amor e como deve trabalhar, a fim de reunir todos os homens no amor. Dizer que a Igreja é
uma, santa, católica e apostólica é dizer que ela é um mistério de amor.
Uma
Só o amor une e unifica. Deve-se começar sempre pela justiça, pois o amor é quimérico quando não desabrocha sobre
o fundamento da justiça. A justiça, porém, pode separar; haverá respeito mútuo, mas não comunicação ou comunhão
recíproca. Não haverá comunidade autêntica sem o cimento do amor.
Quando Cristo nos diz: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, não utiliza uma simples comparação: assim
como vos amei, amai-vos. Ele quer dizer: amai-vos com o mesmo amor com que eu vos amo. Ora, esse amor não é um
sentimento, mas uma pessoa viva, o Espírito Santo que, na Trindade, faz a unidade do Pai e do Filho e é o liame de
amor. Ele nos é dado no batismo e em cada uma de nossas comunhões eucarísticas, para que tenhamos a força e a
energia de derrubar os obstáculos que se opõem ao amor. Mas nós resistimos, não nos deixamos facilmente arrancar
ao egoísmo que separa e divide. Eis porque a unidade da Igreja é tão imperfeita.
A comunidade ideal que a Igreja seria num mundo sem pecado não existe; ela está a caminho da unidade. O desígnio
de deus é que o mundo inteiro seja à imagem da Trindade, que os homens sejam um no amor, à imagem da unidade da
Trindade. A unidade não está pronta, e sim por se fazer.
Essa unidade não impede certa diversidade de funções, de escolas teológicas, de espiritualidades, etc.Como na
Trindade, a verdadeira unidade não é uniformidade. A fidelidade à unidade da moda não vai fazer com que todas as
mulheres andem de uniforme. Desse modo não haveria beleza. Não é porque o homem é diferente da mulher e a
mulher, do homem, que não há unidade no lar; há unidade e ela é fruto do amor. Eis porque é preciso se guardar do
espírito sectário. A unidade só é rompida quando as diferenças se transformam em oposições na recusa ao diálogo.
�Santa
A palavra “santo” não significa santidades das pessoas humanas e sim a de Cristo. A Igreja é santa porque Cristo é
santo. O Cristo é aquele que traz a santidade de Deus a um mundo pecador, ou, o que vem a dar no mesmo, o Amor
puro. No Antigo Testamento a palavra “santo” só é aplicada a Deus (assim, no Cântico de Isaías, 6,3; Santo, santo,
santo é o Senhor; o Magnificat proclama: Santo é seu nome). Deus é “o Santo”. Assim, quando qualificaram Jesus de
santo, houve um tremendo escândalo, porque era a primeira vez que, em Israel, ousavam aplicar a um homem o nome
reservado a Deus. Desde então, os cristãos passaram a ser chamados de “santos”, o que se tornou artigo do Credo:
creio na comunhão dos santos.
Deve-se compreender que santo não é sinônimo de perfeito, de sábio, ou do herói que, ante circunstâncias
excepcionais, manifesta grande coragem. Santos são os que vivem da vida divina. Pois este é o núcleo da nossa fé:
todos os homens são chamados a partilhar eternamente a própria vida de Deus, a amar como ele ama. Há portanto uma
misteriosa comunhão de santificáveis santificados ou de divinizáveis divinizados; eu disse: misteriosa, pois continua
aberta a questão de saber quem é divinizado e em que medida.
A santidade da Igreja é o poder de santificação, ou de divinização que Deus exerce, malgrado os pecados dos homens.
Karl Rahner fala de “santa Igreja dos pecadores”. Dizer que a Igreja é santa é dizer que nela existem, ao mesmo
tempo, a fidelidade de Deus e a infidelidade dos homens e que Deus permanece fiel, a despeito da nossa infidelidade.
Quando refletimos vemos que o inaudito é que Deus, como receptáculo de sua presença e ação, escolha “mãos sujas”
– para retomar o título da peça de Jean-Paul Sartre.
Não há contradição entre a santidade da Igreja e a nossa mediocridade. Ao contrário, a santidade da igreja irrompe no
fato mesmo de ela não temer sujar-se no contato com os pecadores que somos. Em todos os instantes de sua vida
pública, Jesus freqüentou “pecadores”, comeu com eles, estava bem à vontade em sua companhia. Nele não havia
atitudes rígidas e de exclusão: “Não vim chamar os justos e sim os pecadores” (Mt. 9,13). “Vim buscar e salvar o que
estava perdido” (Lc. 19,10). Se a Igreja excluísse de seu seio os tíbios, medíocres, pecadores, querendo ser um gueto
de puros, é mais que certo que não seria santa! Pensem numa Igreja sociedade dos perfeitos. ]Como poderia ser
humilde? Uma Igreja gangrenada pelo orgulho não poderia ser sinal do Deus infinitamente humilde. Não existe
imperfeição maior que a de imaginar que se é perfeito.
Cabe a nós prover à santidade da Igreja, pois o que é a Igreja senão todos nós? Se dizemos que a Igreja não é santa,
isso quer simplesmente dizer que não somos santos. A menos que ainda confundamos, como se fazia até poucos anos
atrás, a Igreja com sua hierarquia. O corpo hierárquico é função da Igreja, os leigos representam outra função, e a
santidade é exigida de ambas as partes.
Católica
Esta palavra significa universal. Como poderia ser de outro modo se a Igreja foi encarregada de tornar visível o amor
de Deus? O dom de Deus não pode ser particular, é para todos os homens, de todos os tempos e países. Assim cristo é
sacramento de Deus, ou seja, o próprio Deus tornado visível, a Igreja é o sacramento de Cristo para todos os homens.
Não pensemos em universalidade da Igreja como extensão geográfica. A Igreja é católica em sentido mais profundo:
ser capaz de unir em Jesus Cristo todas as nações, raças, culturas e civilizações. “A Igreja era já católica na manhã de
Pentecostes, quando todos os seus membros cabiam numa sala pequenina; ela o era no tempo em que as vagas arianas
ameaçavam submergi-la e o será amanhã, se massivas apostasias a fizerem perder quase todos os fiéis.”.
A Igreja é católica porque só ela pode revelar aos homens o sentido da vida. É a capacidade, que vem do Espírito
Santo, de responder às verdadeiras necessidades de todos e quaisquer homens. Para pertencer à Igreja, um homem não
terá de renunciar a nada de essencial; na prática, porem, as coisas infelizmente são bem diferentes. Andei por
Camarões, Tchad e pela República Centro Africana: se vocês soubessem como é triste ver Igrejas construídas em
estilo europeu, quando existe uma esplendida arte negra...
Todos conhecem a historia dos jesuítas na China, no século XVII, liderados pelo Pe. Ricci: astrônomos,
compreenderam imediatamente os letrados chineses; foram perfeitamente acolhidos pelas camadas populares, pois
falavam a língua do país. E não impuseram aos chineses os ritos ocidentais. Infelizmente, tal modo de proceder foi
condenado em Roma, por diversas razoes. Ora, se na alma dos chineses, como na de todos os homens, existe
expectativa pela vinda do Cristo, não há receptividade à cultura ocidental. Por que querer que o chinês abandone sua
requintada polidez, sua arte, sua musica? Houve um bloqueio entre um certo estilo de vida e o Evangelho; de igual
modo, no século passado, isto aconteceu com respeito à cultura “burguesa”. Para tornar-se cristão, não é preciso
renunciar à riqueza humana autêntica. Ao contrário! A Igreja católica, ou seja, capaz, apesar de seus erros e faltas, de
acolher todas as riquezas humanas, a fim de que elas sejam divinizadas em Cristo.
Apostólica
�Ao dizer que a Igreja é apostólica, referimos que, a despeito de diferenças não raro consideráveis no plano das formas
e modalidade exteriores, a Igreja de hoje é a mesma Igreja dos apóstolos. Ela é fiel a Cristo que a fundou através de
todas as vicissitudes e transformações da historia. Ela é a continuidade, desde os apóstolos até nossos dias, de um
serviço de humanidade: a educação para o amor. Os doze apóstolos (numero simbólico correspondente às doze tribos
de Israel, ou seja, todo o povo de Deus) já configuravam a Igreja. Desde a Ascensão, o Cristo está invisível, mas
permanece presente e atuante. Ele nos toca hoje em dia, visivelmente, pelo seu Espírito, e visivelmente pelos
sucessores dos aposto9los e pelos sacramentos.
Seria necessário que a Igreja fosse uma comunidade governada unicamente pelo amor, onde não houvesse nenhuma
função de autoridade. Isto, efetivamente, seria ideal e é assim que será a Igreja no Reino de Deus. No céu não haverá
hierarquia, não haverá papa nem bispos. Nós, porem, estamos num mundo de pecado: a Igreja é uma comunidade de
amor que, necessariamente, possui aspectos de sociedade. Existem, com efeito, três níveis de agrupamento humano:
•
•
•
A multidão ou rebanho: nela a força e a lei da selva dominam;
A multidão organizada é sociedade: o direito substitui a força; é preciso uma autoridade para fazer respeitar o
direito ou ordem jurídica;
A comunidade, enfim, onde reina o amor que funda a comunhão fraterna.
Não esqueçamos que, ao transpor a passagem para o direito, a força não é abolida; tampouco quando se transpõe a
passagem para o amor. Imagina isso quem pensa que já estamos no paraíso. Vida nenhuma é possível se não levarmos
em conta as relações de força que subsistem.
Na Igreja, como tal, é inevitável que haja um direito, uma autoridade, um governo... ou estaríamos em pleno sonho!
Porém, todos os debates atuais correm o risco de falseamento se a Igreja for considerada apenas como sociedade ou
instituição ordinária. Os problemas estruturais, que são reais e devem ser analisados com atenção, devem ser
encarados em relação com o Absoluto do Amor, cuja face visível é a Igreja na história.
�Terceira Parte
O Cristo, verdadeiro
Deus, verdadeiro
homem, revela quem é
Deus, quem é o homem
INTRODUÇÃO
Os cristãos correm o risco de declarar Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, declaração que constitui o
essencial de sua fé. Somos às vezes tentados a propor em termos antes de tudo conceituais a questão de saber como
pode Deus ser um homem, e um homem, Deus. Mas é preciso resistir à tentação, pois que é o homem e quem é Deus?
Não o sabemos senão por meio do Homem-Deus: foi ele quem o revelou a nós. Deve-se pois, renunciar a, num
primeiro tempo, elaborar os conceitos de humano e de divino, para tentar, num segundo tempo, harmonizá-los e
prestar contas da possibilidade de um Homem-Deus. NO entanto, este é um modo de refletir familiar a muitos. Nada
de espantar que conduza a impasses. As ciências humanas certamente nos dizem algo sobre o homem, e o discurso
filosófico nos diz algo sobre Deus. Mas é a própria existência do Homem-Deus que conduz a isentar de contradição a
possibilidade, para o ser Absoluto, de tomar uma figura no mundo do relativo (nosso mundo), sem deixar de ser o
Absoluto, a possibilidade de Deus tornar-se homem sem cessar de ser Deus. Não se pode construir uma c9iencia do
�Cristo a partir de uma ciência de Deus e de uma ciência do homem que a precedessem. A teologia (ciência de Deus) e
a antropologia (ciência do homem) devem, ao contrário, buscar a própria origem na cristologia (ciência do Cristo).
O ser de Jesus Cristo é Abertura total. Ele é inteiramente Filho. Para nós, Filho e Verbo se equivalem. Verbo significa
Palavra. Ele é inteiramente Palavra. A palavra não subsiste por si, provem de alguém, é a palavra de alguém. Do
mesmo modo, o filho é de alguém, existe por alguém, o Pai. A palavra é pronunciada para ser ouvida, dirige-se a
outros. Assim é o Verbo, proferido para ser entregue aos homens. Dizer que o Ser de Jesus Cristo é Abertura Total é
dizer que Ele é Amor. Pois amar, de algum modo, é estar suspenso entre dois pólos, o da acolhida e o do dom. Acolher
é “ser por” outro; dar é “ser para” o outro ou outros. Não se deve dizer que em Jesus Cristo existe amor, é preciso
dizer que ele é Amor. Mas só Deus é Amor. Se Jesus é Amor, é preciso confessar que Ele é Deus. Deus como Filho,
perfeitamente Filho. Filho único de Deus. Verdadeiro Deus.
Mas também verdadeiro Homem. Se Jesus está totalmente presente no que faz, se está totalmente presente no que diz,
se é todo para os outros, Ele é o mais humano dos homens, é a plenitude do humano. Na verdade, o único homem
plena e absolutamente homem. É aquele perto do qual somos meros esboços de homem, homens em devir de
humanidade. Ele é o que viremos a ser. Verdadeiro homem.
Concordamos com o poeta René Char, em síntese brilhante “A águia está no futuro”. A águia? Quem puder que
traduza isto em prosa! Trata-se do homem, tal como deve ser. O Cristo é esse homem. Eis porque Paulo o chama de “o
novo Adão” ou o “derradeiro Adão” (1Cor. 15,45), isto é, o homem tipo, o homem exemplar. O homem é tanto mais
homem quanto menos voltado para si, quanto menos limitado. A passagem de animal a homem, ou a passagem da
vida ao espírito, cumpre-se quando um ser de terra e pó eleva o olhar para alem de si e do próprio ambiente e chama a
Deus de “tu”. O que faz o homem é a abertura ao Todo, ao infinito. O homem é plenamente homem quando, não
apenas entra em contato com o infinito, mas está com Ele. Jesus Cristo é o Homem que é um com Deus.
É preciso acrescentar: se há um homem que seja um Deus, todos podem vir a sê-lo. Vir a ser o que Jesus Cristo é, eis a
vocação de todo homem. Jesus Cristo não é exceção à humanidade, no sentido de uma eminente curiosidade, por meio
da qual Deus nos exibiria tudo o que é possível ao seu Poder. A existência do Homem-Deus concerne à humanidade
toda. Na Bíblia, a palavra “Adão” expressa a unidade de toda a realidade humana. Se Paulo chama o Cristo de “novo
Adão” é para declarar que nEle toda a humanidade está reunida. Ele é a Cabeça de um Corpo cujos membros somos
nós. Ou, para dizer como os ingleses, Ele é uma corporate personality, uma personalidade corporativa. Ou, em termos
teilhardianos, o maximum de complexidade na mais perfeita unidade.
DEUS TRINDADE: A INTIMIDADE DE UM
DEUS TODO AMOR
O Abade Bockel, cura da catedral de Estrasburgo, amigo de André Mauraux, escreve que recebeu um soco no
estomago durante uma conferencia que fiz em sua cidade, quando fiz brutalmente a seguinte pergunta: “Se, por
impossível, a Igreja lhes dissesse que Deus é uma só pessoa e não mais a Trindade, que diferença isso faria em suas
vidas?” O abade Bockel diz que, nesse momento, compreendeu que o cristianismo não é uma filosofia, um conjunto
de verdades para crer, que formariam entre si um sistema comparável ao de Kant ou ao de Bergson, mas que todos os
dogmas têm um impacto prático.
Penso que se Deus não fosse Trindade eu provavelmente seria ateu. Não estou totalmente certo disso, pois tenho
grande dificuldade de me situar em tal hipótese. Em todo caso, se Deus não é Trindade, não entendo nada de nada.
O poder de Deus e o poder do Amor
Nós, cristãos, afirmamos tranquilamente, como se isto fosse evidente, que Deus é todo-poderoso, ou será que
pronunciar tais palavras provoca em nós um mal estar? Reio que, para muita gente, isto não apresenta dificuldades;
efetivamente, se Deus é Deus, não se compreende como não será todo poderoso. Mas há outras pessoas contudo, cada
vez mais numerosas na época de crise que hora atravessamos, para as quais a afirmação de uma onipotência de Deus é
o mais grave motivo para não crer.
Não sejamos superficiais ao analisar a posição desses homens; no fundo, eles julgam mais digno do homem e
conseqüentemente mais verdadeiro preferir um céu vazio ao fantasma de um imperador do mundo, potentado, déspota,
�dramaturgo supremo, a manobrar as marionetes da tragicomédia humana. Fixando, petrificando, ou curto-circuitando
liberdades que, alias, supõe-se que haja criado. Admito ateus que são ateus por lhes parecer contraditório o conceito de
Absoluto ou de Transcendente. Creio porem, que a maioria dos ateus são aqueles que abominam uma onipotência que
seria negadora ou destruidora de nossa liberdade. De todas as flechas que visam a fé cristã ou mesmo o deísmo, a que
pretende ferir Deus em sua onipotência é a que mais seguramente se aproxima do alvo.
Ora, se reflito naquilo que creio (e eu os convido a refletir naquilo em que crêem), vejo claramente o seguinte: seria
radicalmente impossível para mim fiar-me em Deus, abandonar-me a Ele em confiança, se nada soubesse sobre a
natureza de seu poder. Ele é todo poderoso, mas poderoso com que poder? Diante de um ser muito poderoso,
recomenda-se prudência. A mais elementar sabedoria manda desconfiar. Antes de tudo, permanecer livre,
salvaguardar a independência. Mais vale o niilismo (do latim, nihil: nada) que a escravidão. O niilismo é a grande
tentação deste século, pois o gosto pelo nada, por amargo que seja, é menos amargo que o da servidão. Entre não ser e
ser escravo do poder de Hitler, escolho deliberadamente não ser.
Bem sei que o niilismo é um sonho, pois o fato é que eu existo. Mas posso ao menos deixar-me escorregar pela rampa
que conduz ao suicídio. Menor loucura é suicidar-se que cair nas mãos de alguém que nos ameaça a liberdade. Não
posso afirmar que creio num Deus todo-poderoso a não ser que tenha a certeza de que se trata de um poder que não
ameaça minha liberdade.
Em outros termos (e aqui peso as palavras, pois se trata do essencial da minha fé), se eu não acreditasse que Deus ó é
poderoso para amar e para ir até o cúmulo do amor, até a morte (morrer pelos que se ama) e o perdão (perdoar os que
nos matam), se eu não acreditasse que o poder de Deus é um Sobrepoder cuja natureza é renunciar por amor à
utilização dos meios do poder para manipular as criaturas, eu imediatamente aceitaria que os homens descessem a
encosta do sonho niilista e teria o cuidado de não acusar meus contemporâneos que se deixam fascinar por esse sonho.
Tudo muda, porem, se a onipotência de Deus é onipotência de amor. Entre onipotência e amor todo-poderoso, há uma
grande diferença; há, literalmente, um abismo. O cristão não diz acreditar que Deus é todo-poderoso, diz acreditar eum
Deus Pai todo-poderoso. No Credo, a afirmação de Deus e de sua onipotência é pronunciada e compreendida num
movimento de confiança e amor, expresso precisamente por essa preposição. Dizer: creio em ti é dizer: sei que teu
poder não é um perigo para a minha liberdade, mas que ele está, bem ao contrário, a serviço de minha liberdade. “Crer
em”, a chave é esta.
O noivo diz à noiva nela crer – trata-se de palavras carregadas de sentido – não afirma: constato tua existência e tuas
qualidades; creio que é isso ou aquilo; creio nas informações que me deram a teu respeito; creio em todas as verdades
que a ti concernem. Ele diz exatamente isto: ponho fé em ti; comprometo-me contigo, doravante serás o centro de
minha vida; descentro-me para que de agora em diante o centro de minha existência não seja eu, mas tu; confio em ti,
por um ato de doação de mim mesmo, o zelo pela minha felicidade; tu és digna de ser amada e eu te amo, quero
depender de ti. Amar é consentir em depender do amor. A velha palavra francesa fiance (fiança), que caiu em desuso,
sobreviveu em confiance (confiança) e em fiancè (noivo). A “confiança” é a “fiança” recíproca na qual amor, fé,
alegria, são um só. ]A Fe é o impulso de todo ser para Deus, o comprometimento do mais profundo de si; se assim não
for, não se trata de fé. Um tal impulso seria delírio e loucura, não houvesse a certeza de que Deus é todo-poderoso
para amar, que o amor, não o poder, é que é a essência de Deus; que o poder é um atributo do amor. Confiar-me sem
reservas a um poder que poderia ser perigoso para minha liberdade seria loucura. Abandonar-me a um ser desprovido
de poder seria igualmente loucura. E a idéia de um amor isento de poder ou energia é igualmente louca, insensata.
Mas, ao contrário. O que se preenche magnificamente de sentido é a acolhida à Energia de amar. Ora, o Espírito Santo
é isso: a energia divina de amar que nos foi dada.
Na verdade, nada existe de mais tradicional e constante nos Padres da Igreja que essa ênfase na preposição “em” e em
sua importância doutrinal, quando seguida de nome próprio. É um solecismo, ou seja, uma incorreção gramatical. Mas
precisamente os escritores cristãos, a começar por João, não temeram ser gramaticalmente incorretos para melhor
expressar o mistério da fé. “A obra de Deus é que creiais naquele que ele enviou” (Jo 6,29).
Crer na onipotência de Deus, crer que Deus é todo-poderoso sem acreditar nele: nada há de igual para falsear a vida
religiosa pela raiz. Nada de igual para desencadear uma mentalidade mágica. A historia das religiões demonstra que a
mentalidade e as práticas mágicas pululavam na história e ainda em nossos dias, mesmo nos meios cristãos, a despeito
dos eufemismos vocabulares eclesiais. Não nos deixemos enganar pelas palavras. O que está em jogo, em relação a
Deus, são freqüentemente o interesse e o medo. Manda o interesse que se busque utilizar a onipotência em nosso
beneficio; e exige o temor que se encontrem meios de preservar do perigo que ela encerra. E isto nada tem a ver com a
fé. É magia. Se fosse possível psicanalisar o conteúdo do espírito de certo numero de cristãos mal-educados, perceberse-ia que eles dizem, baixinho: “O que será que Deus está tramando lá em cima? Que estará preparando para mim?
Ventura ou desventura? Saúde ou doença? Sucesso ou fracasso? Por interesse e por temor, vou orar para que não me
prepare nada de desagradável”.
Até o dia em que surge a tentação de exorcizar radicalmente a ameaça, dizendo simplesmente: não há um Deus todopoderoso. Nesse momento é que o ateísmo irrompe para a consciência adulta como a mais racional das atitudes. E isto
não é de todo falso. É só não esquecer a frase de Pascal: “O ateísmo é sinal de força de espírito, mas só até certo
�grau”. Porque sob o céu transformado em deserto, esvaziado do supremo todo-poderoso, nascem e proliferam outros
poderes, poderes que não se temerá absolutizar alegremente, em todos os níveis da vida individual e coletiva. São
poderes que bem conhecemos: dinheiro, sexo, raça, partido, etc. Nada mais sagrado que um mundo pretensamente
dessacralizado. Tudo nele pode tornar-se poder de dominação, de opressão, de destruição. Toda mutação da
civilização é, de certo modo, uma mutação de idolatria.
Tudo isto – magia supersticiosa ou ateísmo negativo ( a escolha é de vocês) – é inevitável, se o poder de Deus não for
compreendido como poder de amor. O cristão crê na onipotência do amor. A fé é um ato íntimo de sua liberdade, que
o compromete até o mais profundo de si e o põe em movimento rumo a um Amor que só sabe Amar. O cristão não diz
que crê em Deus todo-poderoso: ele diz crer em Deus Pai todo-poderoso. O que proclama, o que canta é o poder de
uma Paternidade. A estrutura do credo é trinitária. Nem eu nem os cristãos cremos que Deus é um eterno Narciso, a
contemplar a si mesmo, a admirar-se, a consumir-se a si mesmo, a absorver-se, a encantar-se. Crer num tal Deus seria
manifesto absurdo. Quando muito, eu poderia pensar que tal Deus narcísico existe. Mesmo assim... crer nele é
impossível.
Se a preposição “em” é essencial ao ato de fé, Aquele em quem eu creio só pode ser o Pai. E se nomeio Pai, isto exige
que, no mesmo impulso de pensamento e de amor, eu nomeie também o Filho e o Espírito. Dizer que Deus é Amor e
dizer que Ele é Trindade é exatamente a mesma coisa.
Progressão da descoberta de um Deus uno e trino
Para contemplar o mistério da Trindade, é preciso refletir como a Igreja o fez historicamente. O cristão não reflete
como um filósofo que, de algum modo, inventa uma sua verdade e a propõe aos outros. O cristão não inventa a
verdade, ele a recebe. Ele reflete, bem entendido, sobre a verdade que acolhe, não sem antes retornar a secular
experiência da Igreja. Ora, a Igreja refletiu a partir da Revelação de Jesus Cristo.
Quem é este homem? Os apóstolos só afirmaram sua fé na divindade de Jesus Cristo ao termo de longa gênese.
Primeiro ouviram Jesus chamar a Deus de Pai, utilizando o termo Abba, que realmente significa paizinho querido e
demonstra abandono filial à própria raiz do ser. Na minha oração, tento visualizar o espanto dos apóstolos ao ouvir
Jesus dizer: Aba, Pai. Viram que Jesus agia segundo uma experiência de Deus e do homem igualmente imediata. Jesus
apareceu a eles como alguém que seria, a um tempo, Deus olhando para o homem e o homem olhando para Deus.
Foram testemunhas dessa intimidade absolutamente única entre um homem e Deus, vivida não apenas diante deles,
mas para eles, porque Jesus os convidou a partilhá-la: “Digam comigo, Abba, Pai” (Mt. 6,9). Intimidade mantida no
mais extremos sofrimento, quando o Pai se cala, parece ausente, enquanto os homens tornam-se excessivamente
cruéis: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito... Perdoa-os”. Ao ressuscitar, Jesus manifesta que Deus está com o
homem. Mas ainda persiste a questão de saber se esse homem é Deus. Deus e Jesus são dois ou um?
Em Pentecostes, os apóstolos são invadidos pelo Espírito de Jesus. Desde então têm consigo Aquele que Jesus trazia
em si, Aquele por quem Jesus era quem era. Ele os conduz aos mesmos atos – os Atos dos apóstolos -, a afrontar os
mesmos riscos, à mesma coragem diante da morte. É mesmo o Espírito de Jesus, que só pode ser o Espírito de Deus,
pois só Deus pode dar seu Espírito. Quanto a nós, não podemos dar o nosso espírito, por se tratar de algo
absolutamente pessoal. Posso dar minha ciência, minha cultura, mas dar o meu espírito é impensável. Assim, só em
Pentecostes, os apóstolos puderam afirmar que Jesus é Deus. Ora, esse homem que é Deus, trata a Deus por “tu”. Deus
fala com Deus. Deus se diz “enviado de Deus”. Deus tem “por alimento cumprir a vontade de Deus”. Há, entoa, uma
dualidade em Deus. E o Espírito de que falou? Ele também é Deus, portanto o terceiro.
Eis como a Igreja, ante este paradoxo de um deus uno e trino, logo compreendeu que, se este não fosse mantido
rigorosamente, anular-se-ia a esperança humana. “Se a Encarnação”, diz Cirilo de Jerusalém, “foi pura imaginação, a
salvação igualmente será pura imaginação”. Se Deus não se fez homem, como poderia o homem ser divinizado? E
como um Deus que não fosse mais que uma pessoa poderia encarnar-se? Tal homem-deus não conheceria outro Deus
senão ele mesmo, não poderia dirigir-se a Outro, seria Adorador de si mesmo. Como, a partir disto, poderia ser
homem em plenitude, se é certo que o homem não pode ser definido senão por sua relação com o Outro?
A Igreja combateu veementemente durante os primeiro séculos de sua historia, para que a profundidade do mistério
não fosse abolida, em proveito de uma compreensão imediata. É a tentação da impaciência, hoje mais atual que nunca:
abolir as coisas que não sejam compreensíveis de relance. Quando se trata da verdade, o Espírito Santo, a despeito da
nossa inclinação para compromissos medíocres, mantém sempre a exigência de compreensão superior, que não se
pode obter senão lenta e trabalhosamente. A Igreja obedeceu à rigorosa lógica que lhe ordenava nunca separar, na
unidade da fé, a tríplice crença na divinização da humanidade, na divindade de Jesus cristo, na Trindade. Porque não
sendo Deus Trindade, a Encarnação é um mito e se a Encarnação é um mito, não se propõe para o home a questão de
ser divinizado. Tudo se interliga.
A Trindade realiza perfeitamente a aspiração ao Amor
�É de amor que se trata. Arriscamo-nos ao erro ao procurar por outras vias que não as do amor a intelecção do mistério
de Deus. É preciso refletir a partir da experiência humana do amor, a partir da decepção que todos, uns mais outros
menos, experimentamos no amor.
Efetivamente, qual a profunda aspiração do amor que vivemos no casamento, no amor fraterno ou filial, na amizade
ou na vida de comunidade? A aspiração ao amor é tornar-me o outro, permanecendo eu mesmo, de sorte que o outro e
eu não estejamos apenas unidos, mas sejamos verdadeiramente um só. A experiência humana do amor é mescla de
alegria e sofrimento. Alegria prodigiosa de dizer àquele ou àquela que se ama: tu e eu não somos dois, somos um.
Sofrimento de ser obrigado a reconhecer que, ao dizer isto, dizemos não apenas o que somos, mas o que gostaríamos
de ser e que não somos. Se amante e amado não fossem dois, não haveria o outro e, no mesmo golpe o amor teria sido
abolido. Como dizem as pessoas sensatas, para amar é preciso ser dois.
Escutem o diálogo de dois personagens de Gabriel Marcel em Le coeur des autres: “Tu e eu, diz Daniel a sua mulher,
não somos dois”, Sua mulher, com fina compreensão, responde: “É justamente o que me atemoriza, às vezes: jamais
pareces considerar-me outra pessoa. Quando não se é mais que um... como explicar isto? Nada mais nos damos.... E é
terrível, porque isto pode tornar-se pretexto para não pensar senão em si”. Se tu e eu não somos mais que um, amamos
a nós mesmos. Mas amar a si mesmo não é amar, é complacência por si, não é dom, não é acolhimento.
O amor quer, a um tempo, a distinção e a unidade. Na condição humana, a profunda aspiração de não estar somente
unido ao outro, mas de ser um com ele, ao mesmo tempo que se permanece o mesmo, é incoercível e irrealizável. Eis
porque ninguém entra sem sofrimento no reino do amor. Em Deus, porem, a aspiração ao amor é eternamente
concretizada: é o próprio mistério da Trindade. O Pai, o Filho e o Espírito Santo distinguem-se realmente um do outro,
de tal sorte que não há confusão possível: o Pai não desaparece no Filho, o Filho não desaparece no Pai, e o Pai e o
Filho não desaparecem no espírito santo. São um, enquanto são perfeitamente distintos.
A Trindade não são três pessoas justapostas e sim três generosidades que se dão uma à outra em plenitude. Cada uma
das Três Pessoas é para si sendo para as outras duas. O Pai não existe como Pai distinto do Filho, a não ser ao dar-se
por inteiro ao Filho: o Filho não existe como Filho distinto do Pai senão sendo inteiramente um impulso de amor para
o Pai. O Pai não existe como pessoa em si e para si mesma constituída; é o ato de gerar o Filho que o constitui pessoa.
Não houvesse o Filho e ele não seria o Pai, isso é evidente. Toda pessoa só é ela mesma fora de si. É posta no ser
quando disposta no outro. No Pai, no Filho e no Espírito Santo, há uma absoluta impossibilidade do mínimo voltar-se
sobre si. Deus não “presta atenção em si”, conforme escreveu Maurice Zundel.
Três pessoas num só Deus
Por que três pessoas (e não quatro ou dez, como indagava o filosofo Kant)? Podem-se propor duas abordagens ao
mistério do Espírito Santo. A primeira a partir da exigência de reciprocidade, essencial à perfeição do amor. No amor
humano, só percebemos essa reciprocidade por meio de sinais. Em si, ela escapa aos que se amam. “Amo a ti, minha
esposa e vejo que me amas pelas palavras que me dizes, pelos gestos que fazes e pelo teu comportamento para
comigo. Mas não vejo propriamente teu amor. De onde esse sofrimento, essa tentação à dúvida, nas horas em que
essas palavras, testos e comportamento se afiguram menos ardentes, menos espontâneos. Se eu visse o amor, estas
flutuações não existiriam, mas não vejo mais que sinais. Por isso existe em mim este violento desejo de conhecer teu
amor de outro modo, não por sinais; a presença deles me encanta e faz toda a minha felicidade, mas sua diminuição
ofende-me e a sua ausência me desespera.” Agostinho escreveu sobre isto uma daquelas frase memoráveis, típicas de
seu
gênio:
“Ele
a
vê,
ela
o
vê,
ninguém
vê
o
amor”.
Na Trindade, onde a reciprocidade é perfeita, o próprio Amor é pessoa, o Espírito Santo: Amor do Pai pelo Filho,
Amor do Filho pelo Pai. Beijo comum, se quiserem. A reciprocidade do amor feito pessoa, no sentido em que
poderíamos dizer: Mozart é a música feito homem> O amor é vivido em plenitude: há o Amante, o Amado e o Amor.
O Amante é Amado, o Amado é Amante e o Amor é o dinamismo do impulso pelo qual os dois são um, enquanto
permanecem
distintos.
Pode-se tentar outra abordagem do mistério da Terceira pessoa, a partir da exigência de pureza, também ela essencial
à perfeição do amor. Entendo por pureza a exclusão de todo egoísmo, de todo ter. Em Deus, não há vestígio da
propriedade de si, pois o amor não pode ser proprietário. Não houvesse uma terceira pessoa, o Pai encontraria no Filho
e o Filho no Pai uma possessão de si. Um seria para o outro uma projeção de si, uma extensão de si. Talvez, como a
um pai de família que realmente tivesse se sacrificado pelo filho e lhe tivesse dado tudo; ao contemplar o filho, torna a
encontrar-se: sou aquele que tudo deu ao meu filho. O Pai se reencontraria no Filho, e o Filho no Pai. Mas se o amor
recíproco do Pai e do Filho se abre num terceiro, há uma absoluta exclusão de toda forma de ter, de todo olhar voltado
para is. É a absoluta pureza do amor. A Pobreza de Deus.
�Viver é amar
Amar é ser e viver para o outro e para outro, apara os outros e pelos outros, nunca por si e para si. Cada uma das três
pessoas divinas é ela mesma sendo por e para as duas outras. Para o outro: o dom; pelo outro, o acolhimento. Acolher
é dar, é amar. Deus é um Poder infinito, ou melhor, sem limite, de renúncia a ser por si e para si. Onde se diz “poder”
entendam “energia”, que talvez traduza melhor, de modo menos ambíguo, a palavra grega dynamis. Também se pode
utilizar “dinamismo”. Creio em um Deus cuja energia de amor, cujo dinamismo de amor é infinito. Creio numa
Energia ilimitada de renúncia a ser para si e por si. Creio na Energia eterna de uma Vontade sem limite de ser para o
outro e pelo outro. Creio que Deus é uma impotência absoluta de voltar-se sobre si mesma, de redobrar-se sobre si.
O que assim nos é revelado é que a relação de amor é a forma original do ser. Ou, o que vem a dar no mesmo, que o
mais profundo do ser é amor ou comunhão. O mistério trinitário ilumina todas as veredas da existência humana.
Por sabermos quem é deus, embora isto seja bem misterioso, sabemos o que devemos ser. Certamente, como dizia o
catecismo do ante-guerra, Deus é um infinito e puro espírito, mas quando Paulo me diz que é preciso “imitar a Deus”
(Ef. 5,1) e que toda minha vida consiste em assemelhar-me a Deus, não vejo como eu poderia me assemelhar a um
espírito puro e infinito. Nesta definição, trata-se de atributos de Deus que eu jamais poderia imitar. Ao passo que, se o
essencial da Revelação cristã é que Deus é amor, compreendo que realmente devo esforçar-me para amar e que toda a
vida deve resumir-se em amar.
Que é uma pessoa humana? É um ser que se realiza ao dar-se e que, não buscando a si mesmo, encontra-se num outro.
A vida nos foi concedida para que tendamos uns para os outros, a fim de dar-nos aos demais, como fazem entre si as
três pessoas divinas. Devemos tender para os outros, não para conquistá-los, possuí-los e anexá-los, mas para
enriquecê-los e para que cresçam. Nas palavras de Agostinho: “Não devemos amar os homens como os gastrônomos
amam os tordos, pois querer, assimilar os Romeus não é amá-los”. Não devemos amá-los por nós, mas por eles.
Para amar como as três pessoas divinas se amam, precisamos ser nós mesmos, o mais profunda e conscientemente
possível. E querer que os outros sejam, o mais profunda e conscientemente, possível. E não devemos querer apenas
em pensamento, desejo, mas agir para que de fato venham a sê-lo. Quero que sejas tu mesmo e consagro-me inteiro
para que sejas plenamente tu mesmo. O que vale para os indivíduos vale para as nações, raças e civilizações.
A verdadeira unidade não é unicidade, mas riqueza de um pluralismo soldado no amor. Uma sinfonia é feita de uma
pluralidade de notas que só têm valor na relação que mantêm umas com as outras. Mas cada nota deve permanecer ela
mesma e querer que as outras sejam elas mesmas, porque, se uma desaparecesse, o acorde ficaria mais pobre. O ideal
da orquestra não é ter apenas violinos. O violino deve querer que o violoncelo seja plenamente violoncelo, que a flauta
seja plenamente flauta e que a diferenciação, a riqueza e a diversidade de instrumentos constituam uma orquestra
verdadeiramente uma.
O amor trinitário obriga-nos a excluir a vontade de poder e o desejo de anexação, mas igualmente a “vontade de
franqueza” e a covardia dos seres dependentes.
Quer se trate de nossa vida pessoal mais íntima ou do exercício de nossa liberdade aos diferentes níveis da família, da
profissão, do Estado, ou da sociedade internacional, tudo se resume em não se iludir sobre o amor. Para ensinar aos
homens o que significa amar, quais são as condições, conseqüências e implicações do amor, quais podem ser,
igualmente, suas falsificações e ilusões, a Igreja interroga ao longo dos séculos o Espírito Santo que lhe foi concedido.
Só ele conhece o segredo de Deus. Ele nos concede a Energia de viver como Deus vive, de amar como Deus ama. Tal
é a mais elevada forma de existência, à qual acreditamos ser possível ao homem, ascender, no caso de ele, pelo menos,
a acolher como um dom (pois em si ela é inacessível) e se ele não recusar (como gostava de dizer Maurice Blondel), o
“pedágio”, que é o dom mortificante de si.
DEUS CRIA O HOMEM CRIADOR
Talvez o mistério da Criação seja, dentre todos os mistérios cristãos, o mais difícil, o mais misterioso dos mistérios.
Ainda assim, é preciso tentar dizer algo sobre ele, se é verdade que sobre o mistério da Criação o ateísmo se
desenvolve. No fundo, o que os ateus negam não é tanto a transcendência enquanto tal; é um Deus criador, porque –
dizem eles – se Deus nos criou, não é possível que sejamos verdadeiramente homens livres. Seriamos, quando muito,
objetos nas mãos do Criador, “bonecos nas mãos dos deuses”, nas palavras de um dos personagens de Platão. O que é,
evidentemente, contrário à dignidade do homem. Estamos diante de um assunto fundamental. E conquanto não
cheguemos a dizer coisas muito positivas, é importante eliminar certo numero de concepções que só podem repetir o
descrente ou o ateu.
�Observações preliminares
Ao abordar um tal assunto, é preciso, antes de tudo, renunciar a toda fantasia. Sei que é difícil, dado sermos bem mais
propensos a fantasiar, declaramos que não as compreendemos. Deve-se fazer sério esforço para mortificar a fantasia.
Se não podemos fantasiar a Deus, não podemos fantasiar sua ação criadora, o ato pelo qual cria o mundo.
Também é preciso mortificar nossa curiosidade, mesmo intelectual, pois a Revelação não se refere a verdades
destinadas a satisfazer a curiosidade dos homens sobre Deus. O cristianismo não é uma filosofia, a Revelação não se
se situa no plano da explicação das coisas; ela esclarece o nosso caminho para Deus, o que é completamente diferente.
A Revelação nos diz algo sobre Deus e algo sobre o homem, na medida em que isto é necessário para a verdade de
nossa relação viva, real, com Deus.
Assim, é absolutamente indispensável compreender bem a diferença entre explicação e significação. Pois a fé jamais
se situa no plano da explicação cientifica e filosófica, e sempre no plano da significação, do sentido de nossa
existência. Esta distinção é absolutamente essencial e o erro de muitos é pedir à religião dados científicos. Não é a
religião que nos diz que a água gela a 0 grau ou que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a 180 graus. Imagino
um homem, verdadeiro gênio, versado em todas as disciplinas, que tem a explicação do mundo na medida em que um
ser humano pode elaborá-la. Se sua mulher o trair, esse sábio será capaz de se suicidar, pois para ele a vida perdeu a
significação, não tem mais sentido; ele não tem mais razão de viver. O sentido da vida não era a explicação encontrada
na ciência, era o amor da mulher. O cristianismo não foi feito para explicar o mundo.
A EXPERIÊNCIA DE UM AMOR LIBERTADOR, DE UM
DINAMISMO DE LIBERTAÇÃO
O que a Bíblia revela em primeiro lugar não é o Deus criador e sim o Deus libertador. O que está no núcleo da Bíblia é
o Êxodo, o mistério da libertação de Israel. E o que está no âmago de nossa fé cristã é o acesso que temos à própria
liberdade de Deus, ao que chamamos de nossa divinização, com a frase chave que repito: estamos na terra para vir a
ser por participação o que Deus é por natureza. Na Bíblia não ouvimos Deus dizer ao povo hebreu: “Fui eu quem te
criou”, mas: “Fui eu quem te libertou, fui eu quem te fez sair da escravidão da casa do Egito”. Os judeus começaram
a se questionar sobre a criação bem tardiamente.
É preciso ler a Bíblia, não do começo do livro, mas do início da experiência do povo de Israel que deu nascimento ao
livro. Disse e insisto: a experiência, o vivido, o concreto, o real, por oposição ao nocional, ao conceitual, ao abstrato.
Fazer a experiência de uma pêra ou maçã é comê-las, não é descrevê-las. Pode-se tentar descrever com palavras o
sabor de uma fruta, mas ao final se dirá: “Coma-a”. Pode-se tentar descrever o perfume da rosa, mas ao final
comprova-se que as narinas são o instrumento mais eficaz para o conhecimento que o vocabulário. Pode-se igualmente
tentar descrever os sentimentos do amor, há romancistas para isso. Mas para quem jamais teve ao menos uma
experiência de amor, toda descrição será letra quase morta, como se escrita em chinês.
Assim é, por uma razão bem mais forte, quando se trata da criação do homem e do mundo por Deus. De início, não se
tem a experiência da origem. Como se expressa o Pe. Ganne, com o senso das palavras elementares que o caracteriza
(pois ele tem a firme convicção de que aquilo que o homem vê menos claramente é o que há de mais elementar – e ele
tem perfeita razão), a criança no seio da mãe, não indaga se é o herdeiro de Vercingetóriz (General e chefe gaulês,
nascido em Arvernes. Foi proclamado, em 52, chefe de uma coalizão de povos gauleses contra César. Defendeu a
Gergóvia, mas foi aprisionado por César na Alésia. Uma armada gaulesa de resgate, não conseguindo livrá-lo,
entregou-o ao vencedor. Levado a Roma, foi executado ao cabo de seis anos de cativeiro, depois de ter assistido ao
triunfo de Cesar) e dos gauleses. O que busca é livrar-se das exigências do estomago, e a mãe lhe aparece não como
aquela que o pôs no mundo, mas como aquela que o liberta do sofrimento da fome. Pouco a pouco, à medida que se
afasta do seio materno, a criança se torna adulta e a se interrogar sobre a própria origem e fim; mas isso não é
imediato, não é primeiro.
Assim, os israelitas não falaram de início de Adão. Uma consciência concreta, real, viva, jamais parte das origens;
remonta a elas, a partir do que vive concretamente no presente. Estas observações banais expressam uma verdade
muito simples, mas não raro esquecida, e que, de um só golpe, falseia radicalmente toda a catequese: “A fé de Israel
não segue da doutrina para a vida, mas da vida para a doutrina e a experiência inicial de Israel, chamada de
experiência fundadora, é a libertação da escravidão do Egito”. Lembro que essa libertação – o Êxodo -, que se realizou
no Século III a.C., é anterior, no mínimo cinco séculos, ao segundo relato da criação (Gn. 2 e 3), que é o mais antigo e
provavelmente data do século VIII; é igualmente anterior ao primeiro relato (Gn. 1), o mais recente data do século VI
(para o estudo mais pormenorizado dos primeiros capítulos do livro do Genesis, o Pe. Varillon refere-se às notas do
�curso do Pe. P. Beauchamp; e para a noção de criação na Bíblia, remete aos livros de Cl. Tresmontant, editados pela
Seuil, bem como ao já citado vocabulário de teologia bíblica).
Ponhamo-nos, se assim posso expressar-me, na pele dos israelitas do século VI e tentemos viver o que viviam.
Tinham sido deportados para a Babilônia, desde o início do século. Ali havia homens que tinham nascido no exílio,
longe da terra de seus antepassados e que se perguntavam se tudo o que seus pais lhes contaram era verdade. Sabem
que em Jerusalém não há mais templo, nem festas por conseqüência. Politicamente, o povo judeu estava riscado da
historia. Não se sabe quanto tempo durará o exílio. Não há indicio, não há sinal de libertação. Como não crer que Deus
abandonou seu povo? A Aliança com Moisés, que era o núcleo da religião judaica, não está destruída? Para nós é fácil
imaginar as zombarias dos pagãos, tanto mais que a religião babilônica está florescendo: há festas, brilhantes
procissões; adoram-se ídolos, difunde-se a astrologia. Como não se sentir tentado, seduzido? Por outro lado, há
certamente aventuras sentimentais entre judeus e babilônias, entre judias e babilônios.
Que faz Iahweh? Aparentemente nada. Na realidade, fala por meio de seus profetas (como o diz nosso credo). E os
profetas que dizem? Dizem que Deus não abandonou seu povo. O deus dos judeus é fiel, sua Palavra é um rochedo. O
deserto reflorescerá. Jerusalém ressurgirá das ruínas. Deus não é uma Energia libertadora? Não o esqueçam os judeus!
Eram escravos no Egito por volta de 1250 e Deus os libertou. Já se passaram sete séculos, mas os povos têm memória
coletiva. Assim, para recobrar coragem e lutar contra o desânimo e o ceticismo, para fazer face às zombarias dos
babilônios, para segurar aqueles que já escorregam pela rampa da apostasia, os judeus voltam a narrar os feitos
prodigiosos do Êxodo. Deus pode voltar a faz\er o que já fez. Haverá novo Êxodo, renovação da Aliança.
Sugiro que vocês comecem a ler a Bíblia pelo Segundo Isaias, isto é, pelo autor dos capítulos 40 a 56 do livro de
Isaias, profeta do século VI. Verão como a “vivência” religiosa de Israel é uma relação com um Deus que não é o
Autor da Natureza, a Causa primeira do mundo, mas um Amor libertador.
O Êxodo, porem, não é o início. Que acontecera antes de Moises? Dizíamos que uma consciência concreta nunca parte
das origens, mas a elas remonta. A criancinha não começa a falar de Vercingetórix, mas, quando crescer, indagará
sobre as origens da França, que é sua pátria.
Bem, por volta de 2000 a.C., Abraão teve uma experiência de libertação. À luz do Êxodo, os judeus interpretam a
migração do clã de Abraão como um sinal da presença de Deus. Já existia uma aliança de Deus com Abraão. Depois
de ter lido o segundo Isaias e o livro do Êxodo, leia-se no livro de Genesis a historia de Abraão. E antes de Abraão?
Há a pré-história do judeus. Deter-se-ão nesse limiar? Não, pois crêem que seu Deus é o único Deus verdadeiro, não é
só o deus dos judeus, é o Deus de toda a humanidade. O Deus que fez Aliança com Abraão e Moises, Aliança com
toda a humanidade. É o que afirma o ciclo de Noé, onde os autores utilizam velhos mitos para expressar a
universalidade da Aliança. E antes de Noé? Está Adão, o homem, a humanidade inteira (tal é o sentido da palavra
Adão).
Esta introdução é da maior importância, se não se quiser cometer graves equívocos sobre os primeiros capítulos da
Bíblia: o amor libertador (que o Amor é libertador é evidente, senão não seria Amor; um amor que escravizasse seria
uma contradição em termos) ou o Poder de libertação que está na origem da historia dos hebreus está igualmente na
fonte de tudo o que este. O Deus do qual Israel experimentou o amor libertador ao longo de toda sua historia é o Deus
criador do mundo.
Não há perigo de Deus aparecer como uma Potência de dominação ou como um Fabricador. Na origem de tudo, situase o mesmo Amor de que Israel teve experiência ao longo de sua história. Vocês encontrarão uma confirmação do que
digo lendo com atenção o seguinte: “Assim diz Iahweh, o que tudo fiz, e sozinho estendi os céus” (Is. 42,24). Tão
nítido quanto possível: aquele que libertou Israel é aquele que tudo fez, o Criado é o Libertador. Explode a ligação
entre criação e libertação. Há muitas outras passagens semelhantes.
Deve-se, alias, estar convicto de que não se pode apreender o início de nada. Tentem apreender o momento em que
adormecem, qualquer em que ao podem dizer nem “eu durmo” nem “não durmo”. Temerão, nesse caso, jamais
adormecer. O mesmo vale para o despertar. Em que momento poderão dizer:”Estou despertando? Será esse, com
certeza, o momento em que já terão despertado. Quem pode falar de seu próprio nascimento, de sorte que, sem
testemunha viva que o relate, possa dizer: eis como se passou? Seu nascimento foi decerto um acontecimento, não
porém um acontecimento para a sua consciência. Apreender o começo do mundo é absolutamente impossível, pois é
impensável que haja subsistido qualquer testemunho de pessoa consciente de que se tratava do absol8uto começo da
humanidade. Jamais se escreverá o primeiro capítulo da historia da humanidade, num plano estritamente histórico. A
única apreensão possível é a reflexão baseada numa experiência atual.
Sublinhem os, a exemplo do Pe. Ganne: “É a Aliança que dá sentido à criação: a fé no criador é o reconhecimento de
um Poder de libertação que remonta à origens e que é co-extensivo ao universo inteiro”.
EVITAR TRÊS TERMOS PERIGOSOS
�É importante eliminar de nosso espírito, com todo o vigor de que somos capazes, certo numero de falaciosas e
temíveis fantasias cristalizadas em certo numero de palavras que empregamos superficialmente e que devemos criticar
com energia: emanação, fabricação, começo. Proponho a substituição:
•
•
•
Emanação por distinção ou alteridade (existência de um outro);
Fabricação por gênese;
Começo por dependência radical (do homem com relação a Deus).
Emanação: às vezes representamos a criação como uma emanação, como se o mundo emanasse de Deus como um rio
da fonte, ou domo o raio de um foco de luz. Esta idéia não é judeu-cristã: o mundo não é uma emanação de Deus. Se
fosse, dever-se-ia dizer que ele é necessário. Efetivamente, se há fonte, há um jorro que emana necessariamente; se há
um foco de luz, há raios de luz. Esta questão é importante, pois em outras religiões – as orientais, por exemplo – o
mundo é efetivamente entendido como emanação necessária de Deus. Se o mundo emana de Deus como o rio emana
da fonte, não há distinção radical entre o homem e Deus: o rio não é radicalmente outro com relação à fonte nem o
raio radicalmente outro com relação ao foco de luz. Não existe, alteridade e sem alteridade não há possibilidade de
amor: não se pode amar senão a outro, ninguém ama as próprias profundezas. Na Bíblia em que, do começo ao fim,
trata-se de revelar um Deus que é todo amor, não deveria ser assim.
Afirmam-nos: Deus existe, Deus é pessoal, Deus quer que o mundo seja e o mundo é uma realidade distinta de Deus.
Deus cria o mundo como outro em relação a ele. Eis porque eu vos disse: risquemos emanação e substituamos essa
palavra por distinção ou alteridade. Devemos desconfiar de imagens que se provam perigosas; ou que nos digam que o
mundo existe em relação a Deus como o rio em relação à fonte. Admito que há um modo de compreender a Deus
como fonte que nada tem de falso. Mas se passarmos dessa idéia à de uma emanação necessária, nos afastaremos do
fio da meada da Revelação cristã.
Fabricação: criação não é fabricação. Deus nada fabrica, visto que a fabricação vai dar num objeto já pronto. Deus é
todo-poderoso, decerto, mas é o amor que é todo-poderoso. Não se trata de qualquer poder. Deus só pode o que o
amor pode. Não se deve dizer: Deus tudo pode; isto é absolutamente falso. Deus não pode destruir, porque o amor não
pode destruir. É por isso que eu creio na vida eterna, aquele que me criou não me destruirá. Deus não pode fabricar, o
amor não fabrica. O amor gera, o que é bem diferente! O amor só pode criar criadores. Somos criaturas mas criaturas
criadoras.
O universo material é o condicionamento de nossa liberdade, aquilo a partir do qual devemos criar a nós mesmo.
Porque não somos Deus, só Ele é incondicionado; nós somos masculino e, conseqüentemente, meu projeto de vida não
pode ser um projeto feminino. Este condicionamento vai longe, envolve todas as galáxias, mas só tem sentido para a
liberdade do homem. Sendo amor, Deus jamais criar criaturas que não fossem criadoras. É preciso criticar certas
expressões que encontramos na Bíblia (o que é norma, pois a Bíblia é uma pedagogia progressiva). Assim, no segundo
relato da criação, o mais antigo, Deus é comparado a um oleiro que modela a argila. No primeiro relato, o mais
recente, abandona-se a imagem do oleiro; o verbo “modelar” é suprimido e substituído por um verbo novo que
significa propriamente “criar” e é fruto de uma aprofundada reflexão do povo judeu.
Deus não fabrica o menor elemento do mundo, o átomo mais insignificante. Não se fabricam liberdades, pois é
específico da liberdade não ser fabricada, pois a liberdade não é objeto. A liberdade só é liberdade quando cria a si
mesma. À media que se imagina um deus fabricante, os ateus estarão muito à vontade para protestar em nome da
dignidade humana. Seria contrário à nossa dignidade ter sido fabricados por um oleiro eterno. Eliminemos, portanto,
essa idéia tão absurda quanto perigosa de um mundo que seria fabricado por Deus. Não somos fabricação divina
“como o artesão fabrica uma espátula”, segundo a expressão de Jean Paul Sartre.
Começo: às vezes se imagina a criação como uma espécie de piparote inicial pelo qual Deus pôs em movimento todo
um processo de desenvolvimento. Victor Hugo, num dia de pouca inspiração, comparou a criação a um magistral
pontapé numa bola, a enorme bola do mundo, depois do qual, dado o divino vigor de tal pontapé, vigor propriamente
infinito, o mundo continuou a rodar sozinho e a ser conservado em existência e movimento. Isso é absurdo!
O ato criador não é um começo cronológico e sim ontológico, uma “dependência radical no ser”, na expressão de
Tomás de Aquino, Ao dizer: Deus cria o mundo não estamos dizendo que ele o criou. Não devemos jamais empregar
o verbo no passado. É agora que Deus cria. Não devemos imaginar a criação como um ato do passado. Deus cria o
mundo hoje; tanto hoje como no começo. O ato criador é hoje o mesmo que era na origem do mundo, ele é coextensivo a toda a historia do mundo. Se criação fosse fabricação, não poderíamos dizer isto. Para um objeto
fabricado, como esta mesa na qual apoio os cotovelos, não há o ato atual do marceneiro, não é agora que o fabricante
fabrica esta mesa. Ao passo que é agora que Deus cria a criação.
Pensem: criar para Deus, é ato simples – e tomem esta palavra no mais estrito, no mais etimológico dos sentidos.
Simples é aquilo que não é composto. Ato simples é ato que não pode ser dividido em operações sucessivas. Numa
fabricação, há operações sucessivas (perdoem-me por mencionar coisas tão elementares, é que creio que vale a pena
�ser exato). Pensem na fabricação de uma roupa: primeiro há o corte do tecido, depois a costura, os ornamentos, os
bordados, etc. Quando se trata da criação, o ato é simples, sem composição, sem sucessão, impossível dividi-lo. Tudo
o que não é Deus é, de algum modo, composto.
Deus é absolutamente simples. Dizer que o ato criador é um ato simples é dizer que a energia divina que cria está
simultaneamente presente no todo de seu ato, o que vem a significar que, para Deus, o começo coincide com o fim.
Uma pessoa de 95 anos é atualmente criada por Deus de modo igual ao que era quando se encontrava no ventre da
mãe. Não fosse assim, seria necessário dizer que o ato criador é uma espécie de processo operatório, como o ato da
fabricação, de uma costureira ou de um metalúrgico. Estaríamos em pleno infantilismo!
POSSÍVEIS ABORDAGENS DO MISTÉRIO DA CRIAÇÃO
A Criação não depende do domínio da ciência
Este é um prelúdio necessário: a doutrina cristã da criação não responde às perguntas feitas pela ciência. Prevejo que
vocês me farão perguntas e que serei obrigado a responder: “Quanto a isso, interroguem os cientistas, não os
teólogos”. O que se passa no universo físico compete ao físico, e o físico, enquanto físico (insisto nisto), não precisa
recorrer à hipótese de um criador. Tampouco o necessita o químico enquanto químico ou o biólogo enquanto biólogo.
Recordo-me de que, alguns meses após os acontecimentos de maio de 1968, haviam organizado em Lião uma
conferencia para os alunos do último ano do segundo grau de toda a cidade. Eram trezentos ou quatrocentos jovens,
rapazes e moças de 17, ou 18 anos. O assunto era a criação. Haviam convidado dois conferencistas , um físico,
professor da Faculdade de Ciências e eu. O professor de física falou primeiro. Explicou que, enquanto físico, não
necessitava absolutamente da hipótese de um Deus Criador, que no limite essa hipótese era até constrangedora, para
que pudesse exercer seu oficio de físico. Alguns adultos que estavam na sala saíram horrorizados, dizendo: “Imaginem
o que dizer agora aos nossos alunos: não há necessidade de um Deus Criador!” Quando o professor terminou, alguns
alunos o interrogaram: “Mas o senhor crê em quê?” E ele respondeu: “Ah, creio num Deus criador e recito o Credo
cristão”. Os alunos não conseguiam entender. Em seguida, deram-me a palavra e eu disse logo de saída: “Estou
completamente de acordo com tudo o que acaba de ser dito”. A essas alturas, o escândalo atingiu o máximo!
A ciência interroga o modo pelo qual se produzem os fenômenos do nosso mundo: o raio, o vento, os tremores de
terra, a evolução biológica das espécies, etc. A ciência não precisa se perguntar pela origem primeira dos seres, nem
tampouco sobre o sentido último. Eu disse origem, não começo. Percebem a diferença: Uma pessoa de 80 anos pode
se perguntar qual a sua origem, agora que tem 80 anos. É coisa muito diversa de seu começo, que teve lugar oitenta
anos atrás. Ela, porem, pode propor a questão de sua origem, do fundamento da sua existência, como o poderia ter
feito quarenta ou cinqüenta anos antes.
A ciência visa às transformações que se realizaram no seio de um universo dado. Isso não significa que nenhuma
questão de começo primeiro, nem de fim último se proponha à ciência física. Por exemplo: que acontecerá no fim?
Haverá fim? Que é a degradação da energia? Mas tais questões cientificas não são pertinentes ao Credo cristão, são
problemas de termodinâmica. Não é, portanto, na ciência que devemos buscar explicações para o mistério da criação.
A criação artística
Segundo a minha experiência, há, me parece, duas abordagens possíveis do mistério da criação. Falaremos da criação
artística, mas insistiremos no amor (o amor que, por si, é criador) pois nem todos somos gênios criadores, pintores,
poetas, músicos, mas temos, todos nós, de um ou de outro modo, a experiência do amor.
Pensem num musico ou pintor de quem gostam – Rembrandt, Beethoven, Mozart, Chopin. A criação artística não é
produção, há nela uma invenção que é gratuita. Já pensaram na questão de saber como é possível que determinada
frase musical de Mozart tenha fluido de um cérebro humano? Isto é prodigioso, e fica-se perplexo. E não se trata de
fabricação, e sim de invenção, a marca própria do gênio.
Ainda assim, existe na obra de arte algo de fabricação e nem pode ser de outro modo. Realmente é necessário que uma
idéia gratuita, o tema da fuga, o leitmotiv, se expresse por meio de notas musicais, palavras, mármore, tintas. É
necessário que o artista – que é propriamente criador, inventor no sentido latino da palavra – dê corpo à sua idéia,
transformando a matéria. A Vênus de Milo foi primeiramente um bloco de mármore e esse bloco foi talhado. Há pois,
um elemento de produção. Por meio de um processo contínuo, o escultor talha a pedra, o escritor luta com o material
lingüístico e, por esse lado, a criação artística aproxima-se da fabricação. Mas na origem, há uma criação propriamente
�dita, uma descontinuidade entre a matéria preexistente (mármore, tintas, pedra, sons, palavras) e a obra de arte
propriamente dita.
Se nos orientamos para a imagem da criação artística, sem esquecer que, na obra de arte, há uma parte de fabricação,
estaremos corretamente orientados para o ato criador de Deus.
O amor recriador
A experiência do amor é ainda mais apropriada. Pessoalmente, impressiona-me a possibilidade que temos, nós os
homens, de recriar. Recriar um gangster, um vagabundo, um jovem desviado, um pobre-diabo cuja existência não
chega a ser existência porque ele jamais foi amado e, porque não o foi, vive uma vida semelhante a nada.
Impõe-se a pergunta: tais seres vivem de fato? Seguramente sim, no sentido de comerem, beberem, respirarem. Mas a
isto não chamamos de vida em sentido pleno, pois esses seres assemelham-se a nada e do nada se aproximam, por
assim dizer, à força de degradação progressiva. E eu tenho o incrível poder de recriar um desses seres! Simplesmente
olhando-o com amor, dando-lhe atenção, interessando-me por ele. A partir do momento em que ele sentir um olhar de
amor pousar sobre si, voltará para a vida, desviando os passos da rota do nada para vir a ser ou tornar a vir a ser
autenticamente homem.
Faz alguns anos, padres e leigos da paróquia São Severino, em Paris, organizaram refeições para jovens de rua.
Disseram-me os padres: era como se assistíssemos a uma reviravolta. Eram rapazes que marchavam para o nada.
Quando sentiram que alguém se interessava por eles, que sobre eles pousava um olhar de amor ou de amizade,
voltaram-se para a vida, recobraram a confiança em si e recomeçaram a viver na plena acepção do termo e não
simplesmente a respirar, beber e comer.
O MISTÉRIO DO ATO CRIADOR
A partir disto tento compreender o mistério do ato criador. O Amor – Deus é todo Amor, como “é todo” implacável
em que tão freqüentemente insisto – “diferencia tanto quanto unifica” (Teilhard de Chardin). Ele começa por
diferenciar: o amor quer que o outro seja e que seja verdadeiramente outro. Não um reflexo de si, não um satélite, mas
uma outra liberdade. Deus quer – é seu próprio ser, seu ato simples e eterno – que o outro seja, que outros sejam. E
este querer é eficaz como todo querer divino.
Aquele que é luz quer que jorre luz dos olhos do ser amado. Se eu te amo não posso querer que tenhas os olhos baços.
Se eu te amo, quero que haja luz em teus olhos e quero estar junto de ti como contágio de luz, contágio de existência
luminosa. Olhar de amor ou amizade é olhar ambicioso pelo outro. Eu te amo, quer dizer, tenho ambições para ti,
acima de tudo, não te quero dominar e sufocar-te a liberdade, quero que despertes. Quero que a minha liberdade
comungue com a tua e isso não é possível se a tua não existir.
O poder divino não é poder que domina, é poder que desperta. Deus não cria objetos, recordem-se disso! Se Deus nos
dominasse, seríamos para ele objetos. Um ser dominado só pode ser um objeto, e um objeto é fabricação. Um amor
que nos dominasse seria uma contradição em termos. Perdoem-me se insisto, mas a experiência demonstra que há
talvez uns 80% de pessoas que se dizem cristãs e que representam a Deus como aquele que nos domina. Não se podem
dominar liberdades, isso nada significaria, não se podem dominar senão objetos, coisas. Deus suscita sujeitos livres.
Não nos pode amar se não vir em nossos olhos à luz da liberdade.
Amor é suscitar, contagiar existência
Deus cria pelo influxo um despertar contagiante. E uma vez que é preciso partir de nossa experiência para refletir –
pois de outro modo seria um debater-se no abstrato -, eu recorreria à experiência e perguntaria: algum dia acolheram o
contato de alguém? Posso dar um testemunho pessoal. Em minha vida, tive a grande sorte, que infelizmente não cabe
a todos, de ter um mestre, um verdadeiro mestre, junto ao qual vivi durante mais de vinte anos, um homem que era
para mim o pai, o mestre, o amigo, os três num só. Eu acolhia o contato desse homem; posso dizer que ele me criou.
Nunca me deu uma ordem. Creio mesmo que jamais me deu um conselho positivo, formal... talvez, uma ou outra vez,
com a maior discrição.
Que fazia este homem junto a mim? Ele existia; simplesmente isso. Mas a sua existência era contagiante, no sentido
em que meu desejo contínuo era o de me assemelhar a ele, viver como ele, com a mesma nobreza de alma, a mesma
grandeza, a mesma cultura. A existência desse homem era contagiante, no sentido de que ao seu lado não era possível
permanecer sistematicamente medíocre. Se eu quisesse ser medíocre e me diminuir, seria necessário escapar ao seu
contágio, que me despertava e suscitava crescimento. Mesmo quem não teve um mest4e como este na vida, decerto
�experimentou momentos em que disse a si mesmo: se permaneço em relação com este homem, ou esta mulher, não
poderei ser medíocre. Ser medíocre é ser seminada,; a mediocridade é um seminada.
O ato criador de Deus é esta vida pura e simples. No fundo, Deus nada faz e creio que nos devemos abster de dizer:
Deus faz isto, Deus faz aquilo, pois todo mundo entenderá que Deus fabrica. Ora, criar não é fazer algo. Deus é
absolutamente simples. Esta simplicidade é algo terrível. Perguntem aos místicos, que fizeram a experiência. Não há
em Deus uma vida e uma ação, como se isto constituísse duas coisas. Seu ato é idêntico ao seu ser. Ele é.
Simplesmente. Deus cria existindo, nada mais. Mas essa existência é contagiante, pois é amor, e o amor é suscitar a
vida.
Ato pelo qual Deus faz com que os seres se façam a si próprios
Tentemos ir mais longe para nos aproximar do essencial. A criação é o ato pelo qual Deus faz com que os seres se
façam a si próprios e por si próprios. Estamos sempre pensando que somos manipulados. Nesse caso, não poderíamos
dizer que Deus é Amor, pois se Ele é Amor, quer que a nós mesmos e por nós mesmos nos façamos. Está na Bíblia
com todas as letras: “Ele nos entrega às mãos de nosso próprio conselho” (Sr. 16,14).
Não conseguem imaginar isto? Nem eu. Recordo-me todavia, de um gruo de jovens casais, com filhos de 10 a 12
anos. Eu tentava explicar-lhes isto e eles estavam cada vez mais céticos. De repente, um pai de família, do fundo da
sala, me interpelou: “Já entendi! O ideal seria os filhos se fazerem por si mesmos, ou em outras palavras, que a
educação não comportasse castigos, advertências e constrangimentos. Um verdadeiro educador deve sofrer quando
bate, mesmo quando isto pareça inevitável”. Esse pai de família começava a compreender que a criação é o ato que
faz com que os outros se criem a si mesmos.
Recordo-me de haver assistido a uma discussão bastante animada entre um padre jovem, muito zeloso, e um
comunista militante. A discussão poderia durar indefinidamente. Dizia o padre: “Deus criou o mundo (usando o verbo
no passado)”. Eu tremia no meu canto, pensando: “Quando ele vai deixar de falar no passado?” E o comunista
retorquia: “Não, o homem cria a si mesmo”. Que diriam vocês numa discussão dessas? Creio que alguns tomariam o
partido do padre contra o comunista e que outros tomariam o do comunista contra o padre. Após um momento,
intervim, dizendo: “Vocês estão perdendo tempo. Os dois têm razão ou, o que vem a dar na mesma, ambos estão
errados. Se o mundo se criasse por si, se não estivesse em gênese criadora, em cosmogênese, como diz Teilhard, seria
preciso dizer que Deus o fabrica. E, se dissermos que o mundo cria a si mesmo, deixamos de ser cristãos, pois
afirmamos, no início do Credo: ‘Creio em Deus, Pai, todo poderoso, criador..’ Deus não seria criador se fabricasse e
nos entregasse tudo pronto. Nada está feito, tudo ‘se faz a si mesmo’ ”.
Ato de humildade de Deus
Insisto muito na idéia do ato criador como uma renúncia de Deus, um ato seu de humildade. Deus não é alguém que
ama como vocês, como eu. Nós existimos primeiro e depois amamos. Em Deus, o ato de amar não é acessório,
adventício, é seu próprio ser. Para Deus, existir e amar são exatamente a mesma coisa. Ora, o amor não existe sem
humildade, ou seja, sem renúncia de si.
Recorramos à experiência: amar é querer o outro por ele mesmo; não posso querer o outro por ele mesmo e, ao mesmo
tempo, querê-lo por mim. “Quero-te por ti”. É bem verdade que Deus é tudo, mas um tudo que renuncia a ser tudo,
pois a renúncia está no âmago do amor.
Se pensarmos que Deus não é Trindade, que Deus não é amor em si, o ato criador torna-se ininteligível. Se o coração
de Deus é amor, renúncia e humildade, o ato criador é um ato de humildade. Nesse momento, posso compreender que
a criação é o ato pelo qual Deus não renuncia a si mesmo simplesmente no interior da Trindade, no interior do seu ser
eterno, mas que, de algum modo, ele se “retira” verdadeiramente, para não ser tudo; Ele se “contrai”, como dizem
certos espirituais orientais, por exemplo Bulgakoff, na grande tradição de São Gregorio Palamas (infelizmente, no
Ocidente, desconhecemos quase tudo da admirável espiritualidade do Oriente cristão).
O ato criador é aquele pelo qual Deus se retira, eclipsa-se, para deixar surgir liberdades que não são ele. Tem sido
muito citada, ultimamente, a frase do poeta alemão Hoelderlin: “Deus fez o homem como o mar fez os continentes:
ausentando-se”. Amar não é impor-se, é querer que o outro seja. Não imaginemos o ato criador de Deus como uma
vontade de ter satélites – não façamos isto! Se Deus não renunciasse a ser tudo, não poderíamos dizer que Ele é amor.
A imagem do mar cria continentes ao se ausentar, é admirável, mas um pouco perigosa: em se tratando de Deus, Ele
não se ausenta no sentido espacial, continua presente na criação. As imagens sempre são insuficientes, de um modo ou
de outro.
Foi a onipotência de Deus que criou o mundo. Mas que poder é esse? Certamente não é um poder de dominação ou de
fabricação, certamente não é poder que petrifique ou congele nossa liberdade. O poder criador é um poder de renúncia
absoluta a si, de modo que outros vêm a existir em si e por si mesmos. Quando Deus me criou deu-me o poder de ser
em mim e por mim mesmo.
�A essa altura, não podemos mais dizer que Deus é um concorrente que ameaça nossa liberdade. Do momento em que
Deus renuncia a si mesmo e se ausenta para que existamos em nós e por nós, ele não ameaça vir a ser um terceiro
concorrente. Nada é tão divino quanto esta renúncia de Deus, a renúncia eterna que Deus é em Si, no seio da Trindade.
Deus não é o relojoeiro do mundo
Se Deus não fosse criador nesse sentido, se não criasse criaturas criadoras, se não passasse de um fabricante do
mundo, teríamos excelentes razões para censurá-lo de péssimo fabricante. E quantos não se privam de fazê-lo! Com
efeito, quantos erros de construção: maremotos, ciclones, erupções vulcânicas, doenças, todas as faltas de sentido da
existência humana! Estranho fabricante! Se Deus fosse um relojoeiro, como imaginava Voltaire: “O universo estorva,
não posso pensar que exista tal relógio sem relojoeiro”, deveríamos dizer a ele: “Sabe que é um péssimo relojoeiro?
Seu relógio não dá a hora certa”. Em outras palavras: o mal grassa no mundo.
Às vezes, dizem que mal do mundo provém do pecado. Não é verdade. Não é por causa do pecado do homem que se
desencadeiam ciclones, maremotos e erupções vulcânicas. A verdade é que o pecado agrava consideravelmente o mal
do mundo: todos os ódios, rivalidades e egoísmos em conflito, todas as guerras... Mesmo o progresso da humanidade
tem seu avesso; a poluição é apenas um exemplo.
É contraditório crer em Deus e crer que Ele fabrica o mundo. Ao passo que, se Deus cria homens que a si mesmos se
criam, se o Amor de Deus, o mais alto Amor, consiste em respeitar a liberdade criadora do homem sem manipulá-la
(porque o Amor não manipula o outro, quer que o outro seja e se faça), então compreenderemos que o homem anda às
apalpadelas, que a história do mundo, ou melhor, a história da criação do homem por si mesmo não se pode realizar
sem recuos, fracassos e erros. Foi bom ter ido à luz? Talvez, não se sabe ao certo. Não seria melhor ter gasto tanto
dinheiro em estudos sobre o câncer? Pode ser, é provável, mas não se sabe ao certo.
O homem tateia. Vocês queriam que Deus interviesse, dizendo: “Meu pobre amigo, você não entende nada, vou lhe
dizer como se deve fazer”. Queriam um Deus que interferisse desse modo? Seria qualificá-lo de intervencionista e
Francis Jeanson se escandaliza com isso. Onde ficaria a dignidade do homem? Não poderíamos mais dizer que
existimos em nós e por nós, e o dom de Deus seria muito menos grandioso. Podem imaginar um dom maior que o da
possibilidade de existir em nós e por nós?
Evidentemente, o homem humaniza o mundo com incrível lentidão. É muito doloroso. Mas creiam que Deus é o
primeiro a sofrer com isso. Todavia, porque é amor, ele se guarda de intervir. É assunto nosso. O homem é
responsável pela humanização do mundo e da humanidade.
O Amor criador implica o risco da cruz
Dirão vocês: como Deus pode deixar o homem sofrer? Creio firmemente que o ato criador implica o risco da cruz. A
cruz de Cristo está no interior do ato criador – o ato pelo qual Deus dá continuamente à nossa liberdade o poder de
criar a si mesma, o que não pode ocorrer sem sofrimento. Mas o próprio Deus entra nesse sofrimento e por ele morre
na cruz. Está escrito no Apocalipse que o “Cordeiro (o Filho) é imolado desde o início do mundo”; em certo sentido,
ele é eternamente imolado no coração de Deus. O ato criador implica o sacrifício do Filho.
Se Deus interviesse para impedir o sofrimento humano, talvez pudéssemos dizer, numa primeira abordagem, que Ele
nos ama, impedindo-nos de sofrer. Mas, indo ao fundo das coisas, reconheçam que este seria um amor de criança, que
não seria sério. O que está no núcleo do ato criador é o absoluto respeito por uma criatura que deve criar-se a si
mesma e não o pode fazer sem sofrimento, de onde deriva o pecado que, evidentemente, complica as coisas.
Ouso distinguir em Deus dois níveis de Amor. É uma maneira de falar. Um nível inferior no qual Deus intervêm para
impedir o sofrimento humano. E um nível superior de Amor, no qual respeita absolutamente a criatura, que deve criar
a si mesma. Disse-me recentemente um filósofo: “Você chega a esse ponto?” Respondi: “Sim, chego, compreender o
Amor em sua profundidade última é compreender a não intervenção de Deus”.
Se Deus intervém, quer no Evangelho pelos milagres, quer em certas vidas, por meio de curas, por exemplo, é por
estar presente em nossos humildes começos, onde nosso desejo ainda é carnal, onde se trata mais de necessidades que
de desejos. Mas é sempre para nos conduzir ao Calvário, onde não há intervenção alguma. No Calvário, é o silêncio, a
ausência, e nesse momento o Amor se revela em toda sua profundidade.
Quero concluir as reflexões sobre este paradoxo reconhecendo que o assunto é difícil. Recordem ao menos que há
certas imagens perigosas que é preciso extirpar a qualquer preço. Como não podemos dispensar imagens, é preciso
substituí-las por outras, menos falsas, que tomamos emprestadas à ordem da criação artística e à ordem do Amor;
depois, no âmago disso tudo, devemos segurar as duas extremidades: de um lado é Deus quem cria, de outro, o que
Ele cria é a capacidade de o homem criar-se a si mesmo, de ser em si e por si.
�Para o aprofundamento de tal reflexão, recomendo-lhes um livro extremamente importante – que já citei – de meu
confrade, o Pe. Ganne, sobre La Création (números 21 e 22 de Cultures et Foi).
O PECADO ORIGINAL:
TODOS OS HOMENS SÃO PECADORES
NO AMAGO DO SER
Três observações para aplainar o terreno:
1 - Por que falar de pecado original? Jesus nunca disse palavra sobre isso, nem se trata do assunto no Evangelho,
pelo menos diretamente. No Credo, confessamos “um só batismo para a remissão dos pecados” sem menção
explícita ao pecado original. Isto não deve espantar, pois o centro do Credo é a união de Deus e da humanidade
em Jesus Cristo.
O que é preciso compreender é que um enunciado dogmático, como o do pecado original, é sempre uma definição
de fé, sobre essa ou aquela visão da Realidade central. Todo enunciado dogmático é um esclarecimento, vindo do
mistério do Cristo, sobre nossa condição humana. O conjunto dos dogmas é a soma das afirmações necessárias, no
decorrer da história, para que a luz de Cristo seja corretamente recebida.
2 – Conseqüentemente, não se trata de considerar o pecado original a partir somente do relato do Gênesis. Do
Cristo é que se deve partir. Um dogma, uma afirmação de fé situam-se sempre no nível da Nova Aliança (que
esclarece e assume a antiga). O enunciado da fé com respeito ao pecado original origina-se das reflexões da Igreja
a partir de:
- Nossa experiência: há pecado no mundo em torno de nós e, em nós, isso é fato!
- Do batismo que, tradicionalmente, tem sido entendido como um novo nascimento em Cristo.
- Certas passagens do novo Testamento, notadamente da Carta aos Romanos (5,12s) onde Paulo escreve: “Do
mesmo modo que vós outros, os judeus, dizeis que somos todos solidários em Adão, a fortiori, eu vos declaro, eu,
Paulo, que somos todos solidários em Jesus ressuscitado”. Paulo freqüentemente chama o Cristo de novo Adão.
Antes de ser considerado primeiro pecador (pois realmente é necessário que o pecado tenha começado!), Adão
deve ser considerado como a imagem que prepara o novo Adão, “figura daquele que virá” (Rm 5,15), isto é, do
Cristo. Assim pensaram os Padres da Igreja dos primeiros séculos, a começar por Irineu, bispo de Lião, no século
II: “Ao criar o homem, Deus pensava no Cristo”.
3 – Disto segue que sempre nos enganamos, em teologia, ao isolar um dogma. Pretendeu-se (certos pensadores do
século XIX, por exemplo Bonald, Maistre e Veuillot, etc) apresentar o cristianismos a partir do pecado original,
como se a queda, sobre a qual se fala no livro do Gênesis, fosse o ponto de partida sobre o qual o cristianismo foi
construído.
Uma certa educação permitia imaginar as coisas de um modo caricatural que se chama “o golpe do divino
encanador”: Deus, o supremo encanador, fabricar o mundo com encanamentos que funcionavam perfeitamente. O
homem abalou-se a demolir esses encanamentos. Daí a decisão do encanador de enviar seu Filho para consertar
tudo, de sorte que a coisa funcionasse melhor do que no plano primitivo. Não, o cristianismo é todo ele, fundado
em Jesus Cristo. Nós havíamos adquirido maus hábitos, tendências a acentuar o que não deve ser acentuado. A
Igreja avança, não quando se renega aquilo em que ontem se acreditava, mas quando os maus hábitos
desaparecem, quando, para além das deformações inevitáveis (passageiras no direito, mas tenazes nos fatos, como
todos os maus hábitos), volta-se a encontrar a fé mais tradicional da Igreja.
�PROPOSIÇÃO DE REFLEXÕES TEOLÓGICAS
A situação de Adão é a nossa
É preciso descartar a idéia, propriamente mítica, de um tempo em que o primeiro homem teria vivido,
antes de haver pecado, em estado de bem-aventurança e de perfeição imperturbada. Eis o que escreve um
teólogo contemporâneo: “O dogma não impõe tal interpretação e, conseqüentemente, a Escritura
tampouco. Se o relato da Escritura o impusesse, o dogma igualmente teria imposto”.
É necessário saber que o gênero literário dos capítulos 2 e 3 do Gênesis é o gênero sapiencial (da palavra
latina sapientia, sabedoria), no qual a reflexão e a experiência do “sábio” são expressas, sob a forma de
provérbios, de sentenças solenes ou de discursos, que visam transmitir um ensinamento de alcance
universal. Existem provérbios ou sentenças enigmáticos: Por exemplo: “A porta gira nos seus gonzos e
o preguiçoso no seu leito” (Pr. 26,14). Enigma que pode ser entendido assim: “Quem é aquele que gira
como a porta em seus gonzos? Resposta: o preguiçoso em seu leito”. Assemelha-se a uma advinha. Nos
escritos sapienciais, todavia, não existem apenas charadas recolhidas da sabedoria popular. Á estão os
grandes enigmas da vida e da morte, do mundo e do destino humano.
Trata-se portanto, em Gênesis 2-3, não de um relato verdadeiramente histórico (como a história de Davi
ou de Salomão), não de um relato puramente mítico, não de uma tese filosófica no sentido ocidental da
palavra, mas de um escrito de sabedoria, cujo intento é a resolução de um enigma: o enigma maior da
condição do homem no mundo e perante Deus; e este escrito é fruto, a um tempo, da experiência de
Israel e da reflexão dos sábios.
O que o autor destes capítulos quis apresentar é, antes de tudo, a situação do homem – do homem, sem
mais – tanto o do século XX como o de qualquer outra época, com relação a Deus e com relação ao
pecado. Etimologicamente, a palavra hebraica adama significa a terra, o solo, o barro; Adão é então o
terroso, o argiloso, o que veio da terra. Corro o risco de assustá-los, mas mesmo assim afirmo, não
como opinião particular, mas em nome da Igreja: se a Igreja diz que a causa do pecado é Adão, ela
jamais definiu quem é Adão. A maior parte dos teólogos contemporâneos admite que Adão é toda a
humanidade. Conseqüentemente, a historia de Adão que nos relatam é exatamente a nossa: e o pecado
de Adão é o nosso pecado.
Verdade é que o relato nos assevera que Adão foi criado em estado de santidade e justiça. Devemos,
portanto, concebê-lo como homem de inteligência e liberdade perfeitas, uma espécie de super-homem
relativamente aos homens que conhecemos? Isto absolutamente não corresponde à descrição feita pela
ciência atual dos primeiros homens a emergir lentamente da animalidade. Não é necessário imaginar, no
despontar da humanidade (isto é, há dois ou três milhões de anos), um super-homem – e, ao meu ver,
neste ponto, seria preferível refrear a fantasia.
A perfeição de Adão é a perfeição de uma vocação
O que a Bíblia nos apresenta é o fim, para o qual deus ordenou o homem: sua divinização. A perfeição
do primeiro homem não é a de ser diferente dos demais seres da natureza, animais ou vegetais, mas o
fato de haver recebido o chamado de Deus, desde sua origem, para um fim propriamente divino. Foi
chamado a entrar no amor de Deus, a partilhar eternamente da própria vida divina. Desde que o espírito
do homem desperta, ele percebe que não pode viver como os outros seres da terra: eles não virão a ser
livres. Ele, porem, deve tornar-se o que deve ser. Para dizer de outro modo: a perfeição do homem é a
perfeição de uma vocação, não de uma situação. É isto que a Bíblia no ensina, ao dizer que o homem é
criado “à imagem e semelhança de Deus” (Gn. 1,26), ou, mais exatamente, “à imagem em vista da
semelhança de Deus” – no caso de os teólogos interpretarem semelhança no sentido preciso de
participação na própria vida divina.
Deus dá ao homem a capacidade de vir a ser perfeito, porque Ele quer que o homem seja perfeito, à sua
imagem. Deus, repito, não fabricou uma liberdade, porque compete ao homem criado em possibilidade
de liberdade tornar-se livre. Deus cria no homem a capacidade de criar a si próprio. Eis porque não me
�agrada a expressão “Deus criou o homem livre”, visto nela haver dois erros: “criação” está no passado e
a liberdade é tida como presente, algo predefinido, e a liberdade é essencialmente o contrário de algo já
pronto. A liberdade só é liberdade quando por si mesma criada.
Conseqüentemente, a perfeição de Adão, que é o que está em jogo, não é o estado de perfeição, mas o
início de uma historia de perfeição que deve se concluir na gloria de Deus. É isso o que Deus quer, Ele
cria o homem divinizável. É a mais profunda definição que se pode dar do homem, para além de tudo o
que nos dizem as ciências humanas. É a vocação do homem – e a vocação eminentemente exigente.
O homem, porém, não se pode divinizar por si, deve acolher o dom de deus, pois é Deus que o diviniza.
O homem, por si, não transporá o abismo infinito que existe entre ele e Deus, pois sua origem é terrestre
e suas raízes cósmicas. Ele é “terroso”. Pouco importa o modo de conceber esta origem terrestre: quer
seja o de ter sido feito diretamente da terra, como diz o Gênesis, quer, como correntemente se admite
hoje em dia, por intermédio de diversas etapas animais.
Para o homem, origem terrestre é uma fonte de dessemelhança em relação a Deus. Pois a natureza faz
ressoar constantemente no homem um apelo a viver, não por Deus e pelos outros homens, mas a viver
para si só, egoisticamente, como os demais seres da natureza que vivem segundo os instintos. Para
simplificar, pode-se dizer: há no homem uma dupla força:
- a força da gravidade e da inércia, que convida a renunciar a ser um homem livre, impelindo a viver
como os outros seres do mundo, que não têm liberdade para construir (como uma planta, um cão ou um
gato);
- uma força ascensional, que convida a construir a liberdade que Deus, pela graça, fará asender até sua
própria liberdade.
Eis, portanto, o homem dilacerado – e não pode deixar de sê-lo, pois Deus o chama para compartilhar
de sua vida. E ele está entre a força da gravidade, que o arrasta para baixo (para o caminho da servidão e
da renúncia à liberdade) e a força ascensional (que é o caminho do crescimento e da liberdade).
Em suma: o primeiro homem não tinha uma condição diferente da nossa. Inútil tentar imaginar o que
pode ter sido sua falta. Não raro se imagina uma falta luciferina, de grandeza excepcional. Mas para isto
Adão deveria ter sido dotado de uma inteligência plenamente desenvolvida e de liberdade perfeita.
Digamos ainda: não é este o gênero de homem que a ciência nos apresenta nas origens da humanidade!
Aliás, que é Adão? Os cientistas nos dizem que a humanidade provavelmente não descende de um único
casal (a hipótese do monogenismo) e que surgiu, quase durante a mesma época, em diversas partes do
globo (hipótese do poligenismo, que hoje em dia é a mais aceita).
Eis a situação do homem. A falta, ou melhor, a obediência à força da gravidade, liga-se ao despertar da
consciência moral, quando o homem dá-se conta de ser diferente dos outros e de que, a este título, tem o
dever de construir a própria liberdade, a partir dos seus condicionamentos. Deus pede ao homem que ele
próprio se realize, tendendo para Deus e preferindo a Deus, acolhendo o dom de Deus. Não será
verdadeiramente homem se não escolher a Deus como centro. O pecado original é o homem preferir a
própria realização, tapando os ouvidos para não ouvir o chamado de Deus a se criar a si mesmo; é o
homem preferir a fácil servidão às duras exigências da liberdade.
Eis o que é o pecado original: não se trata de origem cronológica e sim da origem da natureza humana,
da própria raiz da existência. Eis porque o pecado original é impensável, independentemente da vocação
do homem a ser divinizado. O escândalo da educação cristã de crianças e jovens é mencionar o pecado
original sem antes ter a certeza de que compreenderam o essencial da fé, que é crer que somos
chamados a participar da vida divina. Os domas cristãos só adquirem sentido quando relacionados a este
essencial! O pecado original é a incomensurável distância entre o que é o homem abandonado a si
mesmo e o que ele deve ser, vivendo a vida divina.
De que modo se propaga ou se transmite o pecado original?
É preciso descartar a idéia de que o pecado do primeiro homem foi, na historia, o ponto de partida de
uma queda vertiginosa. Fazemos com que nossa história comece depois do pecado e temos a impressão
�de que o estado de Adão, antes do pecado, nada tinha em comum com o que o homem conheceu depois.
E a gente se pôs, meio ingenuamente, a perguntar: se Adão não tivesse cometido essa bobagem, se
tivesse sido um pouco mais razoável, ou pouco mais firme com a mulher, quantas catástrofes teriam
sido evitadas; estaríamos numa felicidade completa, para sempre estabelecidos na virtude. Francamente,
que sabem vocês desse assunto? É pura fantasia, terreno preferido do infantilismo.
Supondo-se que o primeiro homem não houvesse pecado, quem nos garante que o segundo não o teria
feito? E por que não o terceiro ou o quarto? Se a falta do primeiro homem teve tanta influência sobre
nós, por que não teriam a falta do segundo e do terceiro? Tudo isso é meio estranho. Mas vamos ao
essencial: concebe-se a idéia de uma humanidade que poderia haver atingido a gloria perfeita de sua
divinização dispensando completamente Jesus cristo. Acaba-se por imaginar que, não houvesse Adão
pecado, teria tido o poder de, sozinho, conduzir à divinização toda a descendência humana.
Infelizmente, cometeu uma besteira e foi preciso Jesus Cristo vir para consertá-la.
Reflitamos: precisamos apenas ler o Novo Testamento para ver que existe uma única nas palavras de
Paulo, nele fomos criados (Cl 1,16). Isto quer dizer que, desde as origens, a humanidade está destinada à
filiação divina, por Cristo e em Cristo.
Certos pregadores davam a impressão de que Deus estava tão ofendido pelo pecado do primeiro homem
que decidiu que, daí em diante, todos os homens seriam servos do pecado. É preciso, realmente,
confessar que esta conclusão é extraordinária. A preocupação de Deus, afinal, não é tornar os homens
servos do pecado, é livrá-los dele. Não foi Ele quem decidiu, por uma espécie de resolução da sua
vontade soberana, imputar-nos a culpa do primeiro homem, despeitado por esse homem haver
infringido a lei. Não, a liberdade absoluta não pode querer nada, a não ser libertar!
Se o pecado se transmite é porque está na natureza de todo pecado o transmitir-se. O pecado não se
transmite como ato de culpabilidade. Quando cometemos uma falta, ela é nossa e não passa para nossos
filhos ou vizinhos. A esse respeito, a própria expressão “pecado original” presta-se a equívocos. Pois o
pecado original se distingue do pecado pessoal pela ausência de consentimento pessoal. O pecado
original em nós não é um ato pecaminoso, mas a conseqüência de todos os pecados cometidos a contar
do primeiro. É uma situação relativamente a uma vocação.
É próprio de todo pecado desencadear uma sucessão de ondas que perturbam as relações humanas. Se
um homem vivesse constantemente obcecado pelo desejo de dinheiro, sua relação com os demais estaria
falseada. Se um homem é um Don-juan que só pensa em luxuria, todas as belas mulheres do mundo
serão para ele ocasião de prazer, tudo é turbado e não há mais fraternidade. O menor dos nossos pecados
é provocação ao mal, por nós depositada na consciência de outrem. Todas as vezes que busco o meu
prazer, provoco outros a agirem igualmente. Todo pecado torna-se uma via pela qual a tendência ao
pecado infiltra-se na consciência humana.
O conjunto das relações humanas constitui o que se pode chamar consciência comum da humanidade, a
vontade comum do gênero humano. As más ações de todos os homens contribuem para estender e
propagar o pecado. Cada uma das más ações que cometemos é como onda que se estende por todos os
níveis das relações humanas. Assim, é que todos os pecados dos homens se aglutinam e formam entre si
um verdadeiro corpo de pecado. A criança que vem ao mundo entra numa comunidade de pecado. Sou
pecador desde o primeiro momento de minha existência, pois o primeiro momento é vivido num mundo
de pecado. Nenhum homem pode formar-se sem o auxílio dos outros. Mas os outros auxiliam-no tanto
para destruir como para construir. Assim podemos compreender a propagação do pecado original.
Mas notemos que o mundo, se é corpo de pecado, é igualmente copo de graça. Se tendemos ao pecado,
tendemos igualmente para o bem, e o bem, seja qual for, é uma colaboração com a obra divina.
O DOGMA DO PECADO ORIGINAL É ESSENCIAL À VERDADE DE
NOSSA RELAÇÃO COM DEUS
�Pecadores perdoados na raiz do nosso ser
Se a Igreja defende a manutenção do dogma do pecado original, e por ele ser essencial à verdade de nossa relação
com Deus. Se eu me desembaraçar do pecado original, minha relação com Deus não será uma relação verdadeira.
Evidentemente, isso não aparece de imediato, precisa ser estabelecido. Mas precisamente por não aparecer de
imediato, muitos são tentados a livrar-se disso simplesmente dizendo: afinal, haja ou não pecado original, em que
a minha vida muda? Muda muita coisa.
Em As Palavras, Jean Paul Sartre conta que, quando criança, desobedecera aos pais, brincara com fósforos e
queimara o tapete; ele camuflou o estrago como pôde e pulou nos joelhos da mãe sem nada dizer sobre o erro
cometido. E acrescenta: relação falsa, relação mentirosa; minha relação de criança com minha mãe teria sido
verdadeira se eu lhe tivesse dito: “Mamãe, me perdoe, desobedeci, brinquei com fósforos e queimei o tapete.
Espero que possa me perdoar e que me permita beijá-la”. Nesse momento, a relação seria verdadeira!
Se o homem não reconhece que é pecador, sua relação com Deus é falsa. Quando a Igreja nos fala do pecado
original, quer que compreendamos que, na própria raiz de nosso ser, somos não apenas criaturas finitas, mas
criaturas pecadoras. Há na raiz de nosso ser uma orientação que não está voltada para Deus.
No âmago das coisas (e creio que isto se faz sentir bem nitidamente nos Exercícios de trinta dias, onde há quem
fique espantado que passemos uma semana toda a falar em pecado), é que, se não reconheço que sou escravo, não
posso saber o que é a liberdade e não me por em busca de um libertador. A pior das escravidões é não se
conhecer a si mesmo. Mas é unicamente em função da liberdade que há urgência em se saber escravo, de outro
modo não há interesse. É o Cristo Salvador e Libertador que nos liberta, não apenas da finitude (somos seres
finitos e se formos divinizados é preciso que sejamos libertos dessa finitude, que nos limita por todos os lados),
mas também da escravidão do pecado, que é um redobrar de finitude. Esta libertação nos deve elevar à liberdade
de Deus.
Assim, a verdadeira relação com Deus, a relação de verdade entre o homem e Deus é uma relação de pecador
perdoado com um infinito de amor e de perdão. É verdade que o homem é criatura e Deus, criador, mas não é
tudo. A distância entre o que somos e o Deus de Amor que nos diviniza é infinitamente maior: está entre um
infinito de amor que perdoa e uma criatura não apenas finita, mas que é, a um mesmo tempo, pecadora e
perdoada.
Exceto a Virgem Maria, é impossível ao homem apresentar-se diante de Deus de cabeça erguida. Se eu me
apresentar diante de Deus, de cabeça erguida, como um inocente, minha relação com Ele será falsa e, por isso,
desconhecerei o que Ele é em relação a mim: não só aquele que nos cria, mas aquele que nos diviniza e perdoa.
A grande realidade não é o pecado, é o perdão. Deus não se revela em plenitude a não ser quando revela ser um
infinito poder de perdão. Não sei se vocês têm experiência de perdão; pessoalmente, não a tenho em grande
medida, por faltar-me a consciência de haver sido gravemente ofendido no decorrer da minha vida. Fui ofendido
em pequenas coisas, mas não me lembro de ter tido ocasião de revelar a gratuidade total do meu amor perdoando, ou melhor, doando tudo. O que de mais profundo se pode dizer de Deus é que Ele é um poder infinito de
perdão. Pensem que, se não fossemos pecadores, conheceríamos um Deus capaz de dar, mas não o
conheceríamos como aquele que dá até o perdão e poderíamos sempre nos perguntar se Deus continuaria a doar,
caso o ofendêssemos. Em outras palavras, jamais conheceríamos a profundidade divina.
Existem, portanto, três graus de gratuidade no Amor de Deus por nós:
- A gratuidade do Amor que nos cria;
- a gratuidade do Amor que nos diviniza;
- a gratuidade do amor que nos perdoa, isto é, que nos devolve perpetuamente o que perpetuamente perdemos
pelo pecado.
Não peçam à Igreja o que ela não tenciona dar. A Igreja não pretende que o pecado de Adão seja explicação para
o mal e para o sofrimento. Ao mesmo tempo em que ela afirma a universalidade do pecado, ratifica a
universalidade do perdão libertador. Jamais se deveria falar de pecado original, mas dizer sempre pecado e
perdão originais, ou pecado e redenção originais, com a condição de entender perfeitamente que redenção
significa libertação. Se a divinização dos pecadores que somos chama-se redenção, é porque nossa salvação não
assume unicamente a forma do crescimento, mas igualmente a do redirecionamento. Deus, para nos divinizar, não
nos busca exclusivamente quando criaturas inocentes, mas também quando criaturas pecadoras, de tal sorte que o
nosso crescimento, cujo termo é Deus, toma a forma de redirecionamento.
Transformar dádiva em débito
O pecado original é transformar o dom da divinização em um débito, é querer apoderar-se daquilo que é preciso
acolher. “Tu não comerás este fruto, mas tudo é teu, tudo te darei.” O fruto do paraíso terrestre é o fruto verde
que Deus não pode dar. A contribuição do tempo é indispensável e o pecado original consiste justamente em
�querer suprimi-la, em querer o fruto imediatamente. É a pressa a substituir o acolhimento. O homem é tentado a
se apossar da condição divina, assim que esta lhe é oferecida. Se um de vocês me convidar para me mostrar obras
de arte que colecionou e me disser que me pertencem, que mais tarde eu as receberei de presente e se, nessa noite,
assalto-lhe o apartamento e roubo o que me fora dado, estou pecando.
Nossa liberdade não é coisa pré-fabricada. Querer tomar é impedir a Deus de dar, pois Deus não pode dar coisas
já prontas. A divinização é preciso acolhê-la. Na própria raiz de nossa existência, no fundo de todos os nossos
pecados atuais, há uma perversão que consiste em transformar a dádiva em débito. É a perversão suprema, a
vontade de conquistar ou capturar, que se substitui à disposição de acolher. Há tanto amor a acolher quanto a dar,
e o que faz o cristianismo é que tudo pode ser vivido a modo de acolhimento e dom.
Peço aos cristãos que não sejam triunfalistas, que não se apresentem aos descrentes como capazes de lhes
fornecer explicações. Por que o homem é pecador? Não há resposta. O pecado está na origem da nossa existência
e nós estamos originariamente nos braços de Deus como nos de um Pai que perdoa,; eis a significação, não a
explicação. A resposta de Deus não é teórica; ele entra no mundo do pecado e por isso morre, tal é a sua
humildade.
Um cristão nunca poderá dizer: “Eu sei a resposta”, pois ele só pode vivê-la amando como Deus amou até o fim.
O cristão não pode gabar-se de possuir a verdade sobre o pecado, o mal e o sofrimento dele decorrentes, uma vez
que não pode impedir que se reitere a eterna pergunta: não existem vidas, das quais parece excluída toda
esperança, nas quais predomina uma noite sem claridade? O cristão que espera uma plenitude de sentido (recordo
que não existe resposta teórica ao “por quê?” derradeiro, mas há uma esperança) só pode ser imensamente
humilde e guardar um modesto silêncio diante da experiência do desespero e da absurdidade, que é a de milhões
de pessoas que o cercam. Contra o pecado, o que podemos esperar é um triunfo definitivo, a vida eterna no Amor.
RESSURREIÇÃO DA CARNE OU DIVINIZAÇÃO DO
HOMEM E DO UNIVERSO
O termo “carne” não tem a mesma dimensão do termo hebraico que lhe corresponde: um judeu não opõe a carne
ao espírito como o fazemos. Para ele, a carne é o homem todo, com sua fraqueza e fragilidade mas também com
seu enraizamento na natureza, num meio, numa raça. A carne inclui todas as relações com pessoas e coisas, Ao
dizer que cremos na ressurreição da carne – é um artigo do nosso Credo -, dizemos que é o homem inteiro que
ressuscita.
Observem que nossos Credos não mencionam a ressurreição dos corpos. No Símbolo dos Apóstolos trata-se da
“ressurreição da carne” e, no Símbolo de Nicéia, que dizemos ou cantamos durante a missa, trata-se da
“ressurreição dos mortos”. O corpo está implicado num conjunto muito mais vasto que a Bíblia chama de carne.
A fé da Igreja na ressurreição da carne, isto é, do homem e do mundo inteiro, escandalizou tanto o pensamento
pagão que não nos devemos surpreender com as dificuldades com que se defrontaram os autores cristãos dos
primeiros séculos para que fosse aceita. É notável que, entre as obras dos primeiros Padres da Igreja, um grande
número seja consagrado a esse dogma. E eu, tendo em vista que o cristianismo é doutrina de vida, proporei
brutalmente a mesma questão que propus com respeito à Trindade: se, por impossível, um concílio declarasse que
não há ressurreição da carne, que diferença prática isso provocaria na vida cotidiana?
IMORTALIDADE DA ALMA NÃO!
RESSURREIÇÃO DO HOMEM TODO
�Deixamos que se desvanecesse ou empobrecesse a riqueza da fé cristã na bem aventurança eterna na medida em
que deixamos, por menos que seja, de seguir a pedagogia divina expressa na Bíblia (Antigo e Novo Testamento
sobre a progressão da Revelação cristã a partir da doutrina do sheol). E o que é mais grave, confundimos o céu a
um lugar da alma imortal. O resultado é que este nosso mundo onde vivemos, trabalhamos e sofremos durante
quarenta, sessenta ou oitenta anos, desvaloriza-se e perde a cor. O valor do mundo de hoje, das tarefas humanas,
sejam elas familiares, sociais, sindicais, políticas ou culturais, afigura-se coisa totalmente secundaria, em relação
ao que denominamos o outro mundo, a outra vida.
Como se houvesse dois mundos e este no qual estamos pouco interesse tivesse em comparação com o outro!
Confundimos outro mundo e mundo que veio a ser outro, que afinal não são a mesma coisa. A rigor, não há outro
mundo e outra vida, este mundo é que vem a ser completamente outro, esta vida, completamente outra. Ao ver
um homem de 60 anos que conhecemos quando jovem, dizemos que é o mesmo, não outro. Todavia, ao
envelhecer, ele se tornou completamente outro – sendo realmente o mesmo. Não deveríamos falar em outro
mundo e sim, sempre, do mundo que pela ressurreição torna-se completamente outro.
Se falamos de outro mundo, este torna-se de tal modo essencial que este nosso mundo core o risco de nos parecer
simplesmente o campo de provas que precede a recompensa. Sabe Deus se, no espírito de muitos cristãos, o céu é
o lugar da recompensa! Assim, é que, ao esvaziar o céu de sua substancia e de seu atrativo, esvaziamos
igualmente a terra, e vamos dar num céu que será apenas a imortalidade para a alma, não sendo a terra mais que
matéria perecível, uma espécie de máquina de produção de puros espíritos. Vejam como é importante esta estada
por aqui.
Bem aventurança divina, comunitária, encarnada
O que a Igreja afirma é, essencialmente, o seguinte: nossa bem aventurança eterna será verdadeiramente uma bem
aventurança humana, conforme à natureza humana:
- Social ou comunitária (pois o homem é um ser social e uma bem aventurança individualista não corresponderia
à sua natureza);
- Encarnada (pois o homem não é puro espírito);
- Divina, consistindo na unidade da vida com deus (pois o homem não é um ser fechado em si mesmo, mas aberto
ao infinito; ou para falar de outro modo, uma das dimensões do homem é sua aspiração ao infinito).
Estes três aspectos estão intimamente ligados no dogma da ressurreição da carne. Quero dizer que tal bem
aventurança plenamente humana, só se pode realizar na e pela ressurreição da carne. Se o homem não
ressuscitasse inteiro, corpo e alma, nossa bem aventurança eterna não seria bem aventurança humana, mas
recompensa exterior, aplicada ao homem por fora, como um velocípede que se oferece ao garoto que passou nas
provas. Se eu não continuar a ser o homem que sou por natureza, mas um novo ser, diferente, que seria
eternamente feliz, essa bem aventurança não será a minha. Este pensamento é absolutamente insuportável, é caso
de dignidade elementar, como nos recordam alguns ateus: sou homem, minha dignidade consiste em ser homem e
portanto em permanecer homem, eternamente. Se é verdade que não pode haver ressurreição da carne sem o dom
de Deus que nos chama a compartilhar de sua vida, este dom e este chamado implicam que nos construamos a
nós mesmos, por meio de todas as nossas atividades e de nossa vida presente. A palavra recompensa está no
Evangelho: “Vossa recompensa será grande no céu” (Mt. 5,12), mas no sentido de que a colheita é a recompensa
da semeadura; trata-se de uma recompensa intrínseca.
Eis porque, segundo a doutrina da Igreja, a vida terna feliz é a permanência divinizada do homem todo: eu e eu
todo. Sou eu, eu todo, que serei eternamente feliz. Quando digo eu todo entendo todos os meus relacionamentos:
se sou casado, minha mulher; se sou pai ou mãe de família, meus filhos; meus irmãos, minhas irmãs, meus
amigos, minha comunidade religiosa, meu meio social; meu meio profissional, meu trabalho: não só a intenção
com que realizo meu trabalho, mas minha própria obra. Quero lhes contar um segredo: ao escrever o livrinho A
humildade de Deus, ouvi de certas pessoas: “Oh, há citações de músicos e poetas!” “Sim”, respondia eu, “não
quero me desfazer de todos aqueles que contribuíram para fazer de mim o que sou, e que desejo tornar a
encontrar na eternidade. Se não fosse assim, não seria eu.”
Notemos de passagem que, ao dizer todo o homem, entendo todo o cosmo, visto estarmos ligados à totalidade do
cosmo, ou antes, ao universo da matéria, da vida vegetal e animal. Assimilamos o cosmo quando comemos ou
quando admiramos uma obra de arte. Ao descer da Acrópole, após ter passado várias horas a contemplar o
Parthenon, o Parthenon passa a fazer parte de mim, pois eu me tornei diferente do que era antes dessa
contemplação. O Parthenon ressuscitará em mim e por mim.
�O homem não pode ser separado do cosmo, pois é solidário a ele. Nosso corpo é talhado na mesma matéria do
universo: precisamos de cálcio, de fosfato, etc., vocês sabem disso melhor do que eu! O homem não está para o
mundo como uma estátua em seu pedestal, mas como a flor em relação à haste, fazendo corpo com a haste.
Somos um com o cosmo de sorte que tudo o que se diz do corpo vale para o universo. Num célebre serão
pronunciado na festa da Anunciação, dizia Bossuet que “o homem é um microcosmo, um pequeno mundo, no
interior do mundo”.
Por conseguinte, a fé na ressurreição da carne é, de fato, fé na ressurreição do mundo. Aqui está a importância de
nossas tarefas terrestres, que sempre consistem, direta ou indiretamente, em transformar e humanizar o mundo. O
mundo ressuscita. Estamos longe de uma filosofia que se contenta com provar a imortalidade da alma e para a
qual o universo tal qual é não teria valor durável. Assim, poder-se-ia chegar a uma bem aventurança de espírito
que se tornaria facilmente uma bem aventurança de individualismo. A verdade revelada é infinitamente mais rica:
bem aventurança social u comunitária, encarnada e divina; ou, em outros termos, permanência espiritualizada e
divinizada de todo homem e de todo universo, do qual o home é solidário. Para isto, busquemos compreender o
que é o corpo, mesmo que as reflexões seguintes sejam um pouco difíceis.
VALOR DO CORPO, NENHUMA ALMA SEM CORPO,
NENHUM CORPO SEM ALMA
O que é o corpo? O que é nosso corpo humano? Não é um objeto entre os múltiplos objetos do mundo físico;
não é uma coisa entre as coisas. Embora surja a princípio como tal: uma coisa pesada, opaca, que impõe limites;
que se apresenta como um agregado de limites; uma espécie de prisão, que faz com que, estando aqui, eu não
possa estar em outro lugar. É bem verdade que a criança primeiro descobre seu corpo como se não fosse seu
corpo: a ponta do pezinho é algo como a coberta ou o lençol sob o qual repousa.
De fato, não é nada disso, o corpo não é qualquer coisa. O corpo é alguém: meu corpo sou eu. É algo pesado e
opaco, sim; algo limitado e limitador, sim; um agregado de matéria, sim, em certo sentido. Mas meu corpo, acima
de tudo, é um centro de energia. E de energia poderosa, muito maleável. Massa de células vivas, sim; mas vejam
o que é capaz de fazer essa massa no esporte e na dança!
Se você gosta de esportes, pense no que é um centro avante de uma equipe de futebol: está em toda parte ao
mesmo tempo. Se você é artista, pense num bailarino ou bailarina. Veja o pequeno diálogo inspirado em Platão,
intitulado por Paul Valéry L’âme et la danse. O título é sugestivo: é a alma, é o espírito que, também ele, está em
toda parte ao mesmo tempo: “(A bailarina) nos ensina o que fazemos, mostrando claramente às nossas almas o
que os corpos obscuramente realizam. À luz de suas pernas, nossos movimentos imediatos nos parecem milagres.
Espantam-nos, enfim, tanto quanto é preciso”. Valéry quer dizer, se eu o traduzir em simples prosa, que a arte do
bailarino ou bailarina nos esclarece sobre o que todos realizamos sem o perceber, na vida cotidiana, quando
andamos em nossa rua ou jardim.
Que desdobramento de energias! Assim é a comunicação com o outro! É afinal a radiante expressão da vida, da
força, da beleza e da inteligência! Poderão dizer-me: você faz o elogio do corpo dos bailarinos e nós não somos
bailarinos; você faz o elogio do corpo dos esportistas e nós não somos esportistas. Mas precisamente: o elogio
que faço do corpo de esportistas e bailarinos tem como alvo o elogio do corpo de todos nós. O esportista e o
bailarino manifestam de modo espetacular o centro de energias que é o corpo de todos nós.
Olhem para suas mãos (não são só os pianistas que têm mãos!). Tomás de Aquino dizia que o que constitui o
homem é o espírito e a mão. A mão parece ser a extremidade banal dos membros anteriores. De fato, no caso do
homem, que é animal ereto, a mão está livre (ele não precisa das mãos para andar); pode apanhar tudo, sem ligarse a nada do que se apropria. Ou seja, a mão constitui o mais impressionante sinal de inteligência: continua a ser
ela mesma, ao mesmo tempo que adquire relações universais. Como muito bem se diz, o homem embarga tudo
aquilo que Poe a Mao e tudo cai sob seu reino. Pela mão, o homem é o artesão do mundo. A Mao é a obreira do
espírito, a presença prática do espírito no mundo.
Paul Valéry, depois de elogiar a dança, que é a própria inteligência encarnada nos pés, nas pernas e no corpo
todo, faz o elogio da mão: fala das “mãos sábias, clarividentes, industriosas, do cirurgião”. Do mesmo modo que
o bailarino ocupa a cena toda, e o esportista, todo o campo de esportes, todos os homens, pelo trabalho, ocupam o
mundo como o corpo, com sua atividade corporal. É preciso dizer (embora tenha se tornado bastante banal, ainda
que importante para o nosso propósito) que todo produto do trabalho e da arte, desde a caneta que me serviu para
escrever as linhas que ora tenho sob os olhos, até os foguetes dos cosmonautas, são prolongamentos do corpo
�humano ou, o que vem a dar no mesmo, sua ativa presença corporal estende-se ao universo todo. Ao final, o
universo todo torna-se o corpo do homem.
Em seu poder de apreensão universal, a Mao do homem pressupõe o cérebro e a ele se liga. Explicam-nos os
cientistas de que modo a posição ereta (o fato de o homem estar de pé) liberou o edifício craniano de uma espécie
de jugo muscular que lhe bloquearia o desenvolvimento. Afastada esta constrição, o nicho protetor do córtex
cerebral pôde se desenvolver. Nesse nicho alojou-se o fabuloso computador vivo que compreende, calculando-se
por baixo, quinze bilhões de células: o cérebro. É ele que possibilita o indefinido jogo se associações e relações
de que se nutre e que é produzido pelo espírito.
Agora o rosto. Em vez de rosto, digamos face. A Mao permitiu o aparecimento da face humana. Se não fosse a
mão, a mandíbula, os maxilares, ou o bico, a língua e a garra atacariam diretamente os alimentos – e isto implica
violência. Quando a mão, liberta pela posição ereta, apreende os alimentos, a face, subtraída à violência,
reabsorve-se, humaniza-se e passa a funções diferentes da alimentar.
Então a face torna-se um rosto, isto é, torna-se sorriso, olhar e sobretudo palavras (aliás, o sorriso e o olhar já são,
de algum modo, palavras).
E é preciso insistir um pouco sobre a maravilha da palavra. O que é falar? E fazer brotar idéias do centro de um
conjunto sonoro que, por si, não é mais que um jogo de vibrações. Só o homem possui este poder. Falar é proferir
um conjunto organizado de sons, vogais e consoantes, formando silabas e palavras, que se vincula a um conjunto
organizado de significações. Este sistema de sons ligados a um sistema de sentidos (ou significações) varia de
país para país; é chamado de língua: a língua francesa, a inglesa ou a chinesa. O homem aprende uma língua, a
sua língua, a chamada língua “materna” e se torna daí em diante capaz de abrir-se, pela palavra, ao universo do
encontro e do diálogo. Eu disse universo, para significar que, pela palavra, o homem se universaliza, torna-se um
sujeito entre outros. Como diz o Pe. Martelet, de modo feliz: “Quando verdadeiramente nasceu a palavra, o
homem verdadeiramente transpôs o Rubicão inaugural de sua humanidade”.
O homem não poderia pensar se não falasse e só existe pensamento refletido onde há linguagem. Ora, a
linguagem é corporal. Talvez primitivamente tenha sido gestual: falava-se fazendo gestos. Pouco a pouco,
passou-se ao que se chama gesto laringo-bucal, isto é, ao gesto da laringe, da garganta e da boca. Se não
pudéssemos gesticular ou falar, não poderíamos raciocinar, nem julgar, um pouco como as perolas que se enviam
num colar, mas que correm coordenadamente.
O Pe. Valensin relatava como fora testemunha de uma cena muito interessante, no parque Tête-d’Or, em Lião.
Haviam atirado uma noz para um macaco, mas ela caíra muito longe dele. Ele arranjou uma vareta para apanhar a
noz, mas a vareta era curta. Então ele viu outra vara mais comprida, mas não a pôde apanhar, pois ela estava
longe demais. Valeu-se então da vareta curta, para apanhar a comprida, o que lhe permitiu apoderar-se da noz.
Por que o macaco não atravessa a soleira do pensamento reflexo, do pensamento humano? Porque não tem
linguagem e não a tem porque suas patas dianteiras não são livres; tem apenas mãos incipientes, não se pode
desembaraçar totalmente para gesticular, portanto para falar, e torna a cair sobre as quatro patas. O que faz o
home é a possibilidade de estar de pé, com as mãos livres; sua linguagem torna-se assim possível e, ao mesmo
tempo, verdadeiro pensamento.
O home, portanto, não é uma dupla substancia, corpo e alma, das quais uma, o corpo, acorrentaria a outra, a alma,
e a prejudicaria. O corpo em nós, não é elemento exterior, que a alma possa dispensar. O corpo, essencialmente,
faz parte do ser, Corpo e alma estão ligados um ao outro pelo próprio ato de existir, como o estão o som e o
sentido pelo ato de falar. De igual modo, a palavra é indivisivelmente som e sentido, assim como, de modo
indivisível, a existência humana é corpo e alma. A alma jamais está sem o corpo; e o corpo jamais está sem alma;
e corpo e alma jamais estão sem o mundo.
O corpo nada mais é que a própria alma, considerada no desdobramento do seu poder e energia. Esta massa de
células vivas que chamamos de corpo e que é um foco de energias, sustenta e nutre funções que, por sua vê,
desenvolvem a vida psíquica e esta, em seu cimo, expande-se em sentimentos superiores, em inteligência,
vontade e amor. O corpo é a própria expressão do espírito, e o espírito nada é independentemente desta expressão
ou manifestação. Em outros termos, o espírito não é uma grandeza separada ou separável do corpo, maus uma
energia feita corpo. Ou ainda, o que chamamos alma é o “espírito em posse do corpo”.
Tudo isto é admitido hoje; repeti-lo é arrombar portas abertas, mas é necessário repeti-lo se quisermos eliminar
essa idéia de uma imortalidade de alma sem corpo. É evidente que a alma não agem nem existe senão pelo corpo.
Para viver, é preciso comer e beber. Para construir uma civilização não basta pensá-la, é preciso construí-la à
custa de esforço corporal, faz-se necessária a mão do pedreiro, a do artista, a do cirurgião, etc. Mesmo para os
atos mais espirituais o corpo é igualmente necessário. Num livro já antigo, escrevia Jean Mouroux: Não é a
inteligência que pensa, é o homem”. Pode-se até dizer: não é o espírito que ora, é o homem inteiro. Todos os
autores espirituais insistiram no papel do corpo na oração: perguntem a todos os jovens que oram atualmente, nos
movimentos de Renovação Carismática!
�NA SOLIDÃO DA MORTE,
ENCONTRO COM O RESSUSCITADO
Visto não ser o corpo um elemento secundário, mas ser ele parte integrante de nossa identidade humana, visto ser
ele necessário ao homem para que seja homem, dever-se-ia proibir que a morte fosse considerada como o
acontecimento que liberta a alma dos entraves do corpo. Como se o corpo fosse para a alma um embaraço, um
constrangimento, para não dizer um simples invólucro ou prisão! N]ao admito uma frase como esta: “Na morte é
que o espírito, afinal, começa a ser”. Tal frase significa ser o corpo a doença do espírito. Dizer que chegará um
dia em que o espírito estará liberto deste mal é uma esperança viciada, é otimismo infantil.
Por que a morte?
Mais vale olhar para as coisas bem de frente e dizer, num primeiro tempo: a morte é humanamente angustiante,
escandalosa ou, segundo pensava Albert Camus, um absurdo. A morte não é um drama entre outros, é O Drama
integral, irreversível, ousemos dizer, o drama absoluto. A morte destrói a existência humana pela raiz. Não e
bom, não é saudável que este primeiro tempo passe por um curto-circuito; não se pode fazer isto senão
desvalorizando indevidamente o corpo e finalmente relegando ao plano mítico, ou pelo menos ao das crenças
muito secundarias, o dogma da ressurreição da carne.
Se a morte é angustiante, escandalosa e absurda, como pensar que Deus, sobretudo um Deus que acreditamos ser
todo Amor, consente que a criatura (que, dizemos nós, criou por Amor) conheça tal desastre? É por ser pecador
que o homem deve morrer? O fato de morrer, ou antes, de acabar, não provém do pecado. O que provém do
pecado, o que é “salário do pecado” (Rm. 6,23), é a morte enquanto desenraizamento terrificante. A morte,
porém, enquanto tal, enquanto fim, é muito simplesmente o termo de nossa finitude. Um ponto pacifico. O que é
deus quer que o homem seja alguém, alguém para Ele, alguém perante Ele. Ele me quer sujeito, pessoa. Isso não
possível a não ser que eu seja diferente dele, isto é, se eu não for Deus.
Isto é elementar, mas sempre se tende a olvidá-lo: vocês não são alguém para mim, a não ser que sejam diferentes
de mim. Ora, por ser Deus infinito, é preciso que a criatura seja finita. Do contrário, ela não seria alguém, mas
emanação da divindade, como o rio é emanação da fonte e não é verdadeiramente o outro da fonte. Ora, não há
finito sem fim; o fato de ter de findar – ainda uma verdade aceita por todos – é o sinal de nossa finitude. Não sou
Deus infinito, logo sou finito, mortal.
Poderão talvez dizer-me: Deus, porém, é Todo Poderoso! Não poderia Ele fazer o homem livre da finitude?
Desde que Deus é perfeito, não poderia ter feito o homem tão perfeito quanto Ele? Entendo que tal idéia lhes
atravesse o espírito: é normal, dado não se tratar de um pormenor de nossa vida, mas dessa coisa terrível e
escandalosa que é a morte. Entre as muitas respostas que nos arrastariam para um plano metafísico, recordo esta
simples reflexão: o poder de Deus é o Poder do Amor. Ora, o Amor quer que o outro seja verdadeiramente outro,
n]ao um reflexo de si. Um homem dirá à mulher que ama: não quero que sejas um reflexo meu. Ele lhe dirá,
quero que sejas “tu”, outra que não eu, plenamente tu e plenamente outra, distinta de mim. O amor quer que o
outro não seja criado já pronto. Um ente criado que fosse perfeito não seria um ente que se cria a si mesmo. Seria
uma criatura maravilhosa talvez, mas nunca criadora de si mesma.
Portanto, talvez seja a seriedade do amor criador que exija de Deus a criação de outro, absolutamente outro em
relação a ele: uma criatura criadora de si e do mundo. Por ser amor, Deus cria um não-Deus, um ser finito que,
pela natureza, deve findar. Diremos que, prevendo as dores que a finitude implica, Deus deveria ter-se proibido
de criar? Eis o que pensam muitos, que não perdoam Deus haver criado um mundo no qual a finitude engendra
tantos desastres e sofrimentos. É verdade que a criação, para Deus, é uma aventura. Não temo dizer que, ao criar,
Deus aventurou-se, no sentido de que Ele não recua diante do drama que resultará da criação de seres livres e
finitos. Aventura, drama, risco, são palavras que dizem algo de verdade. Drama para nós, mas para Deus também;
eis porque creio, contrariamente ao que muitos pretendem, que há em Deus ma sorte de sofrimento.
O sofrimento de Deus
�Deus é Amor e o Amor é, necessariamente, vulnerável. O que enraivece o nosso mundo (o termo é de Jacques
Maritain) é imaginar um Deus que paira por sobre o sofrimento humano, numa espécie de serenidade
perfeitamente olímpica; um pouco como uma mulher que dissesse: sei que meus filhos sofrem muito, mas sou tão
feliz que o sofrimento de meus filhos não me atinge. Se ouvíssemos isso de qualquer mulher, diríamos que sua
felicidade é monstruosa. Mas nós o aceitamos com a maior boa vontade quando se trata do Deus que imaginamos
como uma espécie de Júpiter, por sobre nuvens, intocado pelo sofrimento humano, encerrado em sua indefectível
serenidade. “Se as pessoas soubessem que deus sofre conosco e muito mais que nós, como todo o mal que
devasta a terra, muitas coisas, sem dúvida, mudariam, e muitas almas seriam libertadas”, dizia-nos Jacques
Maritain. Se Deus poupasse ao homem o sofrimento, Ele se pouparia igualmente a si mesmo, mas nós teríamos
sido criados já prontos.
Eternamente, Deus prevê a angústia humana diante da morte. Mas, segundo a fé cristã, a um tempo abole o
escândalo dessa angústia. No próprio ato de criar o homem mortal, cria a superação da morte pela ressurreição.
Rompe o círculo da mortalidade no próprio ato de criar.
Dirão vocês: isso não é um jogo? Por que, num mesmo ato, romper o que foi estabelecido? Não seria mais divino
não o estabelecer e criar o homem imortal? Eis-nos no centro do mistério do amor: em vez de nos subtrair à morte
por um ato prodigioso, eu diria: por meio de magia (pelo qual o homem não teria sido respeitado e Deus nada
haveria arriscado, nem por Ele nem por nós), Ele decide entrar eternamente na nossa finitude e dela participar.
Para dizer de outro modo, Ele decide morrer a si mesmo. .
É num mesmo ato que Deus cria e se encarna. Num mesmo tempo (embora a palavra “tempo” não seja adequada,
dever-se-ia dizer “numa mesma eternidade”), o infinito cria o finito e torna-se finito para introduzir o finito na via
do infinito. Faz-se homem para que o homem seja feito Deus, segundo o tradicional adágio. Deus não quer nem
pode criar deuses, mas Ele os cria capazes de criar a si próprios e faz-se homem para que e a historia deságüe na
divinização.
É preciso eliminar o pensamento, um pouco infantil, segundo o qual teria havido primeiro a criação (no princípio)
e depois a encarnação. A criação não está no começo, ela se processa agora, e se é certo que o Cristo surgiu no
centro da história (o Natal é historicamente datado), Ele preexiste eternamente em Deus. Releiam o início da
Epístola aos Efésios e da Epístola aos Colossenses, onde Paulo insiste: “Deus é indivisivelmente Criador e
Encarnado”. Ele declara explicitamente que o Cristo é o “Primogênito de toda criatura”. Creio firmemente que do
ponto de vista de Deus, não se pode pensar a criação independentemente da Encarnação. Deus, segundo Teilhard
de Chardin, torna-se o homem que Ele cria. Esta frase é inesquecível!
No jardim do Getsêmani, o Cristo tremeu, angustiou-se, teve medo: todas estas palavras figuram no Evangelho.
Precisamente, e eu me arriscaria a dizer: felizmente para nós! Se Deus se encarna, não é para pairar sobre nossa
angústia, é para vivê-la, a fim de que, tornando-se angústia de Deus (atenção a isso: nossa angústia humana diante
da morte torna-se do próprio Deus!), seja transformada. Não supressa (reincidiríamos na magia), mas
transformada: a morte, assumida com tudo o que comporta de aflição, angústia e solidão torna-se o portal da
ressurreição.
A ressurreição começa com a morte,
Mas será plena apenas no fim dos tempos
Aquele a quem Paulo chama “o Primogênito de toda criatura” será chamado no Apocalipse de “o Primogênito
dos mortos” (1,5), Primeiro Vivo entre todos os que morreram e morrerão. A morte continua a ser um fim
(impossível ser de outro modo), mas fim de uma forma de vida e passagem para outra, a do próprio Deus.
Ao transpor o limiar da morte, encontramos o Cristo ressuscitado. Como podemos representar isto? A rigor, não o
podemos. A certeza de nossa fé não suprime a profunda obscuridade em que permanecemos sobre o que é, em si
próprio, o Cristo ressuscitado, pois vivemos num mundo submetido à morte. Não podemos imaginar o que é a
Vida além da morte, a Vida, plenamente Vida, ou o que é o mesmo, o Amor todo Amor.
O que em mim ressuscita, o que começa a ressuscitar exatamente a partir da morte, é minha relação com os
outros e com o mundo (com os outros: pais parentes, amigos; com o mundo: com tudo o que meu corpo alcança
pelo trabalho, pela arte, pela cultura, pelo lazer). Esta relação com os outros e com o mundo (minha vida) é que
ressuscita com um poder, uma intensidade propriamente divinos, provenientes de um outro – do Cristo vivo -,
mas experimentados como se fossem meus.
Minha alegria é a alegria do amor: a felicidade vem a mim de outro – daquele a quem amo -, esta é a minha
felicidade. Se eu te amo, és a minha alegria, não quero provar alegria senão a que me vem de ti, de outro modo
não te diria que te amo. Minha alegria és tu. Para o homem, no seu corpo e na sua alma, esse é um novo modo de
existir. No corpo, é certo, visto que pelo corpo o homem entra em relação com os outros e com o mundo. É
�certamente uma ressurreição, visto ter sido necessário passar pela absoluta solidão da morte, onde nada mais
havia.
Esta ressurreição começa a partir da morte (não há sala de espera onde a alma, separada do corpo, aguarda o fim
do mundo para recuperar o corpo!), mas não será total senão no fim dos tempos, pois eu não sou
verdadeiramente eu senão em companhia de todos os meus irmãos. Para falar como o catecismo elementar, só no
fim do mundo todos os homens estarão no céu.
Para que a bem aventurança celeste seja a bem aventurança co amor todo amor, é preciso desapropriar-nos
absolutamente de nós próprios (absolutamente no sentido estrio, na mesma acepção de solidão absoluta). O poder
que anima o Cristo ressuscitado é um poder no qual nada há de estranho ao amor. É preciso que nada seja para
que o ser amado seja tudo. Pensem na expressão radiante do rosto de uma mulher muito amada, num mundo no
qual nada me distrairia dela e onde toda minha vida viesse dela (comparação imprecisa, como toda comparação
em tal âmbito!).
O Cristo ressuscitado será tudo para mim, mas todos os meus irmãos são membros do Cristo. O Cristo não pode
ser separado dos membros de seu Corpo: como querem que eu encontre o Cristo, que é a Cabeça, sem em” É
preciso ser absolutamente sincero: “Decerto, senhor, pois a senhora se constitui pela relação com seus filhos”. A
isto chamei de corpo, é essa a sua história e ela ressuscitará em Cristo: que somos nós sem os seres que amamos?
NOSSO CORPO ATUAL
NÃO É PLNAMENTE CORPO
Não fosse a vocação humana participar da própria vida de Deus e não haveria ressurreição da carne. A
divinização do homem é que permite a subsistência do corpo. Isto é o mesmo que dizer que, dos três aspectos de
nossa bem aventurança necessários para que ela seja uma bem aventurança humana, o aspecto divino situa-se na
raiz e no principio dos outros dois. Agora somos divinizados em germe. Que acontecerá quando, depois da morte,
formos divinizados em plenitude, “semelhantes a Deus” (1Jo 3,2)? Tudo está nesta frase: o espírito, quando
possuído por Deus, possui totalmente seu corpo.
Bem sabemos que não possuímos totalmente nosso corpo, parte dele nos escapa. Se eu estiver com uma violenta
enxaqueca, não contem comigo para uma conferência interessante. Se estou em Paris, não estou em Lião. O
zumbido de uma mosca, segundo Pascal, faz com que o grande filósofo não possa pensar. Pelo corpo os esposos
comungam no amor, mas o corpo é que impede a plenitude de sua união (este é, aliás, o sofrimento do amor). É
dizer que o corpo não é perfeitamente corpo, mas apenas parcialmente instrumento de ação e comunicação. Será
verdadeiramente corpo quando não for mais obstáculo. E quando digo corpo, não esqueçam que se trata do
universo inteiro, inseparável do corpo.
A rigor, só o cristianismo ensina a divinização. Não só a ensina: é o próprio ensinamento. Aí está todo o
cristianismo. Nas palavras de Guardini: “O cristianismo é o único a ousar situar um corpo de homem em pleno
coração de Deus”. Isto é prodigioso, não é? Evidentemente, não nosso corpo enquanto agregado de células
biológicas. Pouco estou ligando para a recuperação dos meus artelhos ou do meu pâncreas para a eternidade.
Assim, ao comer o corpo do Cristo ressuscitado, não são células biológicas que comemos (isto talvez não seja
evidente para todo mundo, pois ainda há quem nos rotule de antropófagos!).
Aliás, é neste sentido que o Evangelho nos diz que os “eleitos serão como anjos no céu” (Mt. 22,30), isto é, que
sua realidade corporal será totalmente nova. Mas, acima de tudo, não digamos que o corpo se tornará espírito;
seria o mais radical dos contra-sensos! Permaneceremos homes. O corpo não se torna espírito, será mais corpo
que nunca, virá a ser plenamente corpo.
Paul afirma que o corpo ressuscitado é “corpo espiritual” (1Cor. 15,42), mas não filosofia. Inútil buscar a
representação do que é tal corpo: vocês serão orientados em direção a não sei que gás luminoso (Nietzsche falava
de um grande vertebrado gasoso!). Isto me faz pensar num espirituoso repente de Claudel, a quem pediam uma
conferencia sobre a Trindade e ele, como nesse dia estava de muito mau humor, respondeu: “Querem projeções?”
É preciso renunciar à imaginação e para o homem esta renúncia não é das menos mortificantes, embora
indispensável: a vida cristã não pode ser vivida no reino do imaginário. As reflexões que aqui proponho não têm
outro escopo, Notem que são apenas opiniões teológicas: do ponto de vista doutrinário, a Igreja é extremamente
sóbria, ela nos diz que “ressuscitaremos em corpo e alma”, e isso é tudo.
�O “corpo espiritual” é um corpo de liberdade
O corpo espiritual é a expressão do homem que atingiu a liberdade. Tornar-se homem livre é morrer para tudo o
que não é amor e caridade. O homem torna-se livre quando é capaz de afrontar a morte _ a morte do egoísmo sob
todas as suas formas: tranqüilidade, conforto, privilégios, consentimento às insolentes desigualdades do mundo.
O homem é livre quando, ativamente, morre para tudo isso e trabalha a fim de não se tornar escravo de si. Eu
disse: ativamente, isto é, afirmando-se por meio de atos livres, tomando decisões, pequenas ou grandes, que
fazem advir, dia a dia, uma liberdade maior. “A morte, apenas sofrida, é pura destruição. Um corpo surrado por
pancadas não produz um dançarino, mesmo quando, para tornar-se dançarino fosse necessário consentir em
suportar mais flexões o que jamais exigiria a mais severa das correções.
Consentir. Só a morte, como sacrifício voluntário, pode levar ao acesso ao universo da ressurreição, assim como
o mais rigoroso dos treinamentos proporciona acesso ao universo da dança. Ora, “o único que morreu em
sacrifício voluntário é o Cristo.”
Todos os atos da vida de Cristo foram atos de amor. Ele não se entregou parcialmente em tais atos, à exclusão dos
outros. No rigor do termo, Ele deu a vida, ao longo da vida toda, sem jamais retomá-la para si. Portanto, Ele
morreu para todo os limites que constituem o homem e para todos os pecados que o prendem a esses limites.
Morte cotidiana, plenamente voluntaria, que é se atuo verdadeiro, o conjunto de atos praticados por ele. A morte
de Cristo – compreendamos bem isto -, a morte constituída por cada um de seus atos, ao longo de toda sua vida, e
a morte final na cruz – eis o ato perfeito de uma liberdade humana, expressão perfeita, num homem, da liberdade
o próprio Deus.
Esse homem de carne e sangue a quem chamamos Jesus passa integralmente em sua liberdade ao ato de liberdade
pelo qual se entrega. Podemos dizer, de novo equivalente: Jesus, ou o homem inteiramente livre. Se tomarmos ao
pé da letra a palavra “integralmente”, será uma verdade evidente dizer que Ele é livre sem amarras.. É dizer que
está vivo sem resíduo, ou que morrendo ressuscita. “Não conheceu a corrupção” (At. 2,31). Se a morte de Jesus
houvesse sido natural, meramente suportada, o sepulcro não estaria vazio: haveria um resíduo entregue à
destruição pura e simples. Mas se a morte de Jesus é a vida que Ele deu, ela é, então, a Vida sem mais, pois a vida
não é verdadeiramente Vida senão quando dada, pois Ser e Amar é a mesma coisa. Deus é Amor, a Vida é Amor.
Em Jesus a morte é a perfeita expressão da Vida. O corpo morto de Jesus é a própria Vida, a realização e, por isso
mesmo, a revelação da liberdade. Ele é um homem livre e não existe liberdade nos sepulcros, neles só pode haver
resíduos. Nada do que Jesus foi tornou-se pó: o sepulcro está vazio.
Em nós há lago diferente do amor, diferente da liberdade. Somos escravos de tanta coisa! Expressamos isto
reconhecendo que somos pecadores. Há, portanto, em nós algo diferente da Vida. O contrário da vida, a morte,
nós a trazemos em nós ao longo de toda existência terrestre. A morte está no interior de cada uma de nossas
decisões egoístas. Essa morte é a recusa à vida voluntaria, é a morte suportada. É a parte da energia nascida em
nosso corpo, aquela que não passou aos atos de verdadeira liberdade, que não foi transformada em energia de
amor ou de morte voluntária. É preciso pronunciar a palavra que expressa serem a morte voluntaria e o amor a
mesma coisa: a palavra “sacrifício”. A energia que se eleva de meu ser de carne e sangue, se não vê a ser, no
plano de meu ser espiritual (de minha liberdade), sacrifício, está destinada à decrepitude: é um resíduo que só
pode tornar-se pó. Ora, não se deve tentar imaginar o que pode ser a ressurreição de um resíduo da decrepitude:
isso não existe.
Em suma: pode-se morrer de decrepitude, ou, como se diz, no cumprimento do dever. Morrer de decrepitude é
fatalidade da natureza, morrer no cumprimento do dever é um holocausto (sacrifício total de si) voluntario. Na
realidade, todo ser humano, à exceção de Cristo e de sua mãe, morre, a um tempo, de decrepitude e de
holocausto, de morte sofrida e de morte voluntaria. O sepulcro de Cristo está vazio porque nele tudo foi
holocausto, ato de amor, dom voluntário de si. Nossos sepulcros não estão vazios porque em nós, nem tudo é
holocausto, ato de amor, dom voluntario de nós mesmos; nosso tumulo é o sinal, para todos os que neles vêm
depositar flores, de que somos pobres pecadores.
Graças a Deus, porem, há em nós vida verdadeira. Houve amor verdadeiro em nossa vida: trabalhamos e não
visamos, no trabalho, unicamente ao lucro individual ou familiar; nós nos demos, cumprimos uma tarefa,
morremos de certo modo, no cumprimento do dever. Há, portanto, uma parte de nós que ressuscita. Não somos
apenas resíduo. Se fossemos apenas isso, seria o inferno, um movimento de destruição eternamente perseguido e
jamais atingido.
Dizia eu que não é possível representar um corpo espiritual, um corpo de liberdade. O pe. Pousset propõe a
seguinte comparação: “Há sementes e carvalhos. Quem só viu as sementes não pode imaginar um carvalho. Não
podemos representar nosso corpo de ressurreição. Mas quem vê um carvalho não deve perguntar sob que forma
particular a semente nele subsiste; ela não subsiste de outro modo a ao ser como carvalho”. Paulo diz algo
parecido: “... semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de
�glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual (1Cor.
15,42).
Permanência eterna e divinizada de todo homem e do universo todo
Em nossa vida ressuscitada, veremos a Deus em tudo e tudo em Deus. verei a Deus em tudo, pois este mundo,
que desde já eu amo tanto, pelo qual me apaixono (a imensidade das planícies, dos mares, das estrelas e
montanhas – na qual pensava ao contemplar a soberba cadeia dos pireneus – e, acima de tudo, a comunidade
humana, ainda mais bela e emocionante que toda beleza natural), em suma, este mundo surgirá para mim tal qual
ao sair das mãos divinas, criado eternamente por Deus, em seu ser, tal qual é – uma participação no próprio ser de
Deus. O mundo inteiro será transparente aos meus olhos e, através da transparência, verei a Deus. Tentem
imaginar o que seria este mundo se, através do amor humano, de uma amizade ou mesmo do companheirismo
humano, pudéssemos ver a Deus! Deus em tudo.
E, ao mesmo tempo, em minha consciência, em minha consciência de homem divinizado, eu veria tudo em Deus:
todo o universo seria meu. O universo, efetivamente, não é separável de Deus, pois Deus o cria eternamente.
Portanto, tudo em Deus. E estes dois quadros – Deus em tudo e tudo em Deus – se ajustarão exatamente.
Também se pode pensar que, em nossa vida ressuscitada, tudo o que há de bom, de belo e de verdadeiro na
existência terrestre há de subsistir. }Todo trabalho realizado pela paz, pela justiça e pela beleza, a cultura, toda
obra executada em canteiros humanos, tudo será imortal. Pois meu corpo, afinal, é tudo isto. Posso dizer que meu
corpo é minha historia, a partir de uma natureza: minha natureza é masculina, não feminina; sou Frances, não sou
esquimó, etc. Tais são as raízes do meu ser e, a partir delas, tenho toda uma historia: minha educação, meus
estudos, meu ingresso no noviciado, minhas relações de camaradagem e amizade, meu trabalho, os fatos da vida
social e política, o momento que passo com vocês, eis afinal tudo o que constitui meu corpo e é isso que
ressuscita. Minha história constrói meu rosto eterno. Como imaginar uma imensa rosácea, na qual haveria bilhões
e bilhões de rostos humanos, mas não existem dois absolutamente idênticos, desde as origens e provavelmente até
fim dos tempos. Esta prodigiosa diversidade de rostos simboliza e significa a diversidade, ainda mais prodigiosa,
das almas, das profundezas. Sou eternamente diferente de vocês todos e cada um de vocês é ternamente diferente
dos demais. O que faz a diferença, ou antes, essa cor, esse azul, esse verde ou esse vermelho único que vocês
serão na rosácea eterna são todas as decisões tomadas dia após dia, com a condição de elas serem decisões de
caridade, de amor, de justiça e mesmo de elementar honestidade. Mesmo aquilo que tenha sido feito por ímpios e,
com mais razão, pelos descrentes que não são ímpios, por exemplo, pelo bilhão de chineses que jamais ouviram
falar de Jesus Cristo, na media em que for bom e belo, tudo isto encontrarei transposto no Reino dos Céus, na
Jerusalém celeste d que fala o Apocalipse.
Construímos, portanto, ao longo dos séculos, a nossa vida eterna; e isto em meio às nossas escaladas, subidas e
descidas: é o mesmo que dizer que a bem aventurança de um brasileiro nãos era a mesma de um chinês e que a de
um homem casado não seria igual à de um solteiro, mas que o brasileiro terá parte na bem aventurança do chinês,
que a do solteiro terá parte na do homem casado, e vice versa. Pois a historia de um brasileiro casado, no século
XX, não é igual à de um chinês do século XV. Ora, é todo o homem de todo homem que ressuscita, no sentido
de a caridade, numa energia corporal que tem suas particularidades, que passou por relacionamentos de
parentesco, de camaradagem, de amor e de amizade, próprias a cada um. Tudo ressuscita, exceto o qeu ficou
aquém do amor, exceto o pecado e o egoísmo. Eis porque poderei concluir com uma fórmula que tudo resume: a
vida eterna é a eterna permanência, espiritualizada, divinizada de todo o homem e de todo o universo.
Nota 1:
O AVESSO DA DIVINIZAÇÃO: O INFERNO
Tão grande é o mal estar, para não dizer o constrangimento, dos cristãos diante daquilo que o catecismo designa
como inferno que, praticamente, cessaram de falar nele, salvo raríssimas exceções. O silêncio talvez valha mais
�que explicações, que prolongariam velhos e tenazes mal entendidos. Fazemos bem em calar-nos, quando não
somos capazes de fazer compreender que a negação pura e simples do inferno conduz definitivamente, senão à
negação de Deus e do homem, pelo menos à mutilação de Deus, do homem e do Amor.
Adianto aqui algo que, à primeira abordagem, é um violento paradoxo. Mais exatamente: é preciso afrontar o
paradoxo que é a estreita ligação do amor e do inferno. Se houvesse tempo para desenvolver pormenorizadamente
este paradoxo, poder-se ia mostrar que a eventualidade da danação – eu disse eventualidade e não realidade, pois
nos é impossível afirmar que a danação seja uma realidade – é necessária para que se compreenda:
- o mistério de nossa vocação a viver eternamente a Vida divina (é evidente que, fora do mistério de nossa
divinização, a eventualidade de uma danação é absurda);
- a seriedade ou gravidade do Amor (trata-se do Amor de Deus por nós ou do Amor que Ele nos concede sentir
por Ele);
- a dimensão absoluta dos atos que nossa liberdade situa no tempo, portando do próprio tempo que nos é dado
para os situar;
- a verdadeira natureza da esperança e no que está a ela ligada, embora esteja separada das múltiplas esperanças
humanas. De tal sorte que uma meditação sobre o inferno deve desembocar num hino à esperança.
O INFERNO NA BÍBLIA
O vocabulário menciona infernos e o inferno. Dizemos: Cristo desceu aos infernos, por um lado; e o condenado
desce para o inferno, por outro. Se a palavra é a mesma, quando se trata de dois destinos diferentes, mas se
subsiste a diferença do singular e do plural, não é por acaso nem tampouco por aproximação arbitrária.
Ao contrário, há uma lógica profunda e a expressão de uma verdade capital. Os infernos, como o inferno, são o
reino da morte. Sem o Cristo, não haveria no mundo senão um só inferno e uma só morte, a morte eterna, a morte
em plena posse de todo o seu poder, a morte do ser finito encerrado em sua finitude, à qual se pode chamar
círculo da mortalidade.
Se existe uma “segunda morte”, para nos expressarmos como no Apocalipse (21,8), separável da primeira e à
qual chamamos inferno, é que o Cristo, pela sua morte, derrubou o reinado da morte. É porque o Cristo desceu
aos infernos, que os infernos não são mais o inferno, e que há duas mortes.
“Infernos” no plural, é a tradução da palavra hebraica sheol (o equivalente do grego Hades, Aidès, lugar onde
nada se vê). Para os judeus, o sheol era o “ponto de encontro de todos os viventes” (Jó 30,3). Como tantos outros
povos, eles imaginam a sobrevida como uma sombra de existência, sem valor e sem alegria, algo mais próximo
ao nada que do ser. O sheol era “uma terra sob a nossa, um lugar de trevas, de pó e de lama, para onde os mortos
descem nus e de onde nunca mais se emerge e nos reunimos a nossos pais (exatamente: como fazemos com
nossos pais) e onde se leva a pálida e diminuída vida das sombras, vida nada invejável, da qual Deus está
ausente”. Este é o sheol, ou o hades, os infernos.
Dizer que o Cristo desceu aos infernos (artigo do Credo) é dizer, em primeiro lugar, que Ele está realmente
morto. E se Deus, pela ressurreição, o livrou do sheol, como diz Pedro (At. 2,24), primeiro o fez imergir nele. O
Cristo conheceu a solidão da morte, solidão radical, aquela junto à qual todas as demais solidões do mundo não
passam de aproximação de solidão; Ele conheceu o abandono total, a derrelição.
O inferno da solidão absoluta
O drama da nossa existência é que bem no fundo, no mais íntimo de si, o homem está só. Não pode suportar a
solidão e por isso a dissimula, mascara-a. Está só e não foi feito para estar só. Como o próprio Deus, que é
Trindade, comunidade de Três Pessoas, o homem é um ser-com. Quem apagar “com”, apagara igualmente ser.
Precisa estar com outro ou com outros e ser só, eis a contradição. E esta contradição vivida é a angústia. É a
angústia da solidão, sempre relativa, dessa vida que, só ela, nos pode dar uma vaga idéia do que é a solidão da
morte.
Ratzinger evoca “o menino que deve passar sozinho, à noite, por uma floresta escura. Ele tem medo, embora
tenham-lhe demonstrado do modo mais convincente que não tem absolutamente nada a temer. No momento em
que está só dentro da noite e experimenta a solidão de modo radical, declara-se o medo, o medo verdadeiro, que
não é o medo de algo, mas o medo em si. O medo diante de determinado objeto é, no fundo, anódino, pode ser
�banido, basta fazer com que desapareça o objeto que o provoca. Se alguém teme um cão feroz, tudo se arranja se
o cão feroz for amarrado”.
O medo gerado pela solidão é algo muito diferente e bem mais profundo. Não se trata mais de ameaça exterior
suscetível de ser neutralizada. Nada há a neutralizar, pois se trata de nossa própria existência, da contradição
desta nossa existência.
A angústia da solidão só pode ser superada pela presença de um ser que ama: de uma mão que se estende, de uma
voz que diz: “Tu”. Neste mundo, seja qual for nossa situação e nossa idade, há sempre a possibilidade de uma
mão, de uma voz, de um tu. Há, porem, uma solidão na qual voz alguma pode penetrar, solidão que Mao alguma
pode atingir, é a solidão absoluta, a angústia absoluta daquele que não foi feito para estar só e que está
definitivamente só. A esta solidão e a esta angústia é que chamamos “inferno”.
Muitos de nossos contemporâneos na literatura, no teatro e no cinema, apresentaram ao público o tema da
solidão. Recordem os filmes de Antonioni: todos os encontros são superficiais, não é permitido a ninguém neste
mundo ter acesso à profundidade do outro. A verdadeira comunicação, no companheirismo, na amizade e no
amor, é impossível. Todo encontro, embora na aparência muito belo, não faz mais que anestesiar a incurável
chaga da solidão. Vê-se nisso um negro pessimismo, pois é o mesmo que declarar que o homem traz em si o
inferno e que isso é coisa tão terrível que ele se agarra seja lá ao que for, para escapar a essa realidade; e tem às
vezes a ilusão de o conseguir, mas na realidade jamais conseguirá.
Qualquer que seja a forma assumida pela solidão no decorrer da vida, há uma solidão inelutável, a da morte.
Morre-se sempre só. A morte é porta pela qual só se passa em solidão. E todo o medo do mundo concentra-se no
fundo do medo dessa solidão. Eis porque o Antigo Testamento tem apenas uma palavra para designar inferno e
morte, a palavra sheol. A morte é a solidão, sem mais. Ora, acreditamos que Jesus cristo morreu. O inferno é a
solidão que o amor não pode penetrar. Ora, acreditamos que Jesus cristo desceu aos infernos. Se passou pela
porta de nossa solidão última, se entrou no abismo de nossa derrelição absoluta, devemos admitir que lá onde
mão nenhuma, voz nenhuma, e nenhum “tu” podiam penetrar, está Jesus Cristo. O inferno, na media em que era
idêntico à morte, foi superado.
Em outras palavras, a morte, que era antes o inferno, não é mais o inferno. Há vida no coração da morte: essa
vida é Jesus Cristo. No coração da morte há Amor: Jesus Cristo é o Amor, o “Tu” absoluto, isto é, aquele que não
se pode tornar um “Ele” (alguém de quem se fala), mas que é aquele que fala e a quem falamos.
O inferno, doravante, é outra coisa. É uma “segunda morte , não é mais a morte sem predicado, mas a morte
eventual daqueles que a tal ponto se curvaram sobre o próprio umbigo, no egoísmo que já não se podem abrir ao
Amor. Se há uma Mao estendida não a vêem; se uma voz ressoa, não a ouvem; se um “tu” se oferece, tomam-no
por “ele”, isto é, por um ser estranho. São literalmente – mas é preciso aqui ponderar as palavras, demasiado
impróprias – estranhos a tudo; digamos em linguagem moderna, alienados.
O Antigo Testamento, ainda assim, havia pressentido uma distinção entre morte e inferno. Os judeus tinham uma
só palavra para os dois, mas multiplicavam imagens e comparações, a fim de expressar o que é a morte do egoísta
inveterado, a morte daquele que se deixou tomar inteiramente pelo egoísmo: imagens de enxofre e fogo, da
devastação no vale da Geena, do pulular de vermes, expressado as imagens da infecundidade e esterilidade, de
refugo e desvalor, de corrupção, etc. Lançaram por meio desta multiplicidade de imagens as bases daquilo que
mais tarde a Igreja definiria dogmaticamente, no plano da reflexão. É esta passagem da Escritura, figurada pelo
dogma formulado pela Igreja que devemos operar. Não devemos atirar as imagens pela janela, dizendo que se
trata de infantilismo, mas não devemos tampouco nos emaranhar nelas. E, a partir dos enunciados dogmáticos
que a Igreja nos propõe, devemos simplesmente exercitar a reflexão, como homens inteligentes.
REFLEXÃO TEOLÓGICA
O cristão deve se esforçar para ler corretamente a Bíblia (o Antigo e o Novo Testamento), mas não deve ser
fundamentalista, isto é, ater-se a uma leitura literal do Evangelho. Contudo, não lhe será permitido compor
trechos da Bíblia aleatoriamente, dos quais reteria o que lhe agrada e desprezaria o que o constrange. A partir de
todos os textos bíblicos, mesmo os mais difíceis, é que deve ser conduzida a reflexão teológica.
A eventualidade do inferno:
Condição da grandeza de nossa liberdade
�Tornemos a dizer que o essencial no cristianismo é a Revelação de um Deus todo Amor. Acrescentemos porem,
imediatamente, que não nos devemos gabar apressadamente de saber o que é o Amor quando vivido pelo Ser
infinito. Creio que é preciso toda uma vida, rica em experiência, para chegar a compreender um pouco o que é e o
que o Amor implica. Em todo caso, se surgisse um ponto qualquer da doutrina cristã, destituído de vínculo com o
Amor, ou contradizendo o Amor, ou não sendo condição ou conseqüência do Amor, teríamos o direito de rejeitálo.
Mas isto é impossível, pois ser cristão é crer na impossibilidade de qualquer ponto da doutrina cristã ser isento de
vínculo com o amor. E toda a reflexão teológica consiste em toar consciência da vinculação lógica entre o ]Amor
e cada um dos pontos da doutrina.
À primeira vista, se Deus é Amor, o inferno deveria ser impossível. Ser cristão não é crer primeiramente no
inferno, é crer em Cristo e esperar, se for o caso, que seja impossível existir inferno para os homens, conforme
nos diz o teólogo J. Ratzinger. Noto, em conseqüência – e é importante – que se alguém diz que o inferno existe,
está se gabando de uma informação de que os cristãos absolutamente não dispõem.
O inferno não existe, como existe, no centro de Guadalupe, um vulcão chamado Soufrière. A reflexão a partir de
imagens bíblica conduz a conceber o inferno, não como um lugar (do que evidentemente é preciso dizer se existe
ou não existe), mas como um estado, uma situação. Se quando a isto há equivoco, digamos, em vez de inferno,
“condenação”, “estado de condenação”. Só há inferno se houver condenados. Não há inferno que exista
independentemente do estado de perdição.
Ora, não sabemos se há ou se haverá condenados. Nem temos de pedir a Deus que nos informe a respeito disto. E
esperamos, não podemos deixar de esperar que não existam. Às vezes temos a impressão de que há quem se
aborreça por não podermos afirmar haver condenados; há quem queira, absolutamente, que eles existam.
Passaram-me bilhetes em que, supostamente em nome de Agostinho, João Crisóstomo e Irineu, afirmava-se,
estribado na tradição cristã, ser o numero dos eleitos inferior ao dos condenados. Isso é espantoso! Confesso que
muito me custou conservar a calma.
Oro por todos os homens, sem exceção, inclusive por Judas, inclusive pelos que foram monstros na face do
universo, por Hitler, por Stalin (e ninguém me obrigará a não rezar por eles), pois espero a sua salvação. Se não a
esperasse , não rezaria. Isto é o principal: a fé em Deus, que é todo Amor e esperança de salvação universal (diz
bem a Liturgia Eucarística: “Oferecer o sacrifício de toda Igreja pela salvação do mundo”).
Mas esta fé e esta esperança implicam, precisamente, que esse amor com que os homens são amados seja um
amor levado a sério. Que é um Amor levado a sério: É um amor que não anula a liberdade humana, que, antes de
tudo, a fundamenta. Este Amor não seria Amor se manipulasse a liberdade, com vistas a obter reciprocidade.
Conseguimos reciprocidade de nossos filhos, enquanto pequeninos. Obtemos deles, talvez uma carícia, um beijo,
o fim de um amuo. Mas são garotos, e Deus não nos trata como a garotos. Ao dizer: “Te obrigarei a amar”. O
Amor deixa de ser Amor. Ninguém pode ser obrigado a amar. Constranger a amar não é Amor.
Num livro admirável, Jean Lacroix escreveu uma frase, talvez uma das mais profundas escritas durante estes
últimos anos: “Amar é prometer e prometer a si mesmo jamais usar de força para com o ser amado. É recusar
toda força, é expor-se à recusa, à incompreensão, à infidelidade”. Há múltiplas forças, sempre mais ou menos
utilizadas no Amor humano, desde a pressão pela sedução, cujo procedimento é anódino, até a violência abjeta. A
faceirice, a lisonja e a mentira são os vermes ocultos na beleza do fruto oferecido. E há outras formas de violação,
sejam ou não camufladas.
Em Deus, nada disso existe. Em Deus o Amor é todo Amor. Portanto é um Amor que a si mesmo proíbe
absolutamente o uso do poder. É um Amor verdadeiramente doado, o que implica que será um Amor acolhido.
Mas quem garantirá que um amor doado ou oferecido não venha a ser um amor livremente rejeitado? Quem
pretender que tal garantia exista, dirá que não existe mais Amor. Pois garantia igual a esta só pode ser encontrada
no uso do poder. A única garantia possível seria Deus obrigar-nos ao Amor.
Na realidade a recusa do Amor é algo de propriamente assustador. Situa-se no limite do pensável. Ou, se
preferem, só e pensável como um limite. Em contrapartida, o que está além do pensável, além de todos os limites,
é que Deus possa deixar de Amar. Não existem os mal amados de Deus. Mas tal é a liberdade do homem – o que
aliás, constitui a sua grandeza – que o Amor incondicionalmente oferecido pode ser incondicionalmente
recusado.
Se vocês acharem impossível o homem comprometer com um egoísmo consciente e obstinado o mais profundo
de si, estarão diminuindo o homem, mais ou menos nas palavras de Sartre, a ser um boneco nas mãos dos deuses.
E assim chegarão a imaginar um deus que, ao mesmo tempo, criaria, fundaria nossa liberdade, para congelá-la,
petrificá-la e manipulá-la, o que de nada valeria. Quem realmente crê na grandeza humana crê igualmente na
eventualidade da danação, que está inscrita, como recusa incondicional do Amor, na própria estrutura da
liberdade. A eventualidade do inferno é elemento estrutural de nossa liberdade divinizável.
A fé da Igreja é exatamente essa: a grandeza de Deus, a santidade de Deus, a pureza do Amor de Deus, que a si
mesmo proíbe o uso de qualquer força que nos possa constranger ao Amor; a grandeza do homem, a grandeza da
�liberdade do homem implicam que a condenação esteja inscrita como eventualidade real no mais íntimo do
homem. E isso tem um longo alcance.
O inferno de Deus
Quero citar uma frase de Kierkegaard e outra de Nietzsche. Destes dois gigantes do pensamento humano: um era
cristão, o outro não. Kierkegaard, o cristão, dizia que “o pecado contra o Espírito Santo”, do qual fala o
Evangelho, “é o pecado elevado à sua suprema potência”. Ora, como será o pecado levado à sua suprema
potência? Quando o homem decide aniquilar por si mesmo o Amor de Deus. O Amor de Deus não pode ser
aniquilado em si, mas tenho o poder de o aniquilar para mim como posso exaurir para mim o oxigênio, sem
aniquilá-lo de si, se decidir parar de respirar. A condenação ou o pecado contra o Espírito (é a mesma coisa),
consiste na decisão de negar que minha existência provenha do Amor. No fundo, é uma recusa a ser amado!
Para que a condenação se instaure é necessário, certamente, que essa decisão comprometa o mais profundo de si.
É evidente que não se comete o pecado contra o Espírito – dizemos pecado mortal – como quem pisa numa poça
d’água, ou como quem tropeça no meio-f io. Trata-se de uma eventualidade que, repito, é pensável, mas que, para
mim, é impossível cancelar sem, com o mesmo golpe, diminuir a Deus, o homem e o Amor. E isso a Igreja não
quer. No dia em que os homens tiverem compreendido a idéia esplêndida que a Igreja elaborou do homem – que
não poderão encontrar alhures, em nenhuma parte -, nesse dia eles serão menos severos para com ela, a despeito
de suas falhas, de seus defeitos e de suas inabilidades de expressão.
A outra frase de Nietzsche: “O próprio Deus tem seu inferno: o amor que tem pelos homens”. Infelizmente, ele
compromete a profundidade da frase, acrescentando adiante: “Assim, como ter amor pelos homens?” Esta adição
é penosa, mas esclarecedora: devemos efetivamente, escolher entre um Deus sem amor, que seria um ídolo, ou
um Deus de Amor que Tenha, também Ele, sue inferno.
Ou Deus nos manipula, manipula nossa liberdade, usa de força para que o amem, não havendo então nenhuma
possibilidade de inferno, nem para Ele nem para nós -, ou Ele é a pureza absoluta do Amor, que respeita até o
fundo a nossa liberdade e proíbe a si próprio obter a qualquer custo a reciprociad3 do Amor _ nesse caso a
possibilidade do inferno existe, para Ele e para nós. Escolham: se Deus é Amor, o inferno é uma possibilidade
real; se vocês negarem o inferno, tenham a coragem de dizer que Deus não é Amor. Reconheço a violência dos
termos, mas é um paradoxo verdadeiro.
A este ponto, a inteligência hesita, vendada e desarmada. Mas por que, ao evocar a terrível possibilidade, só –
pensamos em nós e tão pouco nele? Seria necessário não esperar apenas pelos homens, mas primeiramente por
Ele.
Sob esta luz é que deveríamos ler os textos Evangélicos. Quando o Evangelho declara com todas as letras que
Deus toma a si a condenação dos homens, que é Ele quem pronunciará a sentença de condenação (Mt. 13, 41;
25,41), isto significa que o próprio Deus nada pode, a não ser sofrer diante de uma liberdade que se nega ao
Amor. O castigo não provém de Deus, provém do interior, como aquele que, ao fechar as janelas, priva-se da luz
do sol. Isto significa igualmente que o ato criador, que é eterno, não pode deixar de incluir tal eventualidade; é o
grande risco do ato criador.
Na verdade, o dogma do inferno ensina-nos uma atitude de alma. Porque nenhum dogma existe para satisfazer a
nossa curiosidade intelectual. Deus só revela e a Igreja só ensina o que é necessário para que a nossa atitude de
alma seja uma atitude de verdade e para que nossa ação seja uma ação verdadeira. A atitude de alma, o valor
espiritual, o qual implica o dogma do inferno, é a esperança em forma de oração. Não podemos ultrapassar essa
tensão entre a fé na condenação e a esperança de salvação para todos os homens. Não é possível que nossa
salvação eterna, nossa divinização, seja uma certeza matemática, como 2 e 2 são 4; isto nos faria sair, ao mesmo
tempo, do reino do Amor. Minha certeza de que realmente se trata de Amor (pensem na experiência que podem
ter do Amor!) só pode ser uma esperança. É uma certeza sob forma de esperança e a esperança em forma de
oração.
A descida de Cristo aos infernos é um artigo do Credo, mas a possibilidade do inferno não o é. Por quê? Porque
todos os artigos do Credo são dirigidos por duas palavras: Credo in, “Creio em”... e não creio que.
“Creio em” só pode ser seguido por um nome de pessoa: crê-se em alguém. É a própria palavra do
Amor: creio em ti, eu te dou minha fé, eu te amo, eu confio em ti, confio-me a ti, abandono-me em ti...
O Credo é a fé em Deus pai, Filho e Espírito Santo: a estrutura do Credo é trinitária. Crer no inferno não
teria sentido algum. Acredita-se que o inferno seja uma eventualidade. Exatamente, cremos em Deus,
cujo amor nada pode contra a eventualidade do inferno.
�Nota 2:
O PURGATÓRIO
A Teologia refere-se a ele com menos segurança que a relativa à eventualidade do inferno. Mas confesso que,
pessoalmente, minha tendência é achar que, se o purgatório não existir será preciso inventá-lo.
O purgatório é necessário
para a participação na vida de Deus
A profundidade de um abismo é proporcional à altura da montanha. Tendo a montanha 300m, o abismo
correspondente terá 300m. Se a montanha for o Himalaia, o abismo correspondente, até o nível do mar, será de
8.882m. Qual a altura da montanha cristã? Uma altura infinita, incomensurável. O abismo correspondente, o
avesso deste lugar, não tem fundo. Se nossa vocação não fosse participar da vida de Deus, de nos tornar deuses
(não temem dizê-lo todos os místicos), não haveria inferno. É preciso dizer que, em tal hipótese, tampouco
haveria purgatório.
Peço-lhes o favor, se forem educadores, de não falar às crianças sobre o inferno e o purgatório enquanto não
estiverem absolutamente certos de que elas crêem que o essencial de tudo é a nossa vocação, o nosso destino de
participar da vida de Deus – porque, de outro modo, tudo se torna estritamente absurdo e não significa
absolutamente nada, inclusive o pecado original.
A doutrina do purgatório funda-se no seguinte: para estar unidos a Deus em comunidade de vida, é preciso que
sejamos inteiramente Amor, como Ele é todo Amor. Nem um átomo, nem um grão de egoísmo pode entrar em
Deus. Pois o egoísmo é o contrário de Deus, oposição de Deus. Só o Amor é assimilável ao Amor. Quem se
atreveria a pensar que, na hora da morte, será constituído em estado de perfeito Amor e que nele não haverá um
mínimo átomo de egoísmo? À singular exceção da Virgem Maria, isso é impossível.
É provável que neste mundo nenhuma criatura possa produzir um só ato perfeitamente despojado de todo retorno
egoísta sobre si. É necessário – uma vez que se trata, não de gozar uma bem aventurança simplesmente natura,
mas da participação em Deus, tal como é em si mesmo – que este resíduo de egoísmo seja perfeitamente
consumido. Eis o sentido do purgatório. Digamos, fazendo um trocadilho: para que se consuma o Amor, em bem
aventurança, é preciso que o egoísmo seja consumido em arrependimento purificador.
Se vocês têm uma vida espiritual autêntica, se realmente vivem no interior de si mesmos com Deus, bem sabem
que o egoísmo não é feito apenas de atos explícitos contra o Amor. É também, segundo Claudel, “temperatura
contínua” de voltar-se sobre si imanente a todos os nossos atos, mesmo os mais generosos, de cuja emersão
nossos atos pecaminosos são apenas indícios.
Tal purificação, que toca o fundo do ser, não pode deixar de ser dolorosa. Trata-se de ser inteiramente destacado
de si próprio, para tornar-se capaz de ser inteiramente dado a Deus. Ora, destacar-se de si é o próprio sofrimento.
O sofrimento do tempo presente dá início desde logo à obra de purificação. E se o sofrimento não encerrasse este
valor de purificação, seria pura e simplesmente nonsense, um escândalo. Há um purgatório neste mundo, desde
já. Mas o sofrimento do tempo presente deve completar-se para além da morte de um modo misterioso (sobre o
qual, aliás, a Igreja é de uma sobriedade notável), mas certo.
Nada há de surpreendente em que a Tradição compare ao fogo essa chama de purificação. Purgatório significa
purificatório. No fundo, é o mesmo fogo que dana no inferno, purifica no purgatório e beatifica no céu. Deus não
muda, o fogo de seu Amor [e sempre o mesmo. Nós é que somos diferentes diante do Amor imutável e infinito:
se somos totalmente contrários ao Amor, o fogo de Deus nos tortura; se somos capazes de purificação, esse fogo
nos purifica; se estamos unidos a Deus, esse fogo nos torna bem aventurados.
Purgatório = Amor purificador
�O purgatório, portanto, não é um sofrimento imposto, contra o qual em vão nos debateríamos. Deve-se
compreendê-lo como sofrimento voluntariamente suportado, quando na presença da fulgurante santidade de
Deus, só se pode ficar horrorizado pelo que se é. Este horror de si perante o Amor é o arrependimento. Este
arrependimento é uma intensidade de Amor que deseja compensar a mediocridade do passado; compreende-se
que surja espontaneamente no homem, à media que a luz divina o invade, pondo-o em face do que ele é. É, de
algum modo, o balanço vivo de toda a sua existência, de toda a sua história.
O purgatório é sofrimento voluntario, ao qual por nada no mundo se desejaria escapar, pois é ao mesmo tempo
uma alegria. É preciso falar da alegria do purgatório! Num admirável Tratado do Purgatório, Catarina de Gênova
escreve que nada, a não ser a alegria do céu, é comparável à alegria do purgatório, pois quanto mais nos queima o
foto do amor purificador, mais nos vemos, nos sentimos tornar a ser puros e capazes de entrar em Deus. É o que
sentiria, se tivesse consciência, uma barra de ferro cheia de ferrugem sendo limpa por uma lixa de vidro: a dor da
fricção. Mas ela exultaria ao ver a ferrugem arrancada e dissolvida.
Quando se está em presença do amor, só se pode desejar amar. O sofrimento é a constatação de que não se é
inteiramente capaz. Há em nós, neste mundo, um início de purgatório, quando experimentamos o mais nobre de
todos os sofrimentos: constatar que no momento mesmo em que dizemos ao nosso ser mais querido que o
amamos, isto não é absolutamente verdade, pois amamos a nós mesmos mais ainda, preferindo-nos a ele.
É belo chorar por sentir, ao dizer “eu te amo”, que não se é absolutamente sincero. Pode-se ser sincero até certo
ponto apenas, e, com demasiada freqüência, eu diria: o outro é um meio privilegiado para o amor que dedico a
mim mesmo. O sofrimento é que eu seja obrigado a admitir, com toda lucidez, que sou incapaz de amar
verdadeiramente.
O purgatório é esse sofrimento intensificado, elevado a um grau gigantesco de intensidade pela luz divina que
descobre em nós, a um tempo, o infinito de Deus, a pureza do seu amor todo amor e a enorme parte de egoísmo
no balanço da nossa vida.
O purgatório e literalmente a hora, o instante da verdade. Há uma frase de Fénelon (do implacável Fénelon, do
qual a escola de Maurras quis fazer um romântico, quando ele é o contrário disto!) que é terrível: “Tudo o que
ainda se pertence está no domínio do purgatório”. No momento de morrer, o que mais me pertence sou eu
mesmo; mais que meus haveres, é meu próprio ser e devo ser “descolado” de mim, para me parecer com Deus e
entrar com Ele numa comunidade de vida.
Ao encontrar-se na cabeceira de um homem que acaba de dar o último suspiro, quando seu rosto readquire a
calma, depois das contrações da agonia, ouço em torno de mim os cristãos que dizem com fé: afinal, está feliz!
Preferia que dissessem: “Afinal, ele é capaz de amar!” Porque a felicidade do céu não é uma felicidade qualquer é
a felicidade de amar como Deus ama, sem sombra de um voltar-se para si, de uma atenção dirigida a si. É o
purgatório que finalmente nos torna capazes de ser, como Deus, pura relação com o Outro e os outros.
Esse balanço de nossa vida, que nos é exposto e que, de certo modo, nos põe a nu, sem possibilidade de mascararnos, é também chamado, segundo a linguagem tradicional, de Juízo particular (não há aqui tapete verde,
poltronas, juiz e assessores). Efetivamente, é uma só e a mesma coisa que ver claro em si, sofrer com tal clareza e
rejubilar-se imensamente com a diminuição progressiva do obstáculo que impede a plena entrada em Deus.
Eis a razão pela qual, na quinta Grande Ode, intitulada La Maison fermée, Claudel faz as “almas do purgatório”
(para empregar a expressão comum; os alemães dizem “as pobres almas”) dizerem:
“Orem por nós, não para que o nosso sofrimento diminua,
mas para que ele aumente, e que se extinga o mal em nós
e a abominação dessa detestada resistência”.
Estes versos são teologicamente perfeitos. O purgatório (ou juízo particular) é uma total presença de si a si, um
perfeito conhecimento de si por si, uma perfeita visão de si por si, que é, ao mesmo tempo, uma crucificação de si
por si. Minha cruz é conhecer-me tal qual sou, o que só é possível se eu for iluminado pela luz divina. Tudo nos
lança em Deus, para a eternidade.
Dada a imperfeição de nossa inteligência e de nossa linguagem, é inevitável que traduzamos quantitativamente o
que é da ordem da qualidade. Seria necessário expressar-se unicamente em termos de intensidade: intensidade de
amor que dissolve o resíduo do pecado. Expressamos isto desajeitadamente, em termos de duração, falamos de
“um tempo mais ou menos longo, passado no purgatório”. Por que tal inadequação de linguagem? Simplesmente,
penso eu, porque em épocas menos críticas que a nossa era o único meio de fazer-se entender pelas multidões.
Devemos criticar essa representação temporal. Recordando que ela não passa de um símbolo. É a transposição,
em termos de duração, ou de temo, do que somos incapazes de expressar em termos adequados. Contudo, se
entrarmos no âmbito da crítica (nossos contemporâneos são muito exigentes quanto a isto, mas se a Igreja tem
�uma linguagem inadequada, ela o sabe perfeitamente: ela fala uma linguagem simples destinada a todos), é
necessário ser preciso na crítica filosófica.
Que doravante ninguém mais diga que o purgatório se situa depois da morte e a bem aventurança, depois do
purgatório. A rigor, não há “depois”. O antes e o depois estão ligados ao tempo, portanto a esta nossa vida. Se
alguém quiser falar filosoficamente, que diga: a morte é a condição do purgatório e o purgatório, condição da
bem aventurança. A palavra condição é correta, pois nada tem de temporal, não implica um antes e nem um
depois.
Acrescentarei, para terminar, que o costume imemorial de rezar pelos mortos engendrou a doutrina do purgatório
e não inversamente. Não se ora pelos mortos porque estão no purgatório, Mas a Igreja declara que há um
purgatório, porque sempre houve o costume de orar pelos mortos. Na Igreja, a vida está sempre em primeiro
lugar, a vida precede a doutrina e não o contrário.
Sejamos prudentes e rigorosos no modo de nos referir a tais mistérios. Não é este, decerto, o momento de
acumular obstáculos no caminho da fé, o qual, bem sabem, já é bastante difícil para nossos contemporâneos.
�QUARTA PARTE
CRITÉRIOS DE
DISCERNIMENTO PARA A
REALIZAÇÃO DA TAREFA
HUMANA
�VIVER É ESPERAR
Seguirei, não raro citando-o literalmente, o caderno de “Cultures et Foi”, redigido pelo Pe. Ganne. O título é
Cette esperance que est en nous. Trata-se de uma obra prima de lógica concreta, ou de severa crítica daquilo que
há de perigosamente abstrato num certo modo, infelizmente demasiado corrente, de entender a Bíblia. Anima esta
obra um espírito eminentemente bíblico; são constantes as referências explícitas à Bíblia, embora subordinadas a
uma reflexão muito simples sobre a vida dos homens, a nossa e a de nossos irmãos. “Estar dentro da vida”, “partir
da vida”, deve ser algo mais que um slogan. Trata-se, ao mesmo tempo, do Evangelho eterno e da mais ardente
atualidade.
Partamos da vida. Perguntemos: qual é a esperança dos homens de hoje? Esperança de quê? Esperança que se
apóia em quê? O que permite aos homens de hoje esperar o que esperam? Que relação descobriremos entre a
esperança dos homens de hoje e a esperança cristã? Elas de fato se opõem, isto é certo, no sentido em que, para a
maioria de nossos contemporâneos, a esperança que vivem, que é a sua própria vida (viver é esperar), nada tem a
ver com o que chamamos “virtude teologal” da esperança. Mas o que é isto exatamente? Ou, dito de outro modo,
é fatal que a esperança dos homens de hoje conduza ao ateísmo? Se é assim, será necessário concluir que a fé
não pode ser situada fora da vida, e a isto é que o marxismo chama alienação. Se não é assim, se a fé é autêntica
apenas quando vinculada à vida, onde estão os mal entendidos e que fazer para eliminá-los?
Quando é preciso escolher entre o humano e o divino, entre as esperanças humanas e a esperança cristã, é preciso
admitir que algo não funciona, que algo é falso. Escolher entre o humano e o divino é desconhecer a Encarnação,
que é precisamente a indissolúvel união de Deus e do homem, no Cristo. Não há que escolher entre o homem e
Deus, se é verdade que Cristo é homem e é Deus. É preciso eliminar este mau hábito que adquirimos e que gerou
conseqüências extremamente graves.
AS ESPERANÇAS HUMANAS
A esperança está ligada ao poder
O Pe. Ganne traça um caminho inequívoco ao dizer, como o fizera Gabriel Marcel, o que é esperar. Espera-se
quando se acredita poder alcançar o que se busca. Desespera-se, quando se acredita que não se pode fazer isto,
que nada se pode fazer. Eu esperava, caro amigo, obter isso ou aquilo, mas percebo que não há nada a fazer;
francamente, eu nada mais posso fazer. Eis uma chave que nos abrirá muitas portas, inclusive as da Bíblia.
O homem espera por acreditar que pode. Nesse “poder” há “força”. A esperança sempre repousa num poder que
possibilita a transformação da existência. Se espero poder comprar uma casa de veraneio, espero que minha
existência seja transformada: o meu amanhã, com uma casa no campo, não será igual ao meu hoje, quando não a
tenho. Ora, poderei comprar a casa se tiver dinheiro. Aqui, o poder no qual me apoio é o dinheiro. O dinheiro
garante a minha esperança, faz com que ela não seja um sonho, uma construção nas nuvens. Em outros casos, o
poder será o êxito social, o progresso científico, a tomada do poder político, ou a revolução. Sem poder não há
esperança.
Ora, qual o conteúdo de toda esperança? É sempre a busca de libertação. Não se quer mudar pelo prazer de
mudar. A menos que o prazer da mudança pela mudança não surja como libertação da rotina que engendra o tédio
– o tédio de estar sempre no mesmo lugar, de fazer sempre a mesma coisa, da manhã à noite. Mas deixemos de
discussões bizantinas. O que o homem espera – como já dizia Rimbaud e conforme já se repetiu mil vezes, desde
maio de 1968 – é “mudar de vida” ou, antes, transformar condições de existência que julga inumanas. Não se
pode dizer que há esperança, quando não se aspira a transformar uma situação de servidão mais ou menos
intolerável.
�Libertar-se – mas para quê? Para viver vida verdadeiramente humana. Para ser mais homem, numa sociedade
mais humana. A questão está em saber o que é ser mais homem, o que é uma sociedade mais humana. Todas as
tentativas de libertação da história supõem uma concepção do homem. O freudismo, por exemplo, é uma
concepção do homem, uma antropologia: a psicanálise sempre teve por meta – e Deus queira que produza sempre
este efeito! – que o homem seja mais homem.
Poderíamos nos referir à Bíblia, que outra coisa não é senão a longa historia de uma libertação, a descoberta de
um Poder eficaz para a libertação da humanidade. A Bíblia relata-nos como os homens, constrangidos por sua
historia a buscar uma libertação, descobriram e acolheram em sua experiência humana o Poder libertador do
Cristo ressuscitado.
Esperar é voltar-se para o futuro, é recuar-se a ser bloqueado pelo imediato, resignando-se ao presente, às
insuficiências do agora. De fato, a consciência da servidão é que faz surgir a decisão de a ela escapar. Pode-se
dizer que a esperança é um desespero superado. E acrescento: a esperança é sempre coletiva. Porque jamais se
espera só. Pode-se imaginar que se espera só e só para si. Mas é ilusão. O isolamento, ao contrário, induz ao
desespero. E ma esperança não vivida coletivamente degrada-se ou se atrofia. A esperança assemelha-se à
alegria: tem necessidade de ser partilhada. Não existe alegria estritamente individual. A esperança, portanto, ligase a solidariedade.
As forças humanas modernas
Sobre que forças a esperança coletiva do mundo se apóia para transformar as condições de existência, para
“mudar a vida” Jean Lacroix, num precioso livrinho, as resume em três:
A FORÇA TÉCNICA: a técnica é filha da ciência. Outrora a ciência conduzia a Deus e, de boa vontade, se
dizia: a pouca ciência afasta de Deus, a muita aproxima-nos dele. Com efeito, mais se conheciam as maravilhas
do mundo, mais se admirava o Criador. Todos parafraseavam o salmo: os céus cantam a gloria de Deus.
Admitiam todos que a ciência, em seu âmbito, era autônoma – mas só em seu âmbito.
Ora, o âmbito da ciência é a natureza, o que os filósofos chamam de mundo dos fenômenos, isto é, daquilo que
aparece, do que não é dado pela reflexão e sim pela observação. O real, em sua profundidade, ou melhor, aquilo
que é, para além daquilo que aparece (como a alma espiritual, ou Deus) permanecia domínio da filosofia e da
religião. Mas, pouco a pouco, a ciência chegou a pretender ter realmente atingido o real, todo o real, porque o
real é este mundo; o único universo real é o universo deste mundo; no universo deste mundo é que a ciência
quer assegurar o destino humano, realizar a esperança do homem.
O cientista afirma que Deus nada explica; mais exatamente, que fazer Deus intervir para explicar o mundo é
apelar para uma solução fácil a que a honestidade cientifica não pode recorrer. Isto é o que queria dizer o
filosofo Renouvier, com sua celebre frase, freqüentemente mal compreendida: “O ateísmo é o verdadeiro
método cientifico”. Questão de método: uma afirmação é cientificamente verdadeira se o cientista a estabelecer
com os métodos que lhe são próprios. A ciência não permite lidar com o mundo como se ele fosse um relógio
cujo relojoeiro seria preciso buscar fora do mundo.
Aliás, se Deus for cientificamente provado, esse Deus provado é o primeiro elo de uma cadeia de explicações.
De um só golpe não é mais Deu, porque o primeiro elo de uma corrente faz parte da corrente. Ora, se fizer parte
do mundo, Deus é um falso Deus. Eis porque Jean Lacroix está coberto de razão, ao afirmar categoricamente
“encontre a ciência o que encontrar, é precisamente aquilo que recusamos chamar Deus”.
A ciência moderna desenvolve uma mentalidade ateia, que se quer operatória. Quero dizer, ela se aliou à
técnica. Já não se trata de conhecer por conhecer, trata-se de conhecer para fazer (pontes, viadutos, foguetes,
etc.). Ao unir a ciência e a técnica, constrói-se a humanidade, assume-se a responsabilidade da historia. Três
revoluções sucessivas transformaram a civilização. A primeira foi a da máquina a vapor; a segunda, a da
eletricidade; a terceira, a da energia atômica.
De um século para cá, a técnica vem desenvolvendo de modo prodigioso as condições de vida, trate-se de
habitat, de transportes, de meio ambiente, etc. Mesmo que se possa fazer dela um uso inumano (empregar a
energia nuclear para fazer explodir o planeta), mesmo que se multipliquem os acidentes (de estradas de
rodagem ou de estradas de ferro, catástrofes de aviação, etc.), mesmo que o progresso industrial provoque o
problema da poluição, o certo é que o poder técnico infunde no homem confiança em seu próprio poder.
Engendra a esperança de libertar-se da servidão à natureza. Nada nos impede de esperar que o poder técnico
liberte os homens da ameaça dos ciclones, dos tremores de terra e das erupções vulcânicas. A técnica destrói a
idéia da fatalidade, o que é o contrário da esperança e que faz com que digamos: o jogo está feito, os dados
foram lançados, inútil fazer qualquer coisas, está escrito e assim será.
Em suma, a natureza deixa de ser sagrada, ou sacral. Os pagãos dizem: Destino; os espíritos religiosos preferem
dizer: Providencia. Não importa! Isto significaria que as forças naturais têm o caráter do sagrado. Quando as
�forças (ou os poderes) da técnica são mais fortes que as forças da natureza, esta deixa de ser sagrada.
Aparentemente passaram-se os temos em que o homem religioso considerava Deus um quebra-galhos que
preencheria as lacunas da ciência. Em tempos idos, orava-se a Deus para que Ele mandasse a chuva, ou fizesse
brilhar o sol. Hoje, ora-se cada vez menos nessa intenção, pois a esperança é que o homem o consiga fazer por
si. A técnica é o poder que permite esperar, ao passo que a resignação (ligada, nos espíritos, à religião) não o
permitia.
A POLÍTICA é o segundo aspecto do poder no qual a esperança do mundo moderno lança raízes. É evidente
que ninguém escapa à política, que a dimensão política é uma dimensão essencial do homem. Mas a política,
durante milênios, foi assunto de apenas um punhado de indivíduos, ou de algumas famílias, ou de uma só classe
social. Hoje em dia, é toda a massa humana que toma consciência da própria existência política. O homem
tornou-se capaz, não apenas de dominar as forças naturais, mas de orientar a energia das massas.
Ora, Deus surge aos homens do nosso tempo como a autoridade da qual se servem alguns para os manter numa
espécie de minoridade política, para impedir-lhes o acesso à maioridade política. Bem! Podem dizer que Deus
nos ama, Isso não resolve nada. Ao contrário: um Deus paternalista é mais temível que um Deus ditador. Com o
ditador sabe-se o que esperar dele; com o paternalista, há um biombo de caridade, a servir de fachada para uma
desordem profunda, mantenedora da injustiça. E aqui tocamos aquilo que Jean Lacroix chama o “pior dos
dramas”, a saber, o fato de a própria exigência de justiça conduzir os homens ao ateísmo”. A fé em Deus
aparece a muitos como obstáculo à esperança. A religião consola homens decepcionados em suas esperanças
acenando com a consolação do além!
A ENERGIA MORAL existe por fim como poder da consciência que se quer responsável. Para os ateus a
negação de Deus é condição de uma moral autenticamente humana, isto é, digna do homem. É necessário
compreender o que eles querem dizer, antes de dar início à baixaria.
O homem moderno acha que é autenticamente moral quando assume a responsabilidade integral pela
transformação da vida social para a libertação do homem. E o ateu esclarece que não pode fazer isto a não ser
negando a situação de culpabilidade chamada pelos cristãos de pecado original. E, digamos de passagem, é
preciso reconhecer que, com demasiada freqüência (não digo sempre), os cristãos vêm utilizando o dogma do
pecado original para se encolherem , em casa, com os pés em seus chinelos. Quantas vezes ouvi frases do
gênero: de que serve arcar com a responsabilidade de transformar o mundo, uma vez que o homem é pecador
desde os primórdios e continuará sempre assim?
O filósofo Meleau-Ponty (que na juventude pertencera à JEC) escreveu que é necessário, a todo custo, afastar a
hipótese de existência de Deus, pois, se Deus existe, tudo conhece e tudo sabe. Para ele, todos os problemas
estão resolvidos e todos os dramas solucionados; é Deus quem puxa, os cordões da vasta comedia representada
pelos homens, como verdadeiros fantoches ou marionetes. Para que o homem seja verdadeira, moralmente
homem, é necessário que não haja, nalguma parte nas nuvens, uma verdade pré-fabricada; mas é preciso que o
homem, dia após dia, invente sua própria verdade, arregaçando as mangas, e sem nenhuma garantia que seja
exterior a ele, para transformar as relações humanas na esperança de um mundo mais justo e fraterno.
Em outros termos, de longa data, o essencial da moral consistia na submissão à autoridade legítima, quer se
tratasse da autoridade, da família, da autoridade do Estado, ou da autoridade da Igreja. Para o homem moderno,
estas morais autoritárias tornaram-se obsoletas – inclusive a autoridade de Deus. O importante é o primado da
responsabilidade sobre a submissão à autoridade.
Assim é que a esperança do mundo moderno, que repousa sobre a fé no homem, em seus poderes e energias –
técnica, política, moral -, tende, de fato, para o ateísmo. Vê-se a dessacralização em todos os níveis: da
natureza, das estruturas sócias e políticas, das autoridades morais. Nem a natureza, nem o Estado, nem a
consciência moral são o lugar da presença de Deus. São o lugar do poder criador humano. Dessacralização,
secularização
Expulsem o sagrado pela porta, ele volta pela janela
Não é necessário observar prolongadamente o nosso mundo, para constatar que este movimento quase universal
de dessacralização é acompanhado de o outro, não menos universal, de ressacralização. O que é que não se
sacraliza? A Ciência, o Progresso, o Partido Político, e quantas coisas mais. E quantas outras pessoas. Mesmo
num regime político ateu, o sagrado funciona muitíssimo bem: multidões vão em peregrinação ao mausoléu de
Lênin.
Encontramos na França, em 1972, numa capa de disco, uma oração a Johnny Halliday:
Johnny! Novo ídolo da juventude (é esta a palavra: ídolo!)
Dia a dia ganhas fervorosos fiéis,
�Porque és um deus e um demônio, ao mesmo tempo (eis aqui algo interessante, que nos ajudará a compreender o
que chamaremos a ambigüidade do sagrado: deus e demônio)
És um deus porque acreditamos em ti
Como na felicidade suprema
E te adoramos em todos os teus feitos e gestos.
Mas és um demônio,
Pois quando te escutamos
Tudo se torna impossível,
Todo trabalho se torna fastidioso.
Só a tua voz que flui como mel
Fixa-nos o espírito,
És aquele que esperávamos!
Um estudo mais aprofundado de nosso universo, que se diz dessacralizado, demonstra que o homem sempre
tem necessidade de mitos e ritos. O “sagrado” está por toda parte, desde a linguagem esportiva até os
horóscopos e os clarividentes ultra lúcidos, passando por carnavais e “réveillons”. Pois a tendência a
“sacralizar” é uma constante da humanidade. É preciso agora indicar com cuidado o que isto significa, se
desejamos compreender a verdadeira relação entre o cristianismo e a esperança.
Desde que os homens surgiram na terra, há religião, “uma profusão de religiões”, como diz Pascal. A religião
ou o sagrado. Instintivamente, com efeito, o homem busca “um poder” capaz de concretizar sua esperança. Para
além de suas necessidade vitais elementares, ele sente necessidade de viver mais intensa, mais livre, mais
totalmente. Quer escapar à fragilidade, à precariedade de sua existência e ao mesmo tempo, à angústia (pois a
precariedade engendra a angústia e a angústia, o desespero). O que o homem deseja, consciente ou
inconscientemente, é uma intensidade ilimitada de vida, uma plenitude existencial sem falhas. O que Nietzsche
e Rimbaud chamarão de “eternidade”, ou antes A Bem Aventurança.
Qual é o poder capaz de nos fazer transpor nossos limites, de fazer com que “vivamos” na plena acepção da
palavra? É preciso encontrar esse poder. Dizemos: o homem espera porque crê poder esperar. Quem, ou o quê,
lhe permitirá poder? A dificuldade reside na escolha. Por isso o homem tende a sacralizar todo poder que o
ultrapasse e que lhe parece capaz de realizar sua esperança. O homem sacralizou os poderes naturais, cósmicos
(sol, lua, astros, terra, fontes, rios); os poderes ou energias vitais, bio-psíquicas (arvores, animais, sexo, todos os
poderes da fecundidade); os poderes sociais (raça, pátria, classe, partido, chefe, guerra, ouro, dinheiro). E não
olvidemos o indefinido pulular das formas inferiores da superstição. Em suma, tudo que parece deter um poder,
uma energia excepcionalmente promissora, atrai o homem e ele fixa nesse poder o mistério de sua esperança. É
este o fenômeno da idolatria. Conforme dizia Bossuet: “Tudo é Deus, exceto o próprio Deus”.
Temos aqui não apenas um fenômeno pertencente ao passado que releva de uma mentalidade chamada
primitiva, mas de uma constante da condição humana. Sacralizar a lua, o carro, a vedete é exatamente o mesmo
fenômeno. Às vezes se ouve dizer: o homem moderno não tem mais senso do sagrado. Nada mais falso: ele o
tem em alto grau! Ouve-se dizer: o cristão tem o senso do sagrado, o pagão não o tem. Devia-se dizer
exatamente o contrário! No paganismo é que tudo é sagrado ou pode vir a sê-lo.
O cristão que, com demasiada freqüência, não passa de um pagão que ignora o que é (entenda-se: o cristão não
seriamente convertido) não se priva de sacralizar toda espécie de poderes. Evidentemente, não sacralizará o sol
ou a lua, não dirá: o sol e a lua são deuses, mas sacralizará tranquilamente, o Chefe ou a Propriedade.
Sacralizará igualmente a Natureza, declarando que as leis naturais estabelecem a desigualdade entre os homens
(isto e, que existam uns poucos ricos e muitos pobres). Sacralizará as estruturas sociais, políticas ou eclesiais. A
idolatria é uma constante da condição humana. Para que não haja mais idolatria, seria necessário que no coração
humano não houvesse mais esperança, ou que a humanidade inteira se convertesse à fé que verdadeiramente
dessacraliza. Para salvar a esperança humana, é aqui que se erguem os Profetas.
�AS ESPERANÇAS HUMANAS PODEM
SE TORNAR CRISTÃS
Os profetas purificam o sagrado
Os profetas de Israel são, antes de Jesus Cristo, os grandes educadores da consciência humana. No constante
jogo da dessacralização e ressacralização, no qual antigos judeus incessantemente oscilavam, eles introduzem a
fé como princípio de discernimento. Na profusão do sagrado, aprenderam a discernir qual o Poder que não
engana a esperança. Para isso, criticam os poderes nos quais os homens, perigosamente, se fiam.
Em primeiro lugar, os poderes religiosos: “Que importam vossos inumeráveis sacrifícios? Estou farto de
holocaustos”, disse Deus, “de carneiros e da gordura de bezerros...” (Is. 1,11). Isto significa: vocês têm religião,
mas não têm fé. Ora, a religião sem fé só pode ser magia. Buscam, por meio de orações e sacrifícios, conciliar,
tornar meu poder favorável a vós. Perdem seu tempo, enganam-se quanto à minha identidade. Não sou aquele
que pensam...
No capítulo 58 (trezentos anos mais tarde; é de crer que práticas religiosas sem fé persistiam ainda em Israel...),
disse Deus: “Não sabem qual o jejum que me agrada? Romper cadeias injustas, libertar os oprimidos, quebrar
os jugos, compartilhar o pão com aquele que tem fome, abrigar os pobres desabrigados...”
Em Jeremias (7,5-11), é sempre Deus quem fala, para dizer que o Templo não protege aquele que vive na
injustiça: é um falso sagrado, um falso poder, um poder inapto a concretizar a esperança: “Melhorai a conduta e
as obras, eu permanecerei convosco no Templo... Se verdadeiramente zelardes pelo direito entre vós, se não
oprimirdes o estrangeiro, o órfão e a viúva, permanecerei convosco!” Eis os textos que deveríamos saber de cor
ou pelo menos ler todas as manhãs.
Eis aí, denunciada, com vigor, a religião que não é conversão do coração, isto é, da consciência. O
verdadeiramente sagrado está no nível da consciência e da liberdade. O único poder que garante a esperança do
homem é, em si, a vontade de justiça. Deus não pode ouvir a oração do homem que não pratica a justiça.
Os profetas denunciam com igual vigor os ídolos políticos. O poderes políticos, sejam o Príncipe, o Poder
estabelecido, o Chefe ou o Partido, tendem sempre a se fazer passar por Deus. Exigem a obediência
incondicional de súditos ou partidários. Contra tais poderes sacralizados, que servilizam os homens, em vez de
libertá-los, os profetas “rugem”: a palavra é de Amós, pastorzinho que morava nas colinas da Palestina. Deus o
encarrega de transmitir seu “rugido” aos filhos de Israel (1,2).
Eis a frase-chave, que resume perfeitamente o propósito dos profetas: a fé desvenda (ou revela) a verdadeira
natureza do Poder absoluto que salva a verdade da esperança. Os Profetas purificam o sagrado, sem o destruir.
Reconciliam o sagrado com a razão e com a consciência, isto é, com o que de melhor existe no homem. Se a fé
num poder absoluto é afirmada por uma consciência preocupada com a justiça e a liberdade, o sagrado não será
alienante. Ao contrário, apenas essa fé – a fé nesse Poder absoluto que chamamos Deus – impedirá o homem de
tomar outros poderes por absolutos. Nada é absoluto a não ser Deus. É preciso não se enganar com respeito à
natureza desse absoluto. É preciso que ele seja o garantidor da espécie humana. Isto só é possível se for
desígnio de justiça. De que valeria uma esperança humana que não fosse esperança de justiça? Não seria
esperança autenticamente humana.
Que significa moderna ressacralização, a não ser que o homem, sem a fé, torna-se incapaz de levar a cabo sua
crítica do sagrado? Os homens persistem em depositar sua esperança em poderes incapazes de libertá-los
totalmente.
Para acolher o verdadeiro Poder ao qual chamamos Deus, é preciso uma tríplice conversão:
- Da consciência: é preciso passar (passagem que é páscoa: morte e renascimento) da atitude mágica,
conservadora e captadora do sagrado, para a atitude espiritual, oblativa e desinteressada do amor. Para dizer de
outro modo, a fé, para escapar às confusões do sagrado, deve assumir todas as exigências de uma moral
autêntica. O Cristo, num impressionante resumo da doutrina dos Profetas, revelou quais são esta exigências: “A
justiça, a misericórdia e a fidelidade (texto a decorar em Mt. 23,23).
- Da idéia que fazemos do poder: os cristãos que dizem crer em Deus todo poderoso devem saber que Deus só é
todo poderoso para amar. Deus não é Poder de dominação ou destruição. Ele é fechamento, de retorno ou, nas
�palavras de Bernardo, de curvamento sobre si; Deus não pode tudo, pode apenas o que pode o Amor, pode tudo
o que pode o Amor.
- De nossos poderes humanos: a técnica, a política, a energia moral. Não se trata de depreciá-las e sim de
estabelecê-las a serviço da justiça e da fraternidade. Uma vez que o verdadeiro poder é a Vontade de Justiça, é
pela prática da justiça que estaremos em verdadeira relação com ela. Não se cogita conhecer Deus se não nos
convertemos. Converter-se é cessar de explorar o homem, é participar de modo eficaz de sua esperança e de sua
libertação. O conhecimento de Deus está ligado à ação libertadora e à dignidade do homem.
Jesus revela que o Poder é o Amor
Os profetas anunciavam o Cristo. E Cristo dá continuidade à crítica iniciada pelos profetas e a conclui. O Cristo
revela que o verdadeiro Poder é uma Presença, a Presença de um Amor, cuja Energia, o Espírito Santo, é capaz
de atender as aspirações da Esperança, transformando a humanidade inteira e libertando-a plenamente.
Como os profetas, o Cristo dessacraliza. Os fariseus haviam sacralizado a Lei de Moisés. O próprio Deus,
diziam eles, submete-se à Lei. Jesus negou isto: Deus é maio0r que a Lei; a Lei não é Deus. Os fariseus haviam,
entre outras coisas, sacralizado o sábado. Jesus diz e repete: “O sábado foi feito para o homem e não o homem
para o sábado” (Mc. 2,27).
O Cristo dessacralizou a autoridade. Nada mais pagão que a idéia segundo a qual a autoridade é um fim superior
à liberdade. Não, diz Jesus, a autoridade é um serviço: “Aquele que quer tornar-se grande entre vós seja aquele
que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós seja o vosso servo” (Mt. 20,25-28).
O Cristo dessacralizou a riqueza e denunciou-a como um poder de desgraça: “Mas ai de vós, os ricos! Porque
já tendes a vossa consolação” (Lc. 6,24). Em outras palavras, nada mais esperais, pois já não estais entre os
vivos.
O Cristo dessacraliza os poderes para libertar o dinamismo da esperança. É preciso examinar um pouco a
historia, para compreender de que modo Jesus viveu a esperança de seu povo.
Jesus é um homem, nascido do povo judeu. Conhece a historia de seu povo que, como a de tantos outros, é a
historia de uma esperança. Não podemos crer que Ele não fosse solidário com ela. Reconheçamos que nós, os
cristãos, temos a tendência de desdobrar o homem: de um lado, suas esperanças temporais, do outro, um Deus a
pairar acima delas, um Deus do além, um Deus que habita outro mundo. Jesus, orem, é o contrário de um Deus
que permanece por sobre tudo. A Encarnação é o contrário da distância. Um Deus encarnado neste mundo, mas
“pairando acima dele”, seria o Maximo em matéria de trapaça. Jesus não faz isso. Observem-no a viver entre
seus irmãos. Ele sabe que, desde a guerra dos Macabeus, a esperança de restaurar o reino de Israel continua
viva. Quanto à libertação, Ele vê a Palestina ocupada pelos romanos. Não se espanta ao ouvir dizerem que
esperam um dia ser libertados da ocupação estrangeira.
Mas percebe, no convívio com seus compatriotas, que a preocupação deles é predominantemente política.
Constata que a esperança de libertação dos judeus apóia-se em diferentes ideologias: há os zelotas (que almejam
expulsar as forças romanas de ocupação por meio de operações de guerrilhas); há os essênios (que constituem,
em torno ao mosteiro de Qumrãn, uma comunidade de puros); há os saduceus (semelhantes aos
colaboracionistas durante a ocupação alemã).
Jesus empreendeu a educação da consciência de seus contemporâneos. Pouco a pouco, Ele os conduz a
ultrapassar as ideologias e a descobrir o verdadeiro conteúdo de sua esperança de libertação. Ele não dirá aos
apóstolos: que buscais? Sabe bem o que buscam, na clareza de sua consciência não criticada pela fé. Jesus lhes
diz: “quem buscais?” para conduzi-los à descoberta de que, no fundo deles próprios, buscam Alguém, não algo.
O verdadeiro Poder de libertação do homem é Deus, não uma ideologia qualquer. Para encontrar o Deus que
liberta, porém, é preciso abandonar a atitude mágica e entrar na gratuidade do Amor.
Difícil é educar os homens, difícil é conduzi-los à profundidade em que reconheçam o verdadeiro conteúdo de
usa esperança de libertação. Após a multiplicação dos Paes, Jesus nos surge a princípio, como alguém que daria
excelente ministro do abastecimento. É preciso coroá-lo, entregar-lhe o poder político. A multidão lhe propõe
ser o representante legal de uma ideologia política. Assim, acredita ela, sua esperança se concretizará. Jesus diz:
não. Recusa o Poder sacralizado que dispensaria a conversão profunda da consciência. Os apóstolos, tão
desconcertados quanto os demais, aceitarão ainda assim, ser criticados por Jesus. Exceto Judas, que, protestou.
Disse não à exigência de transformação de si mesmo. Permaneceu amarrado ao poder do dinheiro, à ideologia
do lucro. Jesus, contudo, havia lhe dito que, de todas as ideologias, essa é a que mais facilmente se volta contra
o homem. Não se pode servir a Deus e a Mamon.
Deus é Amor: Presença e Liberdade. Três palavras que devem estar rigorosamente unidas. Presença do Amor
que liberta, que suscita, ou cria a verdadeira liberdade. O homem não desperta como liberdade, senão quando se
sente reconhecido e amado. Se não liberta, o amor não é Amor. Presença total de um Amor infinito (sem
�limites), que torna absolutamente livre. Deus não é o Todo Poderoso, Ele é a Onipotência do Amor. O Amor ao
é poderoso a não ser para libertar. Assim é o Evangelho.
DEUS É O PODER DE NOSSOS PODERES,
A INICIATIVA DE NOSSAS INICIATIVAS
Agora podemos compreender melhor o drama espiritual de nosso tempo, a crise que permeia o mundo e a
Igreja? O Pe. Ganne formula este drama do seguinte modo: “O formidável avanço dos poderes humanos que,
para muitos de nossos contemporâneos, dá azo a todas as esperanças, opor-se-á ao poder que provém de Deus e
que Paulo chama de ‘energia(ou dinamismo) do Cristo ressuscitado (Fl. 3,10)? O poder humano opor-se-á ao
poder divino? O poder que vem de Deus destrói as energias que se elevam do homem?”
Deus poderia pedir que renunciássemos aos nossos poderes? Criou-nos criadores e confiou-nos a tarefa de criar
um mundo verdadeiramente humano. Que esse mundo verdadeiramente humano não existe é algo que, creio eu,
salta aos olhos. O homem não é um pré moldado. O homem está por se fazer. Deus não quer fazê-lo por desejar
que o façamos nós – e Ele nos dá o poder para tal. É evidente que o homem não construirá o mundo com
poderes ou energias diversos dos seus. Um mundo humano se constrói com meios humanos, técnicos, políticos,
morais.
Mas esses meios humanos devem ser criticados. Criticar significa discernir. Impõe-se todo um trabalho de
discernimento, pois os poderes do homem não serão automaticamente postos a serviço da justiça e da liberdade.
Quando nossos poderes não são criticados nem convertidos, põem-se, facilmente, a serviço da injustiça e da
servidão. Basta olhar ao nosso redor: corrida armamentista, enquanto milhões de seres humanos morrem de
fome; brutalização dos homens, pelas inumanas condições de trabalho... Somos prisioneiros de um mundo
absurdo, malgrado o desdobramento de imensos recursos. Os recursos são consideráveis e o absurdo, fragrante.
Os poderes humanos se desumanizam. As esperanças se frustram.
Ao dizer que sou cristão, digo exatamente isto: é o Evangelho que me oferece critérios de discernimento para
julgar se o uso que se faz dos poderes do homem orienta-se ou não no sentido de um mundo mais humano. O
Evangelho é que me diz quem é o homem, o que deve ser um mundo humano e em que sentido a técnica, a
política, o exercício das responsabilidades se devem orientar, para estar verdadeiramente a serviço da libertação
e não da servidão.
Se me perguntarem se minha consciência não me basta, tomarei o cuidado de não querer ter razão contra quem
pergunta. Acima de tudo, eu me absterei de dizer que ele é um cristão que ignora que o é, pois bem sei que tal
frase o ofenderia, e com razão. Eu me absterei, igualmente, de lhe dizer que o cristão acrescenta Deus à sua
esperança de homem. Não devemos dar tal impressão: Deus não é uma quantidade que se acrescenta a outra,
isso seria o mesmo que transformar Deus numa espécie de “adorno”. Podemos passar sem “enfeites”.
Eu diria: sim, basta a consciência; a esperança humana basta a si mesma, o dom de si aos outros é um absoluto,
o amor ao próximo é razão suficiente para viver e para morrer. Estou de acordo. E, ao dizê-lo, sou fiel ao
Evangelho, pois é o Evangelho que me diz: “Cada vez que o fizerdes a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a mim o fizestes” (Mt. 25,40).
Mas creio também que esta exigência da minha consciência é m dom de Deus. Deus nos dá tarefas a cumprir.
De tal modo que obedecer à consciência é o Amar. Alguém que me ama. Deus não está na lua, Deus não está
além das estrelas, Deus não está em parte alguma, exceto em minha consciência humana. Esta consciência é
habitada por alguém que me ama; é porque este Alguém me ama que quer que eu seja criador de um mundo
mais humano. Eis o núcleo de toda esperança: amar e ser amado. Eis a profundidade humana. O Cristo nos
revela a profundidade de nossa esperança.
A questão finalmente se reduz a isto: qual é a fonte da esperança humana? Cremos que seja Deus criador. Ao
nos criar, Deus cria nossa esperança. Deposita em nós a fome da liberdade total. Ora, a liberdade total é
participação na própria liberdade de Deus, pois só Deus é absolutamente livre. É absolutamente livre por ser
Amor. Nossa esperança é, pois, a esperança do Amor. Viver e Amar, se Deus é Amor, são exatamente a mesma
coisa.
�Ao nos criar, Deus nos dá o poder de amar como Ele ama. Viver a vida de Deus e Amar como Ele ama é
exatamente a mesma coisa. É o que chamamos a Vida eterna. Ora a Vida eterna não é a vida futura, é a Vida
presente: “Desde já (segundo João), somos filhos de Deus (1Jo. 3,2).
Evidentemente não se trata de uma vida qualquer. Não se trata de uma vida que se suporta, não se trata de uma
vida em que se vai à deriva. É uma vida na qual, como diz João, “fazemos a verdade” (3,21). A verdade, no
sentido bíblico da palavra, não é algo já dado. O verdadeiro é o real. Ora, o real está em gênese: Deus não o
criou (no passado), Ele o cria. Não o cria sem nós, senão não poderíamos dizer que Ele é o Amor em plenitude
Ele nos dá o poder de criá-lo.
Isto é o mesmo que dizer que, no âmago dos poderes técnicos, políticos e do poder das responsabilidades,
cremos no Poder do Espírito Santo. No âmago, não ao lado,, não no lugar do homem. Deus está no coração de
nossa atividade, que utiliza os poderes que temos à disposição para esperar de modo eficaz. Deus não é uma
energia ao lado ou acima das nossas energias, Ele é o Poder de nossos poderes, a Energia de nossas energias, a
iniciativa de nossas iniciativas.
Nossa tarefa é dom que dEle recebemos. “Fazer a verdade” é cumprir a nossa tarefa. Nossa tarefa é sempre, de
um ou de outro modo, fazer o homem, trabalhar para que ele seja mais homem, para uqe o mundo seja mais
humano, para que as relações dos homens entre si sejam mais humanas, vale dizer, mais justas e fraternas.
“Fazer a verdade” é transformar o mundo. “Aquele que faz a verdade, vem à luz” significa que o conhecimento
de Deus (a luz) está ligado à gênese do homem.
Sejam vocês pais ou mães de família, militantes, sindicalistas ou políticos, patrões ou engenheiros, operários ou
camponeses, educadores ou psicólogos, façam o homem e conhecerão a Deus. Recordo simplesmente que, no
sentido bíblico, “conhecer” é “viver com”. Viver com Aquele que nos ama e a quem amamos, eis o que é a
Vida, a verdadeira Vida, a Vida eterna. No presente. Um dia, essa vida com Deus, esta intimidade com Ele, será
plenamente manifestada em nós, e isto será a Bem Aventurança em plena luz.
Last but not least (a última coisa, mas não a mais insignificante): o conhecimento de Deus e a transformação do
mundo (os dois inseparavelmente) passam pela Cruz. E basta a palavra “transformação” para nos dizer porque.
O crescimento não é um aumento, é uma transformação. O homem não é um bebê crescido, a mulher não é uma
menina crescida, a borboleta não é uma lagarta crescida, nem a espiga de milho um grão inchado. Deus não é
um homenzarrão. Ser transformado é morrer e renascer.
A morte não é uma fatalidade, é um momento necessário ao nosso crescimento. Não morresse o grão e não
haveria colheita. Sem opção, não há conversão. Opção é morte. Pôr os poderes terrestres a serviço da justiça é
renunciar a pô-los a serviço do lucro. Educar uma criança é querer por ela e renunciar a querer para si. Viver
uma esperança é morrer para certo numero de hábitos, consentir no advento de outras estruturas políticas e
sociais. Sem sacrifício não há vida verdadeira.
A norte de Cristo é a entrada da humanidade numa vida transformada. A Cruz opera a verdadeira
dessacralização dos poderes. Só quando vemos Jesus pregado na cruz é que percebemos inequivocamente qual a
natureza do verdadeiro Poder. Diante da impotência do cristo crucificado, não corremos mais o risco de
acreditar que Deus é um Poder de dominação, e que podemos torná-lo propicio com práticas religiosas sem a
conversão da consciência. Devemos reler os três primeiros capítulos da Primeira Carta a Coríntios, s quais,
afirma o Pe. Ganne, constituem “uma teologia do verdadeiro poder de Deus”. Jesus crucificado é a Onipotência
do Amor e do Perdão. A liturgia SAE o que diz, quando nos recomenda cantar: “Salve, ó cruz, nossa única
esperança!”
O EVANGELHO: CHAMADO À FÉ E À LIBERDADE
VIVER INTEGRALMENTE O EVANGELHO
�O Evangelho não é apenas mensagem. Há nele, certamente, uma mensagem cristã, mas antes de ser mensagem
ele é pessoa, a própria pessoa de Jesus cristo. Todos sabem que a palavra “Evangelho” significa “Boa Nova”. A
Boa Nova não é o que o Cristo nos diz, é acima de tudo o que Ele é. É a Boa Nova da Encarnação: Deus ama
tanto o homem que se faz homem. Amar é querer vir a ser aquele que se ama, ser um com ele. A mais profunda
motivação de minha fé é não poder superar a Encarnação. Não é possível a um Deus amar mais o homem a não
ser fazendo-se homem.
Atualmente muitos aceitam a mensagem, mas recusam ou expressam certa reserva no tocante ao essencial, que
é a divindade de Cristo em sentido estrito. Com isto, falseia-se a mensagem e, a partir dela, facilmente se chega
a compor trechos escolhidos ou antologias do Evangelho, preferindo certos trechos e negligenciando outros.
Ora, o Evangelho não é verdadeiramente Evangelho, a não ser quando tomado por inteiro. A frase de Pascal: “A
Escritura é feita num só bloco” é muito profunda.
O Cristo revela quem é Deus
A Boa Nova é antes de tudo a revelação do Pai, a nós concedida em Jesus Cristo. O Evangelho é a resposta a
uma pergunta feita pelos homens de todos os temos: quem é Deus? Jesus Cristo nos diz quem é Deus. Em
função desta revelação da identidade de Deus, uma mensagem é dirigida aos homens, para lhes dizer: atendam
ao desejo de Deus, vivam em conformidade com o que agora sabem sobre Ele.
Em Mateus 16 deparamos com uma cena da mais alta importância, a confissão de Pedro, em Cesárea de Filipe.
Indaga Jesus: “Quem dizeis que sou? Pedro (vale dizer os Doze, ai Igreja!) responde: “Tu és o Cristo, o Filho de
Deus vivo”. Evidentemente, não se trata de uma afirmação dogmática da Divindade de Cristo. Pedro ainda não
podia saber que Jesus era verdadeiramente o Deus encarnado. Além da Virgem Maria, sobre a qual temos
revelações particulares, ninguém, antes de Pentecostes, poderia afirmar a Divindade de Jesus Cristo. Pedro
afirma que Jesus é aquele que diz ser Deus e no qual podemos confiar plenamente. “Tu vens da parte de Deus e
não nos enganas sobre a verdadeira identidade de Deus.”
Ora, o Espírito do Filho nos foi dado. Os apóstolos tomarão consciência disso em Pentecostes e dirão: não
apenas aderimos à tua Palavra, mas temos em nós tua própria Filiação. Porque o Espírito dado aos homens em
Pentecostes é o teu Espírito de Filiação. Temos o “poder de nos tornar filhos de Deus (Jô. 1,12).
Cada um de nós é interpelado, como o foram os apóstolos. A resposta deve ser absolutamente pessoal. Nossa
resposta não pode ser o eco de outra palavra nem a podem influenciar pressões sociais, submissão a pressões
sociológicas ou de autoridade. É preciso que a resposta seja verdadeiramente a minha palavra, expressando o
fundamento de meu ser. Para empregar um temo da filosofia contemporânea, é preciso que a minha resposta à
pergunta: “Quem dizeis que sou?” seja uma vitoria sobre o “se”. O filosofo alemão Heidegger e, depois dele,
Gabriel Marcel, muito discutiram aquilo que chamavam o “se”. “Se” diz que... O jornal que expressa a opinião
deste “se” afirma.... é necessário que minha resposta, se é que eu realmente quero viver o Evangelho, seja uma
vitoria sobre o anonimato do “se”.
Outra frase chave do Evangelho é a seguinte: “Quem me vê, vê o Pai”(Jo 14,9). É preciso não deixar que ela se
perca de vista, durante a leitura do Evangelho. O cristo é, antes de tudo, a imagem do Pai. É o prisma de Deus.
Assim como o prisma se decompõe em certo numero de cores a luz branca do sol, o Cristo traduz a Deus,
expressa a Deus em gestos humanos, em palavras humanas, em atitudes humanas. Para saber quem é Deus,
devo observar os gestos do Cristo, meditar suas atitudes profundas e ouvir-lhe as palavras. Aquilo que a própria
vida de cristo nos revela é que o poder de Deus é recusa do poder de dominação.
Podemos ler o Evangelho de uma ponta a outra e constatar que Jesus nunca utilizou seu poder. Tenho
consciência da questão dos milagres e de que o milagre é extremamente antipático aos nossos contemporâneos.
Cristãos evoluídos, inteligentes, crêem não “por causa” dos milagres, mas “apesar” dos milagres do Evangelho
(já dizia Malebranche no Século XVII). Contudo, é fato que há milagres no Evangelho, embora seja muito
difícil determinar historicamente o que se passou em cada caso. Todavia, é necessário compreender que o
milagre está vinculado ao não-milagre. O mais importante do Evangelho é a ausência do milagre: a vida pública
de Jesus principia pela ausência de milagre no deserto (Ele se recusa a transformar pedras em Paes) e sua vida
acaba no calvário, onde o silêncio do Pai é absoluto, tão total que se poderia crer em sua ausência. Os milagres
do Evangelho têm por função encaminhar-nos ao não-milagre, a um certo poder que conduz à total ausência de
poder.
Nessa humildade, Deus nos suplica eternamente que acolhamos o Dom de Si Mesmo que nos faz. Ao falar
nesse Dom de Deus, que é que queremos dizer? Sejamos diretos: Deus não nos pode dar nada além de si
mesmo. Que queriam que Ele desse? Ele é tudo; aquele que é tudo nada tem, isso é evidente! E esse ser de Deus
é todo Amor. Qu7anto a nós, damos presentes, pelos quais expressamos, mais ou menos, o dom de nós mesmos.
Deus se dá a si mesmo e nos suplica que acolhamos o dom que nos faz, para que possamos realizar em
�plenitude nossa humanidade, que é uma capacidade de divina-humanidade. Não se pode ser homem, a não ser
sendo mais que homem.
Amar os homens com o mesmo amor de Deus
O Evangelho é o enunciado das condições de acolhimento do dom de Deus. O Evangelho nos diz o que
devemos ser para acolher um Deus que a si mesmo se dá, vale dizer, que nos transfigura em si mesmo. É
preciso parecer-se com Ele, Deus não quer outra coisa. Trata-se de imitá-lo, como diz Paulo: “Sejam imitadores
de Deus”.
Trata-se de adquirir a liberdade de amar como Deus ama, de ser divinos, como Deus é Deus, de vir a ser o que
Ele é. É a frase mais importante do Discurso de Jesus após a Ceia: “Amai-vos uns aos outro, como eu vos amei”
(Jo. 13,34).
Se refletirmos um pouco, perceberemos que, finalmente, ao ultrapassar as camadas superficiais de nossa
atividade ou de nosso espírito, temos de escolher entre três opções: crer o que o ser é matéria, ou que o ser é
espírito, ou que o ser é Amor e Comunhão (Conforme Roger Garaudy). Se cremos que o ser é matéria, somos
materialista; se cremos que o ser é espírito, racionalistas. Se, porém, cremos que o mais profundo do ser é
Amor e Comunhão, somos cristãos. Só Jesus Cristo nos diz que Deus é Amor e Comunhão.
O Amor não é o sentimento. Mas vejam que não quero rebaixar o sentimento. Os grande homens são, com
grande freqüência, verdadeiramente sensíveis. Não é esta a questão. O Amor, no mais profundo, não é
sentimento, questão de pele. O Amor, segundo João, é vontade e ato. Vontade de se dar e ato de si mesmo. É
importante determinar isto, visto que nossos contemporâneos temem mais que tudo os “blá-blá-blá” sobre o
Amor. Esse assunto lhes mete medo. Não querem saber de conversa e acho que estão cobertos de razão.
Uma das tentações do tempo presente é pretender amar e ser humano sem amar a Deus. E se esboça uma reação
normal contra uma época em que se pretendeu poder amar a Deus sem amar os seres humanos – época, aliás,
nem tão distante. Isto engendrou a toda a logomaquia de vertical e horizontal, sendo o vertical o amor a Deus e
o horizontal, o amor aos homens. É bem verdade que não se ama Deus, se em verdade não se ama os homens,
em intenção e em ato. O teste do amor a Deus é o amor real e não apenas verbal ou sentimental que dedicamos
aos homens, nossos irmãos. Todos conhecem a frase de João, na primeira epistola: “Se alguém diz que ama
Deus e não ama seus irmãos, é um mentiroso” (4,20). Nada mais verdadeiro.
Só que hoje em dia corremos o risco de esquecer que, quando não se ama Deus, o amor aos homens não pode
ser puro. O Pe. De Lubac pronunciou um dia terrível sentença: “Independentemente do amor de Deus, o amor
aos homens corre o risco de não passar de extensão do amor-próprio”. É necessário ser um pouco psicólogo
para perceber que, para nós, é quase impossível, se abandonados a nós mesmos, amar puramente um outro. Só
Deus ama de modo absoluto e nos concede amar como ele ama. A morte a nosso egoísmo só é total no
purgatório; é portanto, uma esperança.
VIVER O EVANGELHO É VIVER DE FÉ:
OS CINCO PASSOS DA FÉ
Faço a seguinte pergunta: qual é a esperança de vocês? Que esperam, afinal? Ser felizes? Amar como Deus
ama, por toda a eternidade? Pois a felicidade de Deus – nossa felicidade eterna, o objeto de nossa esperança –
não é pura e simplesmente ser feliz. Feliz de que felicidade? Há níveis de felicidade.
A felicidade da irmãzinha dos pobres, que passa a vida assistindo doentes não é a mesma de Onassis. Li a vida
deste home, é assustador. De que felicidade vocês falam? Responde o cristianismo: da própria felicidade de
Deus, que consiste em amar e não em ser cumulado. A pergunta que devemos fazer constantemente a nós
mesmos, se desejamos viver o Evangelho, é a que se refere a felicidade. Todo o Evangelho é dominado pela
palavra de Jesus: “Bem aventurados...” É o que chamamos de Bem Aventuranças. Viver o Evangelho é viver de
fé.
�Atenção: no Evangelho, Jesus sempre solicita a fé dos homens e mulheres que encontra. Nunca lhes diz: “Eu te
salvei”. O que Ele diz é: “Tua fé te salvou”. E geralmente se trata de homens e mulheres sem religião, ou de
religião pagã. O centurião é um romano que ignora o mais insignificante rudimento do catecismo; a Cananéia,
que vinha da Siro-Fenícia, não sabe muito mais que ele. Não se pode ser salvo opor outro, nem mesmo por
Deus. O homem é alguém. É o homem que salva a si mesmo, na fé e pela fé. Não podemos sequer imaginar até
onde pode ir o respeito de Deus pelo homem. É preciso que sejamos extremamente rigorosos nesse ponto. Do
contrário deus será apenas um ídolo; e isso Ele não quer ser para nós.
Primeiro passo: todo homem está em situação de fé
O simples fato de viver – estou dizendo viver – insere todo homem numa situação de fé. Não me refiro à fé
religiosa e sim à fé no sentido mais profano da palavra. O semeador, crente ou descrente, está em situação de fé,
“trabalha para o invisível” (conforme Hb 11,27). Ele pratica um ato de fé, pois não há certeza de que venha a
colher. Pode haver seca, inundação, guerra; quem pode prever? Ao Semear, a colheita não é um fato
irreversível, como 2 e 2 são 4. Ele só tem a fé.
O educador também está em situação de fé, seja o pai, a mãe, um professor. Para levar a cabo a educação de
uma criança é preciso realmente “acreditar nela” – expressão bastante eloqüente. Quantas dificuldades! E o
resultado não é imediato. Que será desse rapaz, dessa moça, dentro de dez, vinte anos? Não podemos prever
absolutamente nada. É um ato de fé.
O “crer” enraíza-se no “viver”. Viver é crer. É importante atentar para isso se desejamos compreender que fé
religiosa não é um pára-quedas, algo que nos venha do alto: a fé está inscrita no agir humano elementar. Só no
sonho não há fé, a situação de fé. Mas a fé cristã é exatamente o contrário de um sonho, a despeito do que diz
um certo número de pessoas que se apresentam como cristãs e vivem literalmente no imaginário, fantasiando
um outro mundo em que Deus estaria à nossa espera. Permito-me qualificar a fantasia de patologia da fé. Se
pudéssemos observar como ele funciona em nós, garanto que ficaríamos edificados.
Segundo passo: em todo ato, pequeno ou grande,
O homem busca a felicidade
Avancemos um passo: faça o que fizer, direta ou indiretamente, o homem age sempre em vista da felicidade.
Felicidade mínima do pormenor da vida concreta; ou felicidade profunda no amor, na amizade, ou na cultura,
pouco importa! Mesmo os suicidas buscam a felicidade (uma felicidade negativa, supressão do sofrimento).
Seria muito interessante estudar a musica popular, que em nossos dias tornou-se gênero literário, e ver como
uma Edith Piaf, um Brassens, um Julien Clerc, um Léo Ferré e outros mostram que o homem sempre, mesmo na
mais insignificante de suas ações, busca a felicidade.
Terceiro passo: a busca da felicidade
submete-se aos valores
Percebo de imediato que a situação de fé e a busca da felicidade devem necessariamente ser ultrapassadas. Por
quê? Porque o gangster e o explorador também estão em situação de fé e em busca da felicidade. Aquele que
planeja um assalto está em situação de fé: não sabe se a operação será bem sucedida. E está realmente em busca
daquela felicidade que o dinheiro compra.
Ao buscar a felicidade posso estar tentado saciar um persistente egoísmo, posso querer alcançar minha própria
felicidade em detrimento da dos outros, posso explorá-los, roubá-los matá-los. Mesmo sem ir tão longe, é certo
que existe muita busca de si, muito comportamento egoísta na busca da felicidade. Há uma frase genial nma
canção de Edith Piaf: “A festa continua”, Ela dança nos braços do amante, enquanto, na casa vizinha, um garoto
está às portas da morte e um velho abandonado morre de fome; e ela canta: “Éramos felizes demais pata ter
coração”. É preciso que meu desejo de felicidade seja criticado e transformado. Nas palavras de Bernanos:
“Diz-e o que pensas da felicidade e te direi quem és”.
Intervém neste ponto a chamada filosofia de valores. Chamo “valor” àquilo que “vale” mais que nós, ou aquilo
sem o qual não “valemos”; o que merece que lhe sacrifiquemos a vida, o que constitui uma razão de viver
superior à vida. Antes morrer que cometer uma grave injustiça! A justiça é um “valor”. Antes sofrer que mentir!
A verdade é um “valor”. Chamo valor àquilo que a consciência ordena, àquilo que faz com que o homem seja
homem. Ter um senso dos valores e ter consciência é exatamente a mesma coisa. O que define o homem é a sua
capacidade de escolher e viver valores. O animal não ouve no íntimo de si a voz da consciência que lhe diz:
“Esta é uma situação injusta, deves tratar de transformá-la para que reine a justiça”. O animal é o que é, e isso é
�tudo. O homem houve a voz da consciência, que lhe recorda continuamente o primado dos valores. Se me
disserem que ele não a ouve, estarão dizendo que ele se desumanizou.
Quem submete a própria vida a valores que são os imperativos da consciência, vale dizer, quando se recusa uma
felicidade que poderia ser puramente egoísta, de certo modo já se conhece a Deus.
Não se o “reconhece” mas Ele já é conhecido. Milhares de descrentes (expressão bastante inadequada), que não
reconhecem o Deus de Jesus Cristo, do Evangelho e da Igreja, já o conhecem na medida em que submetem a
busca da felicidade ao critério dos valores. Na medida em que dizem: felicidade, sim, mas não qualquer uma!
Não uma felicidade obtida contra os outros, em detrimento deles! É possível, sem crer em Deus, sem crer que
Jesus Cristo é Deus, ler o Evangelho sob a ótica dos valores. Porque se trata da verdade, da liberdade, da justiça
e do amor fraterno. Nesse sentido, o Evangelho destina-se a toda humanidade.
Na educação cristã das crianças, é necessário começar por aí. Caso contrário, correríamos o risco de falar de um
Deus alheio aos valores da justiça, da liberdade e da fraternidade; um Deus que seria simplesmente o Todo
Poderoso, o mais forte, a quem a prudência manda obedecer. E isso seria o mesmo que afastar-se da fé para cair
de cabeça na religião (quanto a esta distinção, ver a conferencia sobre a oração). E a criança dirá um dia: “Creio
no que me ensinaram”. “Ensinaram”. Creio que Deus existe, creio que Jesus Cristo é Deus, creio até na
autoridade da Igreja, Mas não me venham falar de justiça, fraternidade e verdade! Que remédio senão mentir e
abrir caminho à custa de golpes para vencer na vida!
Muita gente de boa vontade argumentaria: a justiça social e a verdadeira fraternidade humana nada têm a ver
com Deus! Vocês são padres, falem de Deus, mas não toquem em nosso dever profissional. Ao passo que outros
que têm o coração no lugar preferem afirmar sua crença na justiça e na fraternidade, mas dizendo, ao mesmo
tempo, que não crêem em Deus, nem em Jesus Cristo. Recordo-me de haver escrito, algus meses após a
libertação de Lião: “Mais valerá negar Deus e ser capaz de sofrer e morrer pela Justiça, do que crer num Deus
que não nos mandaria sofrer e morrer pela Justiça”.
Quarto passo: Passar da consideração de valores impessoais para Alguém
Há duas maneiras de vir a saber o que é a fé cristã: primeiro, passar da consideração de valores impessoais para
Alguém, uma Pessoa viva, fundadora desse valores, que os vive. Neste mundo, não há quem possa dizer: sou a
Verdade, sou a Justiça, sou a Liberdade. Aquele a quem chamamos Deus pode dizer: A Verdade sou eu, a
Justiça sou eu, a Liberdade sou eu.
Vocês poderão perguntar: tal passo é necessário? Respondo: não. Não é necessário, é livre. Mas é razoável (a
Igreja, durante o Concílio Vaticano I, afirmou que a fé é livre e razoável.). Tenho razoes para crer. Que razoes
têm vocês para crer? A minha razão mais profunda é que não existem valores impessoais, imperativos da
consciência humana. Existe Alguém que os vive e, ao mesmo tempo, os funda. Entre os valore, um há que
ultrapassa todos os demais e que se chama Amor. O Amor não pode ser impessoal. O Amor é necessariamente
relação de pessoa a pessoal
É perfeitamente compreensível que o cientista pesquise a verdade sem consigná-la a uma pessoa. Ele não dirá:
“A verdade é alguém”. Também se entende que não se identifique a justiça com uma pessoa. Mas o Amor, sim!
Não posso, sem contradição, concebê-lo como algo impessoal. Ao falar de Amor, devo dizer: amor e sou
amado. Sou amado por alguém. Amar é dar=se a alguém, não a alguma coisa. Karl Marx, ao referir-se à
sociedade futura, declara: “Bastará ser um ser que ama para tornar-se um ser amado”. A frase é admirável, mas
não posso e jamais poderei, me qualquer sociedade, dizer de um ser humano que ele me ama e amará sempre no
dom de si até a morte, só possível no amor verdadeiro. Só posso afirmar isso de Deus. Eis a minha fé, o âmago
do Credo cristão. Aí está todo o Evangelho.
Quinto passo: esse Alguém é todo Amor
Resta o último passo: quem me di que Deus é Amor? Jesus ]cristo. Só ele. E o diz não com palavras apenas,
mas com sua vida e sua morte. Daí a terceira característica da fé, segundo o Vaticano I: ela é sobrenatural, vale
dizer que é dom de Deus. Doando-se ao homem em Jesus Cristo, Deus deu ao homem o poder de acolher o dom
por Ele oferecido e a ele aderir.
E os dogmas? Os sacramentos? A moral? A instituição eclesial? Esse é o conjunto de tudo quanto é necessário
para que não nos iludamos a respeito do que é o Amor. Direta ou indiretamente, mediata ou imediatamente, não
se trata nem pode se tratar senão das condições do Amor e de suas conseqüências.
A grande diferença entre o crente e o descrente, para utilizar a expressão corrente, é que o descrente obedece à
consciência e o crente, ao obedecer à consciência, ama alguém. Por que sou cristão? Porque, ao obedecer a
minha consciência, que me manda respeitar e promover os valores chamados: Verdade, Beleza, Justiça e
Liberdade, amo Alguém que me ama.
�Em tudo isto, acautelemo-nos contra a tentação do imediatismo. É uma das tentações do mundo moderno: tudo
ou nada e tudo imediatamente. Viver o Evangelho é entrar na lógica do Amor ao longo de um processo. É
necessário sublinhar aqui a importância do tempo. Sem o tempo, o tempo de viver, nossa bem aventurança
eterna não seria obra nossa. Se Deus é todo Amor, Ele só pode querer que nossa Bem Aventurança eterna seja
construída por nós próprios, ao longo de um vir-a-ser.
VIVER O EVANGELHO É OPTAR PELO CRISTO
COMO MESTRE DA LIBERDADE
O Evangelho é normativo. Esta é uma palavra essencial para compreendê-lo, Norma, não senha, não uma regra
rígida, um mandamento que estabelece os mínimos detalhes das coisas. Por exemplo, existe a moda feminina de
nossa época: é normativa, não impõe a todas as mulheres o mesmo vestido. Cada uma pode criar seu vestido
mantendo-se fiel à norma da moda. Exemplo mais preciso: Bach, de um extremo a outro de sua obra, foi fiel às
normas da musica do seu tempo, sendo ao mesmo tempo um magnífico criador. A norma é criadora. O
Evangelho não nos entrava a criatividade. Somos os criadores de nossa vida sexual, de nossa vida sentimental,
de nossa oração, de nossa vida econômica, social e política. Deus cria criadores. O Evangelho é uma luz para
nossa vida necessária, mas insuficiente.
A decisão livre situa-se na confluência do Evangelho e de uma análise
Antes de agir, antes de tomar uma dessas decisões que edificam o nosso ser, é preciso interrogar o Evangtelho,
mas é preciso igualmente analisar a situação na qual nos achamos. Quando se trata de uma situação conjugal ou
familiar, será talvez muito difícil; e mais ainda quando se trata de uma situação profissional; se acaso se tratar
de uma situação social, nacional ou internacional, será ainda mais complexo. Não creio, por exemplo, que se
possa julgar a política francesa sem considerar os países subdesenvolvidos, que pudicamente são classificados
como estando “em via de desenvolvimento”.
Uma decisão criadora prende-se sempre, para o cristão, à confluência de duas luzes: uma que desce do
Evangelho e que exige justiça e amor; outra que emerge da situação corretamente analisada. Se eu me contentar
com o Evangelho, sem a mínima competência na analise das situações, desenvolverei uma moral de coro de
Igreja. Imagine o que seria de uma pessoa que desejasse ser fiel unicamente à frase: “Àquele que te fere na face
direita, oferece-lhe também a esquerda” (Mt. 5,39); ou ainda: “Dá ao que te pede” (Mt. 5,42). Impossível fundar
uma sociedade com base em tais frases. O Evangelho não nos oferece soluções pré-fabricadas, jamais nos dita o
comportamento a adotar na prática, não é um programa. Se me contento com analisar a situação, sem me deixar
questionar pelo Evangelho, minha moral será pagã, ou, o que se chama em linguagem técnica, moral de
situação. É necessário combinar essas duas luzes e, na sua confluência, tomar a decisão com todos os riscos que
ela implica. Isto significa que, na prática, o Amor, ou a Caridade que o Evangelho exige de nós tenciona a
eficácia. Busquemos distinguir, na linha da carta de Paulo VI ao Cardeal Roy, publicada em 1971:
1)A vida cristã é essencialmente uma vida consagrada à justiça e ao amor. Isto pode espantar, pois poder-se-ia
dizer que é uma vida consagrada à Deus. As duas proposições não se opõem, uma vez que é o próprio Cristo
que nos dá a fórmula do novo mandamento, que contém todos os outros: “Amai-vos uns aos outros como eu vos
amei”, isto é, com o próprio amor de Deus. Deus não se exclui. Mas o Cristo que nos dá o mandamento da
caridade, delega-nos a tarefa de exercitar a inteligência, para saber em que condições a caridade será autêntica.
Esse é ponto de partida.
2)A justiça, e o amor visam a pessoas. Não se pode ser justo para com as coisas nem amar coisas; objeto do
amor são os homens. Os homens, porem, estão sempre engajados em situações e em conflito com os
acontecimentos. Para viver de justiça e de amor, para ser fiel ao preceito do Senhor, não podemos esquecer que
as pessoas não flutuam no ar. O homem abstrato não existe: ele é jovem ou velho, homem ou mulher, casado
ou solteiro, da cidade ou do campo, operário, advogado, etc. Não conheço ninguém que não se insira numa
situação real concreta, ou num embate com os acontecimentos (que alias, modifica mais ou menos as situações:
nascimento, falência, doença, revolução, greve, etc.). Se queremos que nossa justiça e nossa caridade sejam
reais, não abstratas, será preciso que as pessoas sejam consideradas em seu contexto real, no contexto de vida.
3)Essas situações e eventos comumente põem em causa os valores. Não há fatos puros, os fatos implicam
sempre, mais ou menos, valores, vale dizer, a justiça ou a injustiça, a verdade ou a mentira,, a liberdade ou a
�escravidão, o amor ou o ódio, etc. Quando, na Inglaterra, há alguns anos, houve um acidente provocado pelo
vazamento de um depósito de dejetos industriais, os sindicatos buscaram os responsáveis e indagaram se seria
possível aceitar a construção de uma escola a poucos metros de um depósito de dejetos industriais numa área de
solo instável.
Recordemo-nos de que Deus não é alheio a nossas decisões, não está em Saturno ou nas estrelas. Deus não é
uma espécie de Júpiter planando nas nuvens. Está no interior de nossa liberdade, é a liberdade que funda nossa
humanidade. Viver o Evangelho é reunir-se a Deus, lá onde Ele está, na liberdade criadora e transformadora
dos homens; nas decisões, pequenas ou grandes, que tomamos. Ora, nossas decisões devem promover o triunfo
dos valores implícitos nas situações e nos acontecimentos.
4)No muito complexo mundo em que vivemos, onde na verdade tudo se interliga, as verdadeiras soluções que
farão triunfar a justiça e a fraternidade são finalmente decisões políticas (no sentido mais amplo, em tudo o que
concerne à vida dos homens em sociedade). Como querer que seja de outro modo? Se não remontarmos ao
político, não haverá eficácia. A boa vontade não frutificará. Resignar-nos-emos a uma generosidade tocante,
que pode nos conduzir a atos individuais de dedicação autêntica, mas que não proporcionará soluções
verdadeiras? Eis o nó da questão. Os cristãos não podem se desinteressar da vida pública, coletiva, comunitária
quando pelo menos fizeram profissão de se interessar verdadeiramente pela sorte de seus irmãos, engajados em
situações de justiça ou injustiça, em luta com os acontecimentos.
Cristo nos contou a parábola do Bom Samaritano (Lc. 10). Naquele tempo as coisas eram relativamente fáceis:
um pobre judeu, atacado pelos bandidos, jazia ferido na estrada. O Samaritano imediatamente descobriu o que
devia ser feito: prestar a esse homem os cuidados mais urgentes, despejar óleo e vinho nas suas chagas, óleo
para suavizá-las, vinho para desinfectá-las; conduzir depois o homem ao alojamento mais próximo, pedindo ao
estalajadeiro que houvesse por bem cuidar dele; fornecer-lhe, enfim, algum dinheiro, prometendo trazer mais no
dia seguinte, caso o da véspera não bastasse.
Se Cristo nos relatasse hoje a parábola, não nos pediria que nos reportássemos a um deserto onde houvesse
bandidos que infestam lugares solitários, como nos filmes de faroeste. Em linguagem atual, Ele diria: se querem
ser meus discípulos, não podem resignar-se a deixar na calçada gente que sofre, tem fome, sofreu tortura, foi
massacrada. Vocês devem ir até o fim, devem descobrir as verdadeiras causas da miséria e da injustiça. Quem é
hoje o judeu ferido e abandonado na estrada: Onde está ele? Onde estão os bandidos? Que é preciso fazer para
impedir bandidos de assaltarem? Eis as verdadeiras perguntas, de realismo imediato. Um cristão não pode
deixar de sentir pena da miséria do pobre ferido e enfermo. Deve trabalhar, direta ou indiretamente, para
encontrar soluções que diminuam o número de bandidos - e isso, não nos desertos, mas nas corporações
multinacionais, nos bancos, nas chancelarias, e nos grandes centros financeiros. Ele deve igualmente deixar-se
questionar profundamente, consentir em rever seus preconceitos e sua sede de privilégios.
O Cristo acrescentaria, sem dúvida: sozinhos, vocês não darão conta de uma empreitada dessas, que não pode
ser concluída de uma hora para outra. Quanto a mim, declaro-me radicalmente incapaz de chegar sozinho a tal
discernimento. Se levo a sério o dever de conduzir as coisas até o ponto a que devem ser conduzidas, para
chegar a uma solução verdadeiramente eficaz para os problemas que afligem meus irmãos, confesso que muito
me alegra trabalhar em grupo e saúdo reconhecidamente os que me podem ajudar a refletir. Eles certamente
nada me imporão. Não compete aos padres, nem aos movimentos de Igreja, impor opções temporais. O papel
deles é auxiliar-nos a caminhar no tempo – isto é, por entre os âmbitos econômicos e políticos – para que minha
vida não entre em contradição com as exigências fundamentais do Evangelho e que ela sirva para realizar a
reconciliação dos homens, significada pela eucaristia de que tomo parte. Tanto mais que se trata de uma
reconciliação não apenas individual, mas universal: Como querem que o econômico e o político não
intervenham nisso?
5)Creio que constitui pecado recusar-se sistematicamente à busca da eficácia temporal. Tenho o dever, não digo
de instaurá-la, pela sua complexidade, mas de persegui-la. Deixar de buscá-la, cada qual em seu lugar e segundo
seus meios, é esquivar-se. Que pensariam do Evangelho se o Samaritano houvesse simplesmente se curvado do
alto de seu cavalo sobre o ferido, dizendo: Meu velho, que pena! Sinto-me transpassado ao ver-te assim; amigo,
adeus, amigo, e boa sorte! Que pensariam de cristãos que visitassem um pobre em seu barraco e lhe dissessem:
É profundamente lamentável existirem ainda habitações tão miseráveis? Ah! Não esqueça, amigo, a Igreja o
ama! Tchau! Espero que atitudes assim nunca se dêem na realidade. Seria escandaloso!
Refiro-me aqui a certas mentalidades que se ocultam sob uma pseudopreocupação pela pureza evangélica e se
recusam a compromissos temporais. Há uma frase que me inquieta profundamente: “O Senhor, pelo menos,
fala-nos de Deus, não de política!” Não estou aqui para lhes infundir segurança, para falar de Deus de um modo
que lhes sossegue a consciência, ou para lhes propor um deus-álibi. Nas palavras de Jean Guehenno: “O mundo
rebenta de fome e as belas almas sobem ao céu”. Eu lhes digo simplesmente que esse deus não é Verdadeiro.
�Todo mundo faz política; quer queira, quer não. A questão não é fazer ou deixar de fazer, é fazer política
conscientemente. O silêncio ou a abstenção em matéria de política (entendo esta palavra sempre em sentido
amplo e não no sentido estrito de engajamento em um partido) são um peso positivo político. Muita gente crê
não fazer política. Todavia, deixando de fazê-la, fazem-na, visto seu silêncio, sua omissão fazerem parte do
jogo de forças. Tudo é jogo de forças, num país e no mundo: há forças morais, militares, econômicas, etc. Não
se deve pensar mal da força: a saúde, por exemplo, é uma força. Deve-se rejeitar a violência, que é outro
assunto. A violência é uma força desgarrada da razão, animalesca. As soluções violentas, salvo exceções
previstas por Paulo VI na Populorum Progressio, não são adequadas. Não é porque uma sociedade dispõe de
uma ordem jurídica que os conflitos de força são suprimidos. Eles se vêem por todas as partes.
Há uma força que se chama força de inércia. As altas esferas sabem disso muito bem, trata-se de questões
econômicas ou internacionais, onde estão as forças de inércia. Não quero melindrar ninguém, evocando
profissões das quais todo mundo sabe, por meio de análises, que representam forças de inércia: sejam quais
forem as decisões tomadas nas altas esferas, ninguém se mexerá, ou se mexerá tão pouco, que podem ser
desprezadas as reações previsíveis em tal meio profissional ou social.
Outrora os cristãos tendiam a dizer que não se deve sujar as mãos com política. Um slogan dos meios católicos
era: acima de tudo, conserve as mãos limpas. Se ainda fosse assim, a própria Igreja configuraria real força de
inércia e todo mundo o saberia. A isto chamava Mounier “o falso apolitismo das mãos limpas”; não é
apolitismo, é ausência de política, é um peso político real. A pior das impurezas consiste em não querer sujar as
mãos, segundo a famosa frase: aquele que nada faz jamais comete um erro; sua vida toda já é um erro. A pior
coisa é exercer um peso político, pretendendo não fazer política.
Nesse momento, tomba-se vitimado pela própria hereditariedade: meu pai que... meu avô que... em tal meio...
em tais circunstancias... etc. A educação recebida pesa sobre cada um de nós. Você crê ser livre, mas
absolutamente não o é, é a pressão do meio que age através de você. Sua hereditariedade, sua educação, seu
egoísmo, seus preconceitos, as preferências sentimentais ou passionais que você nunca teve a coragem de
questionar, tudo isso é que vai depositar uma cédula na urna eleitora. Você é livre de opções políticas ou
econômicas, sem antes deixar claro que ele precisa trabalhar para libertar-se, de tal sorte que só será homem
livre aquele que se tiver questionado, a fim de que sua ação seja autêntica, no plano temporal.
Tanto mais que ninguém vem a ser livre se não trabalhar para libertar os outros. A conquista de nossa liberdade
pessoal passa pela ação, pelo trabalho, pelo cumprimento da tarefa humana em prol da liberdade de todos.
Senão, acautelemo-nos, não chegaremos à verdadeira liberdade.
Jesus é o homem livre da liberdade eterna de Deus
Se me perguntarem por que sou cristão, responderei: escolhi o Evangelho como educador da minha liberdade.
Se o budismo ou o islamismo educassem melhor a minha liberdade, eu teria o dever de tornar-me budista ou
muçulmano. Todos conhecemos o adágio: gosto muito de Platão, mas gosto mais ainda da verdade. Eu, de boa
vontade, transporia: amo muito a Jesus Cristo, mas ainda prefiro o mais alto nível da existência e, se Jesus
Cristo não for o educador da minha liberdade para atingir o mais alto nível da existência, procurarei em outra
parte. Se aquele que lhes fala é cristão, é por ter a certeza de que é impossível o Corão, os Upanishads e outros
livros sagrados conduzirem o homem tão alto quanto o Evangelho. Eis a minha convicção, eis a minha fé.
A liberdade não consiste em fazer o que se quer, mas em querer o que se faz, isto é, em assumir a
responsabilidade pelos próprios atos. Um homem só se torna autenticamente homem quando assume a
responsabilidade pela própria vida. A verdadeira liberdade consiste em ser capaz de afrontar a morte, não
necessariamente a morte final, definitiva, mas a morte cotidiana que a justiça, a verdade e a liberdade exigem.
Não se pode, ao mesmo tempo, dar-se e reservar-se para si. Q8uando alguém se dá verdadeiramente, quando se
compromete a fundo com os outros, é evidente que isto é penoso, que demanda verdadeiros sacrifícios. É
preciso saber morrer para si, porque somos acima de tudo escravos de nós mesmos, daquele “querer viver” que
nos move as entranhas. O Cristo é o tipo do homem livre: preferiu morrer a renegar-se. Ele é a testemunha da
eterna liberdade de Deus.
Entendamos bem: a liberdade não é a faculdade de escolher ou optar entre o bem e o mal. Isto é o livre arbítrio e
não existe em Deus, que não pode optar pela injustiça ou pelo ódio. Mas nós, criaturas, construímos nossa
liberdade por meio de escolhas. Jesus também teve de escolher, Ele foi tentado.
A grande cena da tentação no deserto é da máxima importância, é a montagem literária daquilo que, sem
dúvida, foi permanente na vida de Jesus, a ser, a constante tentação de utilizar o poder de Deus para dominar. Se
Jesus tivesse ouvido Satanás, poderia ter tido uma existência honrada, gloriosa. Satanás, aliás, é o porta-voz de
Israel e o porta-voz de todos nós, na medida em que nos agradaria que o nosso Deus fosse um Deus que nos
dominasse e nos comandasse. No fundo, temos é medo de ser homens livres.
�Aliás, ser homem ou mulher livre não é pouca coisa. Por isso dizíamos ao cristo: transforma as pedras em pão!
Assim a fé não será mais tão livre, seremos obrigados a crer! Como não crer em alguém que transforma pedras
em Paes? Obriga-nos, vai! Jesus respondeu: não; não quero revelar um falso deus, um ídolo. Podemos ter
certeza de que não se glorifica a Deus se, para homenagear, nos omitimos de qualquer das tarefas humanas,
mesmo a mais difícil. Bem estranho seria um Deus que aprovasse as nossas omissões, a fim de permanecer pura
e simplesmente entre suas mãos. Segundo Péguy, ele diria: “Submissão de escravos não me comove”.
Alguns pontos para meditar sobre a liberdade de Cristo
1-Jesus no Templo, aos doze anos, deixa que seus pais o procurem durante três dias (Lc. 2). Quando eles o
tornam a encontrar, diz com calma: “Não sabiam que me devo ocupar dos negócios de meu Pai?” Liberdade
com respeito à família, sendo que familiar aqui é sinal de familiaridade. É preciso ser livre com relação a tudo o
que nos é familiar: horizontes familiares, opiniões familiares, costumes religiosos familiares, língua litúrgica
familiar, política familiar (na minha família, mas nem é preciso dizer, sempre se leu, digamos Le Figaro; em
outros meios seria L’Humanité). O Evangelho no estado puro não existe ainda, é necessário tentar concretizá-lo
Um de meus confrades, a quem não falta senso de humor, costuma dizer que, na Companhia de Jesus, há 80%
de virtudes burguesas e 20% de virtudes evangélicas...
A liberdade consiste em consentir expatriar-se, o que é extremamente duro, por ser a verdadeira pobreza. É o
ponto em que a liberdade e a pobreza significam exatamente a mesma coisa. Trata-se de uma atitude
fundamental que não deve ser confundida com o desenraizamento. Ter raízes nalgum lugar faz parte da vida, do
gosto por viver. O ideal é o enraizamento (social, ou mesmo geográfico) e a expatriação.
Estar totalmente expatriado é pavoroso. Milhares de pessoas são expatriadas pela Igreja de hoje e não
consentem na expatriação, por causa de suas propriedades. Isso mesmo. Uma religiosa é proprietária de seu
hábito, outros o são do latim litúrgico, outros ainda de um certo modo de formular dogmas. São proprietários e
levam isto a serio. Pretendem ser possuidores da verdade, esquecendo que é a verdade que nos possui.
Recusam-se então à expatriação e, sem dar por isso, situam-se no extremo oposto do Evangelho.
2-Antes de levantar-se o sol, Jesus escapou da casa onde havia passado a noite (Mc. 1,35-39). Os apóstolos, ao
despertar, vão à procura dele. Encontram-no e dizem: “Retorna a Cafarnaum, lá estás seguro, todos te
conhecem, te ouvem, tens ouvintes constantes”. É preciso olhar para o rosto de Jesus, que é o de um homem
livre: “No mundo não existe apenas Cafarnaum; devo percorrer toda a Galiléia; não me deixarei monopolizar
por uma classe social, uma raça, um clã, uma paróquia, uma nação. Sou livre, disponível para fazer a vontade de
meu Pai”. Isto é que é liberdade!
3-Num dia de sábado os apóstolos têm fome (Mc. 2,23-28). Colhem algumas espigas, esmagam os grãos e os
comem. Mas os fariseus, que sempre os vigiam, aproximam-se e dizem a Jesus; “Como deixar teus apóstolos
fazerem o que não é permitido, num dia de sábado?” Jesus os contempla com “um olhar abrangente e
profundo”, dizendo: “Eles têm fome. Como querem que eu os impeça de comer?” Existe, é verdade, uma lei
positiva, mas a caridade a ultrapassa. Assim é a liberdade do Cristo com respeito ao “que dirão os outros?”.
4-Pouco depois um homem que de longa data tinha a Mao ressecada pede a Jesus que o cure (Mc. 3,1-6). Os
fariseus vigiam: veremos! Terá Ele a audácia de curar este homem num dia de sábado? Nota o evangelho que
Jesus olha para eles encolerizado e diz depois ao homem: Estende a Mao” e o cura. Imediatamente reúnem-se
os fariseus para conspirar sobre o melhor meio de fazer com que Jesus morra. Isso acontece logo no início do
Evangelho de Marcos. Liberdade de Jesus com respeito ao “que me farão? Façam o que quiserem. Sou homem
livre.
5-Deveríamos evocar a cena da multiplicação dos Paes, onde Jesus revela sua liberdade em relação à gloria
humana (Mc. 6,30-46). Poderia deixar que o coroassem rei, seria muito fácil. Em vez disso, manda os apóstolos
pegarem o barco e passarem para a outra margem do lago, desaparecendo depois para orar na montanha.
Liberdade com relação à gloria humana, com respeito a todas as pressões que o teriam feito desviar-se.
6-Reencontramos Jesus durante seu processo. Ele se cala. Há uma frase, muitas vezes reiterada: Jesus, porem,
se calava (Mc. 14,61; 15,5). Dignidade suprema desse silêncio. É a liberdade de Jesus com respeito aos chefes,
aos notáveis, aos poderosos. Ele é livre. E a igreja? Sempre foi livre? É bom que ela faça um exame de
consciência. Seria necessário tornar a ler a Epístola de Tiago: lá encontraremos coisas realmente inesperadas
sobre o que deve ser a verdadeira liberdade. Cristã.
�7-Contemplamos, enfim, a imagem de Cristo na cruz, rosto coberto de escarros, suor e sangue, rosto do homem
livre que preferiu morrer a renegar sua ração de viver. Sua razão de viver era revelar o verdadeiro Deus.
Revelasse Ele um poder de dominação total, ninguém o teria levado ao Calvário. Sua vida teria sido de poder e
de honra. Teria vivido tranquilamente durante longos anos e as multidões não teriam cessado de aplaudi-lo. E.e
revelou o Deus todo Amor e que só pode contradizer todas as falsas venturas que o homem persegue.
Não nos iludamos: o cristianismo contradiz o homem. Ele o plenifica e o conduz à auto-realização, enquanto o
contradiz. Se em Caná a água é transmudada em vinho (símbolo de festa), na Ceia, o vinho transforma-se em
sangue. Há sempre dois pólos: o do humanismo e do amor à vida e o da necessidade de morrer para encontrar a
Deus. O Evangelho é a transformação da fome de felicidade. Se o cristianismo de vocês não se choca com o dos
que os rodeiam, há fortes razoes para que não seja autêntico e profundo; como diz P. H. Simon, é
“descafeinado”. No mundo moderno, não impedimos os homens de irem à forra nas atividades econômicas,
sociais e políticas. Lamentamos, dizemos que o mundo vai mal, que não sabemos para onde vai. Culpa de
quem? Se os cristãos fossem ao menos cristãos! Mas o que está em jogo é a cruz. Quando o cristão faz o que
tem de fazer, quando é livre, livre como Cristo, não pode evitar a cruz.
O Evangelho, em suma, é a revelação da “liberdade libertadora” de Deus. É a exata definição do Amor. Amar
os homens é querer que eles sejam (no sentido forte). Querer que o outro seja é a justiça, o respeito que está no
âmago da justiça. O outro, porem, só existe se for livre, pois pela liberdade é que o homem é homem. Fora da
liberdade, não há verdadeira humanidade. Só somos livres para amar, visto, que fora do Amor, o que se vê é o
poder de dominação, que oprime e impede o homem de ser plenamente homem. “Deus é Amor” (1Jo. 4,8) e nós
“somos chamados à liberdade” (Gl 5,13): quando se chega a compreender a identidade da íntima e estreita
ligação entre Amor e Liberdade, compreende-se verdadeiramente o essencial da Fé.
ORAR
Abordar tal assunto hoje pode parecer concessão à moda. Mas a oração nunca deveria ser encarada como um
assunto da moda. Mas vocês conhecem a lei do pendulo da historia que Bergson formulou na lei do duplo
frenesi: quando alguém vai freneticamente num sentido, irá em seguida freneticamente no sentido oposto.
Conhecemos a geração do engajamento, palavra posta em moda por Emmanuel Mounier, após a geração
dominada pela personalidade de André Gide, que poderia ser chamada de geração do diletantismo. O
engajamento ou, se preferem, a dedicação ao serviço da sociedade, revela-se decepcionante, aparentemente
pouco eficaz; existe difíceis analises no plano social e político; e todas as mediações necessárias para que o
engajamento a serviço do mundo seja eficaz existem grandes esforços.
Parece, realmente, que a exigência de engajamento está hoje em dia em recesso e que se manifesta um retorno à
oração. Para empregar certo jargão: oscila-se entre o horizontal e o vertical: após uma geração que, na verdade,
esqueceu manifestamente o vertical, a relação com Deus, a ela estamos voltando. Não se trata aqui de lamentar
esse processo de volta, mas de fazer perceber que ele se dá sob o signo da oscilação. Seria necessário assumir o
horizontal e o vertical ao mesmo tempo, seria preciso que “a extensão no temporal fosse acompanhada de uma
concentração no espiritual”.
Porque oração sem engajamento não vale mais que engajamento sem oração. Esta geração que volta a descobrir
a importância da oração (pelo que nos deveríamos felicitar) não deveria esquecer as necessidades do
engajamento, da ação, da tarefa humana.
COMO?
A crise da Igreja desembocará numa renovação mística? Tomara que sim, sobretudo porque todas as crises que
despontaram na historia da Igreja chegaram a uma renovação mística. Foi o que se deu na Renascença, quando
�houve admirável floração mística no século XVII na França. Pode ser que estejamos às vésperas de uma dessas
renovações. O problema todo é que seja verdadeira e autêntica; diremos dentro em pouco em que condições ela
o será.
Logo de início, quero deixar claro que a oração é um elemento essencial da vida espiritual, mas não é toda a
vida espiritual. Espiritual significa com o Espírito Santo. Há quem diga: “Tenho tantas preocupações e trabalhos
que não me sobra tempo para a vida espiritual”. Pode ser que alguém tenha tanto o que fazer que não ache
tempo para a oração. Só não pode dizer que sua atividade humana é estranha à vida espiritual.
João da cruz, nos diz, efetivamente, que seremos julgados segundo o Amor. Ora, vivemos o Amor no
cumprimento de nossa tarefa, seja ela familiar, educativa, ou conste desses múltiplos engajamentos na ordem do
sindical, do social, do econômico, ou do político, em suma, de toda a vida.
As três formas de oração
No que se refere à oração, o Evangelho é absolutamente formal. Aponto simplesmente duas frases, entre as
múltiplas palavras de Cristo concernentes à oração:
“Há necessidade de orar sempre, sem jamais esmorecer” (Lc. 18,1)
“Tu, porem, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo”
(Mt. 6,6).
É o próprio Espírito Santo que conduz ao deserto e reúne os homens em comunidade fraterna. De uma ponta a
outra da Bíblia, ouvimos ressoar, se é que posso falar assim (é como se ouvíssemos soar um tema musical,
numa orquestra), o tema do deserto. Significa solidão, silêncio, concentração, recolhimento, nudez interior,
aridez, calcinação, fome e sede de Deus. E no que toca à comunidade fraterna, bastaria Pentecostes para nos
comunicar que o Espírito Santo reúne os homens, mas ao inverso do que ocorreu em Babel. A torre de Babel é a
dispersão dos povos na confusão das línguas; Pentecostes é a reunião dos povos na compreensão das línguas.
As grandes Regras religiosas (Agostinho, Bento, por exemplo) distinguem, tradicionalmente, três formas de
oração:
-Antes de tudo, a Eucaristia, que é a oração total, a oração perfeita, visto ser extensão da oração do Cristo. ]Em
torno da Eucaristia, o Ofício divino é uma coroa de finas pérolas, rodeando o diamante centra. Monges, monjas,
religiosos e religiosas, sacerdotes, todos fazem esta oração litúrgica que é o Ofício divino.
-Oração privada, ou secreta, que se chama de conversa a sós, o face a face, o coração a coração com Deus. É a
oração pela qual obedecemos à palavra evangélica que nos recomenda “fechar a porta do quarto e retirar-nos a
sós, no segredo”. Entendam que quarto é um símbolo. O verdadeiro quarto é o interior (como muito bem diz
Claudel em La cantate a trois voix). Trata-se da oração em consciência, no segredo do coração (palavra que não
significa sentimento, mas consciência na Bíblia).
-A oração habitual, a de todos os instantes, a oração mesclada de trabalho, de ação, feita sem que se saiba nem
mesmo o que é oração. Esta forma de oração ajusta-se à palavra de Jesus: “É preciso orar sempre sem jamais
esmorecer”. Não é preciso dizer que, se se tratasse da oração propriamente dita, na qual o trabalho é
interrompido e a pessoa se ajoelha, não se poderia levar a serio a injunção do Evangelho. O Senhor deseja dizernos que Deus nunca deve deixar de estar no horizonte de nossa vida, talvez de modo inconsciente, talvez semiconsciente. Esta oração compara-se à sensação da criança que sabe que a mãe está próxima, mas não olha para
ela; a criança tem certeza de que ela está lá, tanto que, se a mãe vier a se afastar, a criança perceberá isso sem
demora.
Dificuldades da oração em segredo
Há um certo espírito de facilidade que, com demasiada freqüência, nos faz pôr em curto circuito a segunda frma
de oração, aquela para a qual se interrompem o trabalho, a atividade habitual; é uma oração secreta um tanto
longa, que se prolonga por alguns minutos. Digo um tanto longa, por dirigir-me, principalmente a leigos; não se
trata para os leigos de promover a duração das orações, isso é próprio dos religiosos.
As pessoas são fieis à Eucaristia e crêem ser fieis à “oração contínua”, mas acham que podem dispensar o
tempo da oração. O perigo é não interiorizar verdadeiramente a Eucaristia, ou que a liturgia celebrada diante de
nós não se venha a tornar, em nós uma liturgia. Ao mesmo tempo, a comunidade orante correrá o risco de se
�tornar uma comunidade de superfície, conseqüentemente precária. Eis o risco que enfrentam atualmente as
múltiplas comunidades pequenas, quer de religiosos, quer de leigos, sem a oração verdadeira, em profundidade.
Quanto à oração habitual, se não houver tempos fortes de oração, ela corre o risco de se degradar sem que a
pessoa disso se aperceba. O olhar elevado a Deus, no decorrer da vida, torna-se sempre menos freqüente, e as
decisões que devemos tomar (e que são a parte essencial de nossa vida, por serem o próprio exercício de nossa
liberdade e porque nosso ser eterno é construído por essas decisões, pequenas ou grandes) deixarão de ser
tomada com Deus e tendo Deus em vista, mas em função de si e tendo em vista a si mesmo.
Temos experiência do quanto é difícil dizer, com toda a verdade: “Venha a nós o vosso reino”. Mesmo durante
as generosas e apostólicas atividades, ao dizer da boca para fora, “venha a nós o vosso reino”, pensamos
baixinho: que eu faça vir o teu reino, que a minha congregação faça vir o teu reino, que o movimento da Ação
Católica, ou de espiritualidade ao qual pertenço façam vir o teu Reino. Isso é quase o mesmo que dizer: venha o
meu reino. E se quiséssemos ser extremamente cruéis, seria necessário admitir que, no fundo, o que dizemos a
Deus sem o saber é: que venha o meu reino por meio do teu. E isto seria a degradação suprema, a mentira e a
hipocrisia em sumo grau.
Por que, com tanta freqüência, desprezam-se o face a face, o coração a coração com Deus? Simplesmente
porque isso nos enche de tédio, nos enfada. Em termos mais nobres, digamos que se gosta muito de trabalhar a
serviço dos outros e que se saboreia a alegria desse trabalho. Acima de tudo, quando se é jovem, gotas-e da vida
dinâmica e uma simples parada, embora breve, com o fito de se recolher por certo tempo, torna-se uma espécie
de impossibilidade psicológica. A vida é movimento, iniciativa, aceitação de responsabilidade; a oração é
repouso, imobilidade, espera, submissão. Para quem ama a vida intensa e vive intensamente a oração é uma
espécie de morte, e morrer sempre repugna.
Entre as razões que impedem tantas pessoas de consagrar à oração alguns minutos diariamente, está a
desconfiança com respeito à imaginação e à sensibilidade: o que significam exatamente devoção e fervor?
Poderá um homem amar a Deus como se ama uma mulher, não se trata de uma relação de outra ordem? A
vibração sensível que se sente no Amor humano será válida quando se trata de Deus? E quando falta essa
vibração de epiderme, trata-se ainda de oração?
Desconfia-se igualmente da introspecção. Na época da psicanálise , estamos todos em guarda contra formas
parasitarias de ruminação interior. Homens e mulheres, jovens e velhos com certo verniz de psicologia
profunda, já apresentam objeções de princípio. Temem o narcisismo e não deixa de ser verdade que sempre se
arrisca projetar diante de si um sósia, a quem se chama Deus. Acredita-se estar diante de Deus e, na verdade,
está-se diante de si próprio e assim é fácil fazer, a um tempo, perguntas e respostas. Chama-se vontade de Deus
ao que, no fundo, nada mais é do que a nossa própria vontade.
Nas palavras de Bonhoeffer, o grande teólogo protestante enforcado pelos nazistas em 1945, e cuja influência
na Alemanha e na França tem sido considerável: “A pessoa se entrega a uma íntima peroração consigo mesma”.
Também a oração de súplica apresenta problemas ao homem moderno. O apelo da criatura ao seu Deus não
será, ao cabo de tudo, um piedoso estratagema para reconfortar psicologicamente o homem? Seria necessário
abordar aqui – mas o desenvolvimento seria demasiado longo – o perpétuo risco de confusão entre o
psicológico e o espiritual, entre a vida interior, que é a vida consigo mesmo (um homem enamorado tem vida
interior, como também a tem o filósofo), e a vida espiritual, que é a vida com o Espírito Santo. Escrevia o Pe.
Motecheuil: “Não se sentirá o homem atendido, pelo simples fato de ter verbalizado sua necessidade? Não será
a verbalização do homem em oração o atendimento de sua súplica?
O RISCO DE UMA ORAÇÃO PAGÃ
A oração não é um fenômeno, uma atitude especificamente cristã. Os “pagãos”, ou melhor, os não cristãos,
oraram muito. Assim como é necessário evangelizar o engajamento, é igualmente necessário evangelizar a
oração, que não é automaticamente evangélica.
Fé e religião se distinguem. Não há dúvida de que se abusou dessa distinção, de origem protestante, mas isto
não é motivo para declará-la falsa. Religião e fé estão ligadas, mas continuam distintas. Religião é diligencia de
origem humana, a fé é adesão a uma iniciativa de Deus. Religião é fato cultural, pode-se achar que sempre
existiu. Há muitos milhões de anos que a espécie humana iniciou sua aparição sobre a terra,, ao passo que
apenas cerca de quatro mil anos nos separam de Abraão.
A questão é saber se, durante milhões e milhões de anos, o homem foi um animal religioso (para retomar a
expressão de Aristóteles). Marx negou isto e acreditava ter a religião aparecido na terra simultaneamente à
exploração do homem pelo homem, com o advento da sociedade em classes, do amanhã em que todos cantam, a
�religião não teria mais nenhuma espécie de razão de ser. Creio que a maioria dos marxistas não são fieis a Marc
neste particular e que os intelectuais marxista abandonaram atualmente essa tese e crêem, como nós, que a
religião sempre existiu entre os homens.
A religião é fato cultural, fato humano. Falo de religião de sentimento religioso, na medida em que difere da fé
e que pode ser considerado independentemente da fé. É um fato que responde a certas necessidades do homem,
essencialmente a dois tipos de necessidade.
Necessidade de segurança e estabilidade
O homem, atirado ao mundo, logo percebe que sua existência é precária, frágil, ameaçada. Que o ameaça? O
futuro evidentemente. Não se sabe o que pode acontecer: a fome, o raio, a doença, os acidentes, a morte. Ainda
em nossos dias, nós, que nos pretendemos cultos e evoluídos, percebemos em nós as seqüelas dessa mentalidade
primitiva e nos referimos “aos bons velhos tempos” em que dizíamos: não se sabe o que o futuro nos reserva. O
futuro é ameaçador, o passado infunde segurança. O homem primitivo imagina que, nos primórdios, houve uma
idade de ouro. O mito da idade de ouro é absolutamente universal. O ideal, portanto, situa-se no passado, o mal
é a mudança, tudo deveria permanecer imutável. A religião é aquilo que liga ao imutável, ao passado das
origens, no qual supostamente tudo era puro.
Tocamos aqui um ponto extremamente importante, que é a interferência inevitável do político no religioso.
Efetivamente, o poder estabelecido, seja ele qual for (monárquico, democrático, ditatorial, pouco importa) que
evidentemente deseja manter-se e tem as mudanças, carece de jurisdição sobre as consciências. Edita leis, mas
não é ele, poder político que criará para os homens a obrigação de consciência de a respeitarem. Não há
jurisdição sobre o chamado foro íntimo. Daí a tendência de apelar para os sacerdotes, os quais normalmente
serão seus auxiliares na defesa da estabilidade do momento e indicarão como dever de consciência a obediência
às leis editadas pelo Estado. De tal modo que os sacerdotes serão os auxiliares naturais de uma política
conservadora (conforme o Egito dos Faraós, as civilizações da Grécia e de Roma, etc.).
Disto provém a tentação, aliás permanente, de todos os cleros do mundo, no sentido de regredir ao sacerdócio
pagão. A religião exige do sacerdote, e exige-o em nome de Deus, o que o poder estabelecido só ode exigir em
nome da lei. O sacerdote brande a ameaça das sanções eterna, quando o poder estabelecido pode ameaçar
apenas com a prisão ou com um processo legal. Graças a Deus, o clero bem sabe que deve resistir à tentação. Se
não o sabe, é porque foi malformado, é um clero infantil e isto, infelizmente é coisa que também ocorre.
Tal atitude vai dar na imaginação falaciosa, tão perigosa quanto possível, de um deus que está no passado, de
um deus que, de certo modo, é contemporâneo à idade de ouro. A ela se apela para que seja mantido o status
quão e para que o futuro deixe de ser ameaçador, porque vinculado a mudanças que todos temem.
Necessidade de exorcizar o medo do divino
Para evitar mal entendidos, quero deixar bem claro que não me refiro à fé cristã, mas à religião enquanto
fenômeno universal. A segunda necessidade humana que origina a religião é a necessidade de exorcizar o temor
que espontaneamente se experimenta em face do divino, um divino do qual não se sabe muita coisa. Será o sol
deus? O raio? Estará Deus atrás do sol ou do raio? No se sabe. O certo é que o paganismo adorava tudo e
sacralizava todos os objetos da natureza: há vacas sagradas, serpentes sagradas, árvores sagradas, pedras
sagradas. O pagão espontaneamente imagina um poder soberano situado mais ou menos por trás dos fenômenos
naturais, numa espécie de além mundo. O que Nietzsche chamava, na crítica da religião, um “transmundo”.
O sentimento religioso, por um lado, faz nascer um deus do passado e, de outro, um deus que será situado num
transmundo, um poder do qual dependemos, ao qual podemos agradar, mas ao qual podemos igualmente irritar.
Este é o poder que fez luzir o sol e cair a chuva benfazeja, mas é o mesmo que desencadeia os ciclones e o raio.
É necessário, portanto, torná-lo favorável e apaziguá-lo.
Essa é uma caricatura da oração, oração propriamente pagã, embora, de outro môo, a gente creia que é cristã.
Para conseguir o favor desse deus e apaziguá-lo, utilizam-se orações (que lhe agradam) e sacrifícios (que terão o
efeito de apaziguar a todo-poderosa divindade). A religião apresenta-se portanto, como um sistema de ritos e
observâncias realizados para tornar favorável a divindade. Tais ritos e observâncias passam naturalmente ao
estado de hábitos e tais hábitos são considerados sagrados. Os hábitos serão sacralizados. Tal seria a religião em
estão puro, isto é, sem fé.
A utilização de Deus
A ampla literatura suscitada por Marx, Nietzsche e Freud explorou o tema da religião que vai dar num deus do
passado, do além ou do transmundo e, na prática, em observâncias e ritos: evidentemente, caricaturas de oração,
�da quais é preciso dizer que não desaparecerão a não ser quando formos capazes de fazer se desvanecerem as
caricaturas de Deus. Há um paralelismo entre as caricaturas de Deus e as da oração; e torna-se manifesto que
nos modernos grupos cristãos ainda há muitas revivescencias do paganismo.
Uma das mais grosseiras e ao mesmo tempo mais sutis caricaturas de Deus é a do mágico supremo, o Deus
considerado útil para a satisfação de nossas necessidades, o todo poderoso a quem apelamos quando forçados a
reconhecer nossa própria impotência. A oração é então uma oração útil, dirigida a um deus considerado com
útil, como objeto de consumo espiritual, como um fornecedor que supre as nossas necessidade.
Se queremos ser autenticamente cristãos, é preciso chegar a crer que Deus é perfeitamente inútil. Só a partir de
um Deus de quem não se tem necessidade é que se pode aceder a uma adoração autenticamente gratuita. Ou o
Amor é gratuito, ou não é Amor. Tudo aquilo que introduzimos de utilidade no Amor conduz à morte do Amor,
à morte do cristianismo.
Faço aqui uma distinção, absolutamente essencial, entre necessidade e desejo. Você tem necessidade de Deus
ou deseja a Deus? Eis a questão. Tem-se necessidade por si; o desejo consiste em querer o outro por ele próprio,
não por si. O pe. Denis Vasse escreveu em seu livro Le temps du désir: “A oração que não faz a experiência da
não-necessidade de Deus tem a cor do sonho... Orar não é ‘ter necessidade’, ou “não ter necessidade’, mas
aceder a uma consciência cada vez mais viva de que somos capazes de desejar alguém por ele mesmo, de o
amar, na exata medida em que dele não necessitamos, ou na qual é impossível consumi-lo ou conhecê-lo. Orar é
revelar que, para o homem, é possível desejar o impossível”. A necessidade pode ser satisfeita, o desejo, jamais.
Desejar o outro por ele mesmo (tal é a definição do Amor) é dar início a um processo que exacerbará sempre
mais o desejo.
Nós, cristãos, temos de dialogar com o mundo ateu que nos circunda. Questões como essas são absolutamente
cruciais, no diálogo contemporâneo no qual devemos ser aquela “confraria de ausentes”, de que falava Jean
Guéhenno. Seria, portanto, necessário que acabássemos de vez com o deus caricatural que seria o quebra-galho
universal, o deus suplente que assumiria as responsabilidade, quando houvéssemos atingido nossos limites.
Notem bem: esse deus tende ao zero. Nos tempos em que a medicina era muito fraca, na época de Molière,
apelava-se à oração sem hesitar. Com o progresso da ciência, muito tempo se passa antes que se peça a Deus
que tome providencias. Eis porque esse Deus, considerado o quebra-galho universal , esse deus falso, tende ao
zero. Não digo que ele atinja esse limite, digo que ele tende a isso e que é, de algum modo, inversamente
proporcional ao progresso da ciência.
ORAR POR QUÊ?
FUNDAMENTOS DA NECESSIDADE DA ORAÇÃO
A partir daqui, não é mais possível desconfiar da oração propriamente evangélica, ela é absolutamente
necessária. É a oração que nos faz aceder ao mais alto nível de gratuidade e nossa vida vale o que vale sua
gratuidade, a gratuidade do amor. É evidente que se deve orar, que a palavra sobre Deus, o discurso teológico,
deve chegar à palavra dita a Deus. Certamente, não haverá palavra dita a Deus, se não se souber de que Deus se
trata. Toda palavra dita a Deus implica uma palavra sobre Deus, uma catequese e o conhecimento de uma
doutrina. Mas o essencial é definitivamente a palavra dita a Deus. Vou enumerar alguns dos mais profundos
fundamentos da necessidade de uma oração pausada, mas ca qual basta a si mesmo.
Deus nos dirige uma oração
A oração do homem é uma resposta à oração de Deus. Só se deve mencionar com absoluta circunspecção os
mandamentos e mesmo a vontade de Deus. Longe de mim a intenção de riscar as palavras tradicionais que o
próprio Jesus empregou, mas elas precisam ser corretamente entendidas. Não se trata de vontade imperativa.
Num meio em que todos se amam, por exemplo, numa família, ninguém manda, ninguém dá ordens, todos
pedem, manifestam um desejo dizendo: “Você poderia?”, ou “faça-me o favor”, ou “ficaria muito grato se me
atendesse o desejo”. Pessoalmente, prefiro falar do desejo de Deus que deve ser atendido, tanto temo que
atribuam a Deus não sei que autoridade e espírito ditatorial, se entendermos mal os termos “vontade” ou
“mandamentos” de Deus. Notem que a palavra “mandamento” provém do latim mandatum, origem da palavra
“recomendação”. Os mandamentos de Deus indicam um limiar, aquém do qual não existe amor.
�Conforme Jean Lacroix, numa frase que não me canso de citar: “Amar é prometer e prometer a si mesmo jamais
empregar atitudes de força com o ser amado”. Os meios de força, no Amor humano, são múltiplos: vão desde a
muito inocente sedução até a abjeta violação e, entre ambos, persiste toda uma gama de atitudes de força.
Deus é o Todo Poderoso, mas seu poder se constitui pela recusa a utilizar a a força – eis a grande revelação de
Jesus Cristo. O Amor é que é poderoso; ora, precisamente, o poder do Amor é literalmente renúncia ao poder.
Aquele que renuncia ao poder não manda, pede. Deus nos faz um pedido.
A vida com Deus é uma troca de pedidos; é, de uma e outra parte, expressão de um desejo. Deus nos comunica
seu desejo de nos ver plenamente homens, de nos alçar do mais alto nível possível da existência à mais pura
qualidade do ser. Nada mais terrível na vida humana, que tornar-se medíocre sem perceber. Deus nos diz
precisamente uma coisa: sai da tua mediocridade, não te degrades, ascende ao mais alto nível humano. Tal é o
seu desejo e todo o seu Evangelho. Retribuindo, exprimimos o desejo de que Ele seja glorificado e de que nossa
própria santificação seja sua gloria e sua alegria. Segundo Paulo, devemos imitar a Deus; e isso é algo que não
podemos deixar de fazer: imitar a Deus em eterna oração diante do homem.
Deus é um tu que nunca se tornará um ele
Gabriel Marcel escreveu: Deus é um Tu que nunca virá a ser um ele”.
Quando falamos de Deus dizendo Ele, não se trata mais de Deus e sim de um objeto. Fala-se de um objeto,
quando Deus jamais será objeto; Ele é sujeito. Deus não pode ser complemento de um verbo, a não ser que se
trate de uma caricatura de deus. Por outro lado, Deus nunca está ausente; dizemos “ele” ou “lhe”, ao falar de um
ausente. Quando alguém está presente, não se diz “ele” e sim “tu”.
O Tu dito a Deus (ou o Vós, pouco importa, o que interessa é que seja uma segunda pessoa) é aquilo a que
chamamos raiz da oração. Neste mundo, tudo é diálogo. Há o diálogo com nós mesmos, ao qual chamamos
pensamento; há o diálogo com as coisas e os acontecimentos, ao qual chamamos ação; há o diálogo com os
outros, ao qual chamamos amizade ou Amor e há o diálogo com Deus, ao qual chamamos oração.
Mas este diálogo com Deus não se apresenta aos demais diálogos, não é exterior a eles, pois Deus não é um ser
que se acrescenta aos demais seres. Como dizem os filósofos, Deus não faz parte do número das criaturas; não
existimos, aqui, nós todos, a perfazer seiscentos ou setecentos e depois, Deus acima de nós. Aí está seu
mistério; Ele é outro e não é outro. Ele é mais eu que eu mesmo, é interior a todos os diálogos que tenho comigo
mesmo, com as coisas e com o outros. Nas palavras de Claudel, ao traduzir Agostinho (intimior intimo meo),
Deus é em mim mais eu mesmo que eu.
Deus não é um terceiro, quase ousaria dizer um terceiro concorrencial, como aliás é considerado por bom
número de ateus que recusam Deus precisamente como terceiro. Um personagem de Dostoievski, do grande
romance intitulado Os demônios, suicidou-se por não poder encarar o olhar de Deus que o violava. Por isso é
arriscado falar de um olhar de Deus: não é um olhar que olha, menos ainda que vigia (“o olho estava na tumba e
olhava Caim”)!
Prestemos atenção a certas expressões que utilizamos com as crianças: “Seus pais não o vêem, mas existe
alguém que o vê em todos os momentos: Deus”. Horror! Isso pode levar ao suicídio! Jean Paul Sartre, num
livrinho autobiográfico, As palavras, confessa que ele também tentou se suicidar na sua infância muito puritana
passada na Alsácia entre os Schweitzer. Ele havia brincado com fósforos e queimado um tapete; tentou
camuflar o estrago, mas afinal disse de si para si: “Mamãe não verá isto, mas Deus está vendo”. Fugiu, fechouse no banheiro, pensou que ia enlouquecer ao pensar: “Minha consciência é perpetuamente violada pelo olhar
de Deus”. Foi este o momento em que começou a perder a fé.
Deus não olha para nós. Vocês não desejariam que fossemos um espetáculo para deus. É preciso destruir todas
essas imagens, pois as conseqüências são terríveis. O homem seria um espetáculo para Deus? Não tenho a
menor vontade de fazer um showzinho para vocês, para ninguém, nem mesmo para Deus. Recuso-me a isto em
nome da minha dignidade. Dou graças porque o Deus que nos foi revelado por Jesus Cristo não é um Deus que
nos observa. É um Deus que nos abraça – o que é muito diferente.
A oração é uma troca de confidências entre Deus e o homem
A Revelação é uma confidência de Deus ao homem (assim podemos definir a Bíblia); a oração, em
contrapartida, é a confidência do homem a Deus. A Revelação afeta o ritmo do coração de Deus. Como bate o
coração de Deus? Quem é Deus? Qual é a sua vida? Seu segredo? É um mistério para vocês.
Se os amo, lhes confiarei o mais profundo do meu ser, mas só farei isso se os amar. Não existe confidência sem
amor (não irei contar a um desconhecido, na rua, toda a minha vida); e reciprocamente, não existe amor sem
confidência (não consigo imaginar um noivo a dizer à noiva: Te amo, mas nada saberá a meu respeito”). Nada
�existe de mais comovente quanto a passagem do coleguismo à amizade, caracterizada precisamente pela troca
de confidências; e a amizade, ao passar para o amor, aprofunda a confidencia até a transparência.
À confidência de Deus, o homem responde confidenciando ao Senhor seu ser profundo; confidência por
confidência, partilha de coração a coração com Deus. Nós lhe exprimimos nossa vida com seus desejos,
dificuldades, angústias alegrias. A verdadeira atitude do filho de Deus é a atitude de confidencia. Decerto não
contaremos a Deus nenhuma novidade; o que somos Ele o Sabe. Não se trata, aliás, de contar coisas, mas de
permanecer numa atitude de verdade profunda, atitude dos filhos e filhas de Deus, no decorrer de sua
divinização.O normal, portanto, é uma atitude filial, ou melhor, uma atitude de confidência.
O Amor não é mudo, e a oração é expressão do Amor, do mesmo modo que a confidência. Se me disserem que
dois namorados podem ficar juntos e mudos durante longo tempo, responderei que neste caso o mutismo é a
suprema qualidade da palavra. Nada deve carecer de expressão, o que não é expresso se degrada e termina por
não ser. A oração é a expressão da fé.
A oração é o acolhimento do dom de Deus
Se o Amor é, ao mesmo tempo, dom e acolhimento, não devemos ser apenas “doadores”, mas igualmente e
antes de tudo, acolhedores. E aqui chegamos ao especificamente cristão. Muitos não-cristãos dão muito, não se
trata aqui de pôr em dúvida a autêntica generosidade de muitos deles. Não há estatísticas para determinar essas
coisas e mais vale não qualificá-las, pois nada nos assegura que os cristãos se revelariam os mais generosos
dentre os homens. O que caracteriza o cristão é seu poder de acolhimento. O cristão acolhe de Deus o que em
seguida dará aos homens. O que faz o cristão é o poder de acolher. Acolhemos o dom de Deus e damos aos
nossos irmãos o Amor, que nos foi dado por Deus e que nos possibilita o ato de dar.
O Pe. H. de Lubac escreveu, certa vez: “Toda atividade que merece ser chamada cristã desenvolve-se
necessariamente contra um fundo de passividade”. Ele não temia a palavra “passividade”, que talvez pudesse
ser substituída por acolhimento; não creio que nossos contemporâneos venham a suspeitar do vocabulário do
acolhimento.
Amar não é dar apenas, é igualmente acolher. Ora, é acolher o beijo divino. O beijo é um símbolo magnífico.
Nele é que se percebe o que é a reciprocidade no amor humano, de acolhimento e dom. Diz um Salmo: “Dilata
a tua boca e eu a encherei. Acolho em mim teu sopro e em ti verto meu sopro”. A troca de sopros com a
reciprocidade do acolhimento e dom, significa o intercambio profundo das almas. Isto é tão verdadeiro que o
mesmo vocábulo latino (anima) significa sopro e alma. Eis um bom motivo para não se prostituir o beijo, que é
magnífico.
A oração é contemporânea da tomada de consciência
Daquilo que Deus é e do que Ele fez na vida humana
Em nossa vida, tomamos pouco a pouco consciência de certas coisas. Quando se é jovem, por exemplo, tem-se
a consciência extremamente atenuada do Amor que nos dedicam nossos pais; repentinamente, diante de uma
palavra ou circunstancia, toma-se consciência disto de um modo mais vivo e intenso.
Quando se trata de Deus, durante a maior parte do tempo, nossa consciência é muito débil e exatamente por isso
oramos tão pouco e tão mal. A oração deveria brotar espontaneamente, desde que adquiramos consciência do
que é Deus e do que Ele faz em nossas vidas.
Tomada de consciência, no interior de cada um de nossos atos livres, de que Deus confere uma dimensão divina
à nossa atividade humana humanizante. Uma atividade não é verdadeiramente humana senão quando
humanizante. Nossa tarefa, seja qual for a forma que revista, consiste em construir um mundo humano. O
homem não é, apresenta apenas um esboço de humanidade, cabe a nós fazer com que ele seja. Só há um
Homem, Jesus Cristo. Quanto a nós, estamos todos em processo de humanização e nos tornamos mais e mais
homens, à medida que fazemos atos livres, que tomamos decisões humanizantes, calcadas na justiça, no Amor,
na fraternidade e na liberdade. Quanto a isso, todos estamos de acordo.
Mas aquilo em que cremos como cristãos é que Deus está no interior dessas decisões e que as leva em conta, a
fim de lhes dar uma dimensão propriamente divina, para que nossa atividade humanizante não seja
simplesmente humana, mas humano-divina. Se um homem casado toma a decisão de trair a esposa, o Cristo não
pode tomar parte em tal decisão. Se este homem, ao contrário, decide promover corajosamente a justiça em sua
empresa, o Cristo toma parte ativa em tal decisão; não se trata simplesmente de uma decisão humana, mas
humano-divina.
�Todas as nossas decisões, minuto a minuto, dia a dia, envolvem a Deus, constroem o que chamamos de vida
eterna. Eis o que chamaria de condições cristãs, ao pensar no livro de André Malraux, La condition humaine.
Vocês têm consciência de sua condição cristã? Se têm, como querem que não brote espontaneamente a oração:
“Senhor, obrigado?” A oração é, em sua própria raiz, concomitante a uma tomada de consciência da presença
ativa e divinizante do Pai, do Cristo ressuscitado e do Espírito em minha liberdade.
Distinguem-se quatro formas de oração (antigamente se falava em adoração, eucaristia, propiciação e
impetração) expressas por quatro palavras:
- Sim: o sim a Deus é a adoração. O muçulmano adora curvando a cabeça à transcendência de Deus. Podemos
fazer o mesmo (por que não?), mas para nós adoração é, antes de tudo, o acolhimento do beijo divino, o sim ao
beijo de Deus, ao beijo divinizante. É possível que a palavra adoração provenha da palavra latina os oris, que
significa boca. A adoração é o boca a boca, o sim a Deus.
- Obrigado: Eucaristia ou ação de graças. Como não agradecer a Deus quando se toma consciência do modo
pelo qual Ele transfigura nossa vida, quando se toma consciência da maneira pela qual Ele confere a nossa vida
uma dimensão isenta da dimensão ordinária de tudo o que podemos imaginar e conceber? Como beneficiários
de um imenso legado – por exemplo de uma importante soma, doada para que se possa sair da prisão -, quem
pode deixar de agradecer àquele que deu todos os seus haveres para que sejamos homens livres? Eis uma
imagem imperfeita do que Deus é e faz por nós.
- Perdão: quando tomo decisões desumanizantes, visto que sou pecador, que querem que faça o Cristo, não as
podendo divinizar, e como querem que, ao tomar consciência disso, eu não peça perdão a Deus? Eis o que
denominamos penitência.
- Dom: é a oração de súplica pela qual, segundo o Evangelho, devemos pedir a Deus que nos dê o Espírito
Santo, ou melhor, um incremento de caridade, uma presença mais intensa em nós dAquele que é, na Trindade
(como dizem os teólogos) o Amor substancial.
Podemos pedir a Deus bens materiais? Certamente, e a Igreja a isto nos encoraja. Se me abstiver de expressar a
Deus o que humanamente desejo (saúde, êxito, não ser traído no amor) é que não o considero como Pai. Os
pedidos materiais significam que nos situamos em relação a Deus, em atitude de acolhimento filial.
Todos esses pedidos não passam de indício de um pedido muito mais profundo: ser invadido por Deus,
transformado por Ele. Este é o pedido sempre atendido, exatamente como atendemos os nossos pulmões ao
respirar. Quanto mais progredimos na vida espiritual, tanto mais a nossa oração se reduz a pedir a Deus aquilo
que Ele nos quer dar, isto é, um incremento de Amor. O Evangelho é claro quanto a isso: “O Pai do céu dará o
Espírito Santo àqueles que o pedirem (Lc. 11,13). Nosso Pai nos dá o Espírito santo, contanto que nos
disponhamos a acolhê-lo.
A oração é o exercício de gratuidade
Jamais enfatizaremos bastante a urgência da gratuidade. É o outro nome do Amor e nós vivemos num século
onde quase nada é gratuito. A arte poderia ser um exemplo, é verdade, mas a própria arte é comercializável. Nós
o verificamos no âmbito do cinema, por exemplo. Estamos realmente sob o domínio do útil. Os cristãos
deveriam tomar a si a tarefa de abrir, na sociedade, um espaço de gratuidade.
Orar para quê? Para nada. Simplesmente porque Deus é Deus. E se o desejo de Deus é que eu me eleve à mais
pura gratuidade, exercerei tal gratuidade por meio de uma parada na atividade humana, oferecendo a Deus o
meu tempo, um tempo que é a própria trama na qual se tecem todas as minhas atividades (o tempo é o que há de
mais fundamental na existência humana).
Desligo a eletricidade, apago a Lâmpada e digo a Deus: dou-te o meu tempo, por não poder te dar outra coisa.
E esse pouco tempo, eu o entrego como a pecadora do Evangelho, que poderia ter vertido algumas gotas de
perfume nos pés de Jesus, mas preferiu quebrar o frasco; também eu quebro o frasco, gratuitamente, em troca de
nada. A partir de então não há mais objeção contra a oração. Isso não lhes diz nada: Nada. Não importa, dêemlhe tempo. Mas nada tenho a dizer a Deus! Não digam nada, dêem-lhe o tempo, É uma verdadeira morte, pouco
duradoura, é verdade, mas a experiência ensina que morrer nos repugna, nem que seja alguns minutos por dia.
Emanuel Mounier (Deus abe que foi um homem ativo. Ele morreu aos 50 anos por excesso de atividade)
escrevia: “Retirar-se da agitação não é buscar repouso. Aquele que, ao descer em si mesmo, não se detém na
calma dos primeiros abrigos e decide levar a cabo sua aventura, esse é, sem demora, precipitado à distância de
todos os refúgios. Artistas, místicos, filósofos viveram, não raro, até a exaustão, esta experiência integral que,
�muito estranhamente, costuma chamar-se ‘interior’, pois eles são arrojados aos quatro cantos do universo”. A
oração nos lança no engajamento a serviço de nossos irmãos. Mas, afinal, para chegar onde? À verdadeira
interioridade. Por que é preciso que todos os homens saciem a fome, tenham habitação decente, sem sentir
angústia no fim do mês? Para que sejam autenticamente homens, quer dizer: para que entrem dentro de si,
habitem a própria profundeza e sejam capazes de dar de modo autêntico, de ser “doadores”.
Impõe-se em nossos dias um esforço de purificação intelectual no plano da fé (não é mais possível cristãos
autênticos permanecerem infantis), mas esse esforço deve ser acompanhado de um aprofundamento, vivido na
oração, a fim de não pôr a fé em perigo. “A fé de um individuo ode ser, ou se achar, pura e esclarecida, mesmo
sendo frágil, abstrata e, por assim dizer, incapaz de levantar uma partícula de pó. A fé não é um assentimento
casual, dado aos valores ou às verdade, mas adesão pessoal ao Deus vivo” Pe. H. de Lubac).
É normal que o conteúdo sentimental da oração seja purificado, visto haver sempre, no sentimento, algo voltado
para a própria pessoa. Se desejamos que a oração seja o Outro, querido por Ele mesmo, é preciso consentir na
clivagem de todo sentimento. E essa é uma provação extrema, os místicos o sabem. Todos eles experimentaram
a Deus como deserto e a oração como oásis silencioso, no deserto. No limite, Deus não é verdadeiramente Deus
para nós a não ser quando não é sentido. Pois todas as vezes em que o sentimos, o que tomamos por Deus é um
sentimento sobre Deus.
A fé é diferente do sentimento religioso! Segundo Teresa de Ávila, “as mulheres fraquinhas, como eu, têm
necessidade de sentimento para orar, isso é compreensível; mas quando vejo homens adultos que oram apenas
quando sentem vontade de fazer, isso me irrita!” Eis o que é autenticidade na oração.
Terminarei citando a admirável oração de Soljenitsyn, composta por ele no dia em que recebeu o premio Nobel:
Como é fácil viver Contigo, Senhor,
Como é fácil crer em Ti!
Quando, perplexo, meu espírito esquiva-se e verga,
Quando os mais inteligentes não vêem nada além da noite,
E não sabem o que fazer no dia seguinte,
Tu me infundes a certeza calma de que existes
E velas para que não se fechem todos os caminhos do bem
E eu, sobre a crista da glória terrestre,
Considero com espanto esse caminho que atravessa a desesperança,
Esse caminho h qual consegui, apesar de mim,
Enviar à humanidade um reflexo de teus raios.
Tudo o que for preciso refletir ainda
Tu mo concederás.
T tudo o de que eu não puder Sr reflexo,
Há de significar que o concedeste a outros.
(ICI, 15 de dezembro de 1970)
LUTEMOS CONTRA O MAL E O
SOFRIMENTO
Abordemos o problema do mal e do sofrimento. Faço-o com timidez, porque é fácil falar quando não se sofre.
Porem, diante do sofredor, é preciso enfrentar a questão com mãos de enfermeira, com muita delicadeza. Nada
mais insultuoso para alguém que sofre ou que é vítima do mal do que lhe forncer, em tom seguro ou categórico,
�soluções inadequadas. No entanto, não se pode eludir a questão, pois ela nos afronta desde o surgimento dos
homens sobre a terra.
Todo problema existe para ser resolvido. E eu me pergunto se há solução para o mal e o sofrimento. Mais que
de um problema, é preciso falar de escândalo, pois é de escândalo que se trata, e tentaremos buscar um meio de
transformar o escândalo em mistério.
O ESCÂNDALO DO MAL...
O mal, sob suas duas formas, sofrimento e pecado, é o que fere nossa vontade mais profunda, nossa
consciência. O mal é algo que não podemos nem compreender (não existem soluções) nem amar (é um
escândalo). O problema é proposto com acuidade particular para o cristão. Porque ser cristão significa não ser
dualista, não crer na existência de um princípio eterno do Mal em face de um princípio eterno do Bem, que é
Deus. Afirmamos que ]Deus é o criador de tudo o que existe, não podendo, porém dizer que Ele é o criador do
mal, pois isso só faria dobrar o escândalo. Que deus seria esse?
Por outro lado, afirmamos que Deus é todo Amor e nele só pode haver amor. Quantas vezes me arrisquei a dizer
aos incrédulos: o essencial da fé cristã é a afirmação de que Deus é Amor. Sabem a resposta que me davam?
“Pois quase não se percebe!” Por isso eu disse que é preciso delicadeza e que não se deve afirmar que Deus é
Amor como se afirmaria que dois e dois são quatro, ou que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a duas
retas: “Se Deus existisse e se Deus fosse amor, guerra, tortura, doenças, epidemias, traições, luto, etc. não
aconteceriam”.
Em todos os tempos, a existência do mal tem sido evocada como argumento contra a existência de Deus. Se o
mal e o sofrimento existem, não é possível que Deus exista. Compreende-se igualmente que, em todos os
tempos, os pensadores se tenham empenhado em justificar a Deus, inocentá-lo e demonstrar que Deus não teria
podido proceder de outro modo, como se fosse necessário advogar a causa de Deus, para declará-lo inocente de
todo o mal e de todo o sofrimento do mundo.
Três argumentos para inocentar a Deus
A meu ver, todas estas tentativas de inocentar a Deus são mal sucedidas e por isso minha intenção é recomendar
extrema prudência no uso de tais argumentos.
1) O Mal seria a sombra do bem
É preciso integrar o mal num plano de realização mais vasta, onde ele desempenhe o papel de meio ou de
condição necessária a um bem maior. Num quadro de Rembrandt, as sombras são necessárias à harmonia do
conjunto e a luz não seria tão bela se não houvesse sombra. Com relação à beleza do mundo, o mal e o
sofrimento são necessários para fazer ressaltar o bem. Experimentem dizer isso a alguém que sofre! Ora, este
argumento é desenvolvido por grandes filósofos, tais como Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes. Escreve
este último: “A mesma coisa que poderia, talvez com alguma razão, parecer muito imperfeita, se estivesse só...
é perfeita se contemplada como parte do universo”.
Leibniz, que levou mais longe essa idéia, afirma que “o mal não é mais mal se é um momento necessário ao
progresso”. Stalin não diria coisa diferente. Nem Hitler. Quanto a este, a supressão de seis milhões de judeus era
condição de progresso da humanidade. Para Stalin a liquidação de todos aqueles que se opunham ao seu regime
também. O mal, dizem, perde o caráter de mal quando encarado na perspectiva do desenvolvimento total: o
sofrimento não passa de uma crise de crescimento; a guerra é o parto da história; o sacrifício das gerações
presentes abre caminho à sociedade futura.
O cristão deve recusar tal argumentação, pois ele se situa do ponto de vista do sujeito, daquele que sofre e
padece injustiça. Ele pensa que tal justificativa para o mal não é apenas superficial, mas injusta e que portanto, a
esse título, é igualmente um mal. Não seria fazer desaparecer o mal, seria acrescentar mal ao mal. Há
argumentos não apenas ineficazes, mas moralmente maus e literalmente escandalosos. Tal filosofia não é
possível a não ser que se desconsidere totalmente o indivíduo, a pessoa, o homem concreto. Eu protesto: o que
existe é o homem.
Berdiaeff tinha razão ao escrever: “Que valor pode ter a idéia de ordem e harmonia do mundo e pode essa idéia,
de algum modo. Justificar a injustiça dos sofrimentos da pessoa?” Ora, é a pessoa que está no âmago do
cristianismo. Hoje em dia insiste-se muito no tema da comunidade, o que está muito certo. Mas comunidade
significa comunidade de pessoas e as comunidades existem para o bem das pessoas. Cada ser humano é objeto
�do infinito amor de Deus. Não pode ser uma condição para outra coisa, um meio para a beleza do mundo. Numa
perspectiva cristã, a gloria de Deus não pode servir para justificar o sofrimento e o mal de uma s[o criatura
consciente.
A verdade situa-se, ao contrário, nas palavras de Ivan Karamazov, no romance de Dostoievski: “Mesmo que a
imensa fábrica do universo construa as mais extraordinárias maravilhas à custa de uma só lagrima de uma só
criança, rejeito-as” O cristão opõe-se à idéia de que, no pensamento divino, uma geração possa ser reduzida à
condição de simples meio para a realização da humanidade futura. Cada momento do tempo conta aos olhos de
Deus. As riquezas e o progresso do futuro não poderiam compensar o mal sofrido por pessoas humanas.
A partir deste tema, são infindáveis as variações. Afirma-se que, no plano físico, a dor é uma advertência útil e
qu, no plano espiritual, é a provação, acima de tudo, que é purificadora. Talvez não seja totalmente errado. O
sofrimento pode gerar um acúmulo de coragem, as próprias faltas podem provocar o retorno ao bom caminho.
Muitos romances de Mauriac são construídos a partir da idéia de que é preciso ao homem descer muito baixo no
pecado, para ter condições de reagir e abrir-se à verdade e à justiça. Já hoje quem quisesse ver no sofrimento, e
mesmo no pecado, um meio empregado por Deus para o bem das suas criaturas. Chega-se mesmo a dizer que o
sofrimento é a marca da predileção divina. Quem dentre nós já não ouviu a frase: “Deus manda provações
àqueles que ama”? Quanto a mim, confesso que sou tentado a responder: “Espero, então que Ele não me ame
demais”.
Há algo de verdade nos celebres versos de Alfred Musset:
O homem é um aprendiz e a dor, seu mestre.
Ninguém se conhece enquanto não sofrer.
Mas isto prova o quê? Se a dor é uma advertência, sempre se poderia perguntar, com Mas Scheleer: será preciso
que esses sinais sejam dolorosos? Qual a necessidade de magoarem tanto? Bem poderiam ser substituído por
sininhos de alarme que não doessem, bem poderia o mestre sofrimento ser substituído por outro, para que o
homem se tornasse adulto.
Também se diz: Deus certamente não quer o mal, mas consente nele. Que acham vocês dessa distinção? Estou
questionando tudo o que posso, mas vocês não são obrigados a pensar como eu. Podem achar que os
argumentos em defesa de Deus são eficazes, mas eu quero fazê-los se confrontarem com os argumentos
daqueles que sofrem e dos espíritos mais críticos. Pensam que a tal distinção entre a vontade formal de Deus e o
consentimento de Deus tem valor? Que é que nos permite falar numa espécie de necessidade que se impõe ao
próprio Deus, como se Ele não pudesse agir de outro modo? Não esqueçamos que a onipotência de Deus é um
poder de Amor. Deus não pode destruir, esmagar, dominar, Ele só pode o que pode o Amor. Seria preciso
admitir que é o Amor que exige de Deus a permissão do sofrimento? Pode ser que sim, mas não podemos
afirmá-lo enquanto não nos situarmos na extremidade última do cristianismo.
Em todas estas tentativas de inocentar o Deus e solucionar o problema do mal, trata-se de tornar aceitável para
Deus aquilo que escandaliza ou revolta a nossa consciência. Na verdade, isso é um certo exagero. Um Deus que
tolera o mal não é mais que um ídolo. Uma consciência que recusa o mal é superior a um Deus que o tolera.
2) O sofrimento seria um castigo
Eis um tema antigo que se encontra em certas passagens do Antigo Testamento. As fórmulas populares são bem
conhecidas. “Você mereceu! Está sendo castigado porque pecou!” O homem sofreria por ser pecador.
As objeções ao tema são igualmente antigas. Não tarda a tornar-se evidente que o mal e o sofrimento de modo
nenhum são repartidos sob nossos olhos, conforme os méritos de cada um. Malebranche, um padre do século XVII
escreveu: “O sol se levanta indiferentemente sobre bons e maus, não raro abrasa as terras das pessoas de bem e
torna fecundas as dos ímpios. Os homens não são miseráveis na proporção de seus crimes”. Por conseguinte,
quando se fala em justiça, só se pode tratar de uma justiça divina, muito diversa da nossa. É grande o risco de
extrair dela o que mais agrada e ignorar a sua significação integral. Dessa forma, torna-se incompreensível e
ilusória a revolta da consciência. E é bom e saudável que a nossa consciência não se conforme com o mal e o
sofrimento.
Em face de tal concepção, elevou-se sempre um protesto, em nome do sofrimento da criança inocente e do justo. A
despeito de tudo, é chocante afirmar que os sofrimentos de uma criança são merecidos. Em A peste, de Albert
Camus, vemos precisamente um medico descrente refutando argumentos a ele propostos por um padre jesuíta.
No livro de Jó, temos, a um tempo, a tese da desgraça-castigo, na qual crêem os amigos de Jó e a proclamação,
reiterada constantemente por Jó, de sua inocência. O certo é que Deus não está ao lado dos consoladores de Jó. Os
amigos oferecem-lhe consolações absolutamente ineficazes e mesmo insultantes aos seus sofrimentos.
�É sempre a mesma pretensão de o homem se substituir a Deus. Na verdade, nada existe de tão desagradável quanto
essa pretensão de ler, nas desgraças individuais e coletivas, um julgamento divino. Isto pressupõe uma falsa
concepção da Providência. Quando eu era criança, contava-se de um homem que enganara a mulher e fora vítima
de um acidente ferroviário: eis a justiça imanente de Deus, isto é castigo bem merecido! Eu não tinha respostas
prontas, mas mais tarde pensava: e os acidentes ferroviários ou rodoviários na volta de uma peregrinação a
Lourdes serão parte da justiça divina? Ora, essa! A Providência não está nos freios de um carro ou de uma
locomotiva que não funcionaram. Como é fácil dizer as coisas e fazer com que Deus intervenha na historia, seja lá
como for.
Há um deslizamento que destrói certo número de casas e mata muita gente nos escombros, salvando-se apenas uma
família. É uma família cristã e o pai propõe à mulher e aos filhos que se ajoelhem e agradeçam a Deus o havê-los
protegidos. E, no entanto, Ele os protegeu, só a eles e não a outros. Não estariam eles se vangloriando, pondo-se
no lugar de Deus e decifrando seus desígnios? Creio firmemente na Providência; não a situo, porem, no nível dos
acontecimentos, mas no das consciências (salvo milagre, o que é extraordinariamente raro). Deus certamente
intervém na história, mas para dar a esta uma dimensão divinizante. Ele diviniza nossas ações humanas
humanizantes.
Esses argumentos, em seu esforço para justificar a Deus em confronto com o mal, vão todos dar numa justificação
do próprio mal, o que é o mesmo que afirmar que o mal é um bem. O mal justificado deixa de ser o mal, visto ser
o mal, precisamente, o “injustificável”, conforme escreve J. Nabert. Não se consegue justificar o mal sem ferir a
consciência.
3) O mal derivaria da liberdade humana
Esse argumento é bem mais grave. Não é Deus, costuma-se dizer, mas a liberdade do homem a responsável pelo
mal. Essa afirmação de que o mal provem da nossa liberdade aparentemente inocenta a Deus e escapa às
contradições inerentes à justificação do mal. É uma afirmação válida, porem, insuficiente.
A liberdade da criatura tem como conseqüência o possível mau uso dessa liberdade, logo a possibilidade de um
mal moral, entre outras decorrências, particularmente o sofrimento. É verdade que, em grande número de casos, o
homem é artesão de suas próprias desgraças. Suprimam o egoísmo humano: incontestavelmente, deixaria de
existir grande parte do sofrimento no mundo. É preciso até levar o mais longe possível essa pesquisa destinada a
encontrar uma ligação para cada uma das formas do mal (guerras injustiças sociais, etc.) e as responsabilidades
humanas. Em que medida seriamos responsáveis por tudo quanto se passou no Camboja, pelas torturas,
perpetradas na Argentina e no Chile?
Não é fácil dizer, mas estou persuadido de que somos todos responsáveis, por sermos todos solidários. Há muito de
verdade na idéia de uma responsabilidade que ultrapassa os atos individuais e articula nossa má vontade a uma
carência na ordem do Amor.
Nosso egoísmo é responsável por muitas coisas. Escreve Max Scheleer: “O mau seria mau se eu o houvesse amado
suficientemente?” Não se pode negar que a maior parte dos criminosos são pessoas mal amadas. Lembro-me
sempre de uma jovem de 22 anos que me dizia que jamais recebera um beijo da mãe. É difícil no entanto, vincular
todas as formas do mal à liberdade humana. Será pelo mau uso que faço de minha liberdade que ocorrem
enchentes, erupções vulcânicas, ciclones, epidemias? A despeito de tudo, não é fácil afirmar que tais cataclismos
existam por causa do pecado. Quando eu era criança, perguntava por que havia mosquitos e respondiam-me: é
porque o homem é um pecador, menino! Porem, não vejo relação entre o pecado humano e esse animal que zumbe
e nos impede de dormir...
Ainda que todo mal e todo sofrimento originem-se numa iniciativa livre outrora adotada pelo homem, isso não
suprimiria o escândalo do sofrimento, para uma consciência que sofre sem ter sido a causa de seu sofrimento.
Antes de tudo; não sou eu o responsável pelo pecado de Adão e a Igreja reconhece isto. O pecado não é tomado no
mesmo sentido, quando se trata do pecado original ou do pecado atual que eu cometo. O problema retorna: resta
saber por que o homem usa tão mal a liberdade e qual o maléfico poder ou inclinação que tantas vezes incita a
vontade a querer o mal. Não me parece que a simples finitude da criatura ou sua imperfeição sejam suficientes
para justificar a freqüência e intensidade dos desfalecimentos da vontade que se chamam pecado ou crime.
Toda tentativa de justificação ou explicação do mal será sempre malsucedida. A consciência manteria seu protesto.
Em todas estas argumentações a consciência denuncia algo de radicalmente insuficiente, para não dizer derrisório.
�... PODE TORNAR-SE MISTÉRIO DE PURIFICAÇÃO
Nosso escandalizado protesto contém um ensinamento: não poderia ele nos conduzir a _ em face do problema do
mal – tomar outra atitude? Em vez de buscar a todo custo em Deus a justificação do mal, não deveríamos
descobrir Deus no núcleo de nossos protestos e esforços pela supressão do mal, ou pelo menos, para sua
superação? “Deus se manifesta na lagrima vertida pela criança que sofre e não na ordem mundial que justificaria
essa lágrima” (Berdiaeff).
O cristão, eu diria mesmo, o filósofo, é levado a rejeitar uma explicação do mal que só pode ser estéril e
insuficiente, para voltar-se para a atitude concreta que o homem deve tomar em face do mal. Devemos renunciar
definitivamente a encontrar explicação, função, finalidade para o mal e para o sofrimento. Mesmo no interior da
fé, não há explicação para o mal. A fé não existe para explicar as coisas (essa tarefa pertence à ciência ou à
filosofia). Deus não explica o problema do mal, Ele não é um professor que nos ofereça resposta de professor às
perguntas que lhe faríamos. Não responde à nossa curiosidade intelectual. O mal não foi feito para ser
compreendido, e sim para ser combatido.
O mal é o não-sentido, o sofrimento é absurdo. Impossível encontrar sentido para eles. Será que haveria sentido?
Poderia eu, com a minha liberdade, encontrar sentido para o mal e o sofrimento? Bem disse Berdiaaeff:
“Objetivamente, é não-sentido que reina neste mundo, na vida (ele vai longe!), mas a vocação do espírito é a de
lhe dar sentido”. Para tanto, proponho a vocês algumas reflexões muito simples:
1) Manter as exigências da consciência
De início, é preciso reconhecer lucidamente o mal e recusar falsa soluções. Para o cristão, não se trata de encobrir o
mal, como se o mal fosse necessário para melhor ressaltar a bondade divina; ao contrário, trata-se de identificá-lo
em toda a parte onde o denunciar a consciência. Deve-se manter com firmeza as aspirações e exigências da
consciência. Os progressos da consciência é que fazem surgir formas cada vez mais numerosas do mal e da
injustiça no mundo. Não faz muito tempo, os cristãos não achavam escândalos o fato de garotos de 8 anos
trabalharem à noite nas padarias.
Os avanços da consciência é que tornam evidente que, em grande número de instituições sociais e políticas, há
coisas erradas que exigem reforma. Quando a consciência é despertada da inércia, surgem novas formas do mal, às
quais ela era antes insensível. Devemos conservar a capacidade de indignação e cólera. Devemos recusar com
energia o diletantismo, o farisaísmo e o fanatismo que se propõem “resolver na história o problema do mal por
meio de técnicas de aniquilação (E. Borne). Não nos resignemos ao mal, sejamos capazes de denunciá-lo sempre
com lucidez.
2) A vocação para a alegria é mais forte que o mal
A revolta da consciência diante do mal seria um absurdo se não se enraizasse numa certeza. Se não quisermos nos
resignar a ter como absurdas as nossas mais fundamentais aspirações à justiça, ao bem, ao amor e à fraternidade e
a declara r que não passam de ilusão, é necessário admitir que, subjacente ao escândalo do mal, há uma aspiração
que, de certo modo, nos assegura que o mal está superado. Não é por havermos sido feitos para a alegria, por
termos a vocação da felicidade que protestamos contra o mal e o sofrimento? Afirmo que, se essa vocação,
gravada no mais profundo da nossa consciência, não fosse uma vocação para a alegria, nossa indignação contra o
mal e o sofrimento não seria o que é.
Na salvação proposta por Jesus Cristo se consumará definitivamente a vitória da Alegria. Bem nos disse o Cristo:
“Quero que onde eu estiver, estejais vós também (Jo. 14,3). Divinizados e introduzidos no próprio coração da
Trindade, participando das relações de Amor das Três Pessoas, nos presentearemos uns aos outros com o Dom
que as Três Pessoas fazem de si mesmas uma à outra. Nossa alegria será a alegria de Deus.
3) Passar do ter ao ser
É a fé que nos permite dar sentido ao não-sentido que é o sofrimento. Não direi mais o mal, direi o sofrimento.
Quanto ao mal, só há uma coisa a fazer: arregaçar as mangas e trabalhar tanto quanto possível, com o fito de o
diminuir, se não o pudermos suprimir. O sofrimento; eu os convido a situarem-se naquilo a que chamo a
extremidade da fé cristã. Quando nos defrontamos com a cordilheira do monte Branco, enquanto o sol se põe (por
�exemplo, em Combloux), vemos a sombra adiantando-se para a montanha, pouco a pouco subindo por ela; seguese um momento em que vemos um ponto luminoso, uma pluma, é o cimo, iluminado ainda pelo sol poente, o
último dos 4.807 metros e, subitamente, tudo se apaga. Para que o sofrimento não seja para nós um escândalo, é
preciso que permaneça um mistério de purgatório correlativo ao mistério do céu, mistério de purificação.
Se fosse o caso de contemplar a Deus eternamente, como belo espetáculo ou bela obra de arte, uma purificação tão
completa, tão total, que cresta as nossas próprias raízes do egoísmo, não seria absolutamente necessária. Mas,
desde que o Deus vivo é todo Amor, desde que minha vocação humana é entrar nele para viver eternamente como
parte de sua vida e tornar-me capaz de amar como Ele ama, é preciso que eu admita que nem um átimo de egoísmo
pode subsistir onde não há senão Amor. Eis porque a mais alta alegria, o que faz de nós cristãos – ser eternamente
um,, com o amor infinito -, seja acompanhada de uma alta exigência: a de ser inteiramente Amor, a de ser pura,
unicamente, Amor, isento de atenção para comigo, de contemplação de mim e de retorno sobre mim.
Ora, é absolutamente certo haver em nós outra coisa, além do Amor. Mais profundo que qualquer outro, há em nós
esse sofrimento, que é nobreza, ao mesmo tempo que confissão, de não poder amar ninguém, sem amar ainda mais
a si próprio. Quando eu digo a alguém: “Eu te amo”, não sou, nunca absolutamente sincero: co demasiada
freqüência e sempre, em pequena medida, aquele ou aquela a quem confesso o meu amor são um meio para o
Amor que dedico a mim mesmo. Quando choro por um ente querido, é sempre, de algum modo, por mim que
choro. Sabemos que a essencial impureza, a nossa, consiste no fato de pertencermos a nós mesmos. Propriedade e
Amor excluem-se rigorosamente. Ora, não podemos fazer com que nesta vida mortal não sejamos proprietários,
não de bens materiais, mas de nós mesmos. Para pertencer a Deus, é preciso não pertencer a si. Para deixar de
pertencer a si, é preciso ser arrancado de si. Mas este resgate é precisamente o que chamamos de sofrimento.
Todo sofrimento pode ser compreendido – e é esse sentido que lhe quero dar – como morte parcial, esboço de
morte. O sofrimento é o peão que a morte avança, ao longo de toda a vida. A morte é a passagem do ter ao ser, do
egoísmo ao Amor. Estes termos são aqui intercambiáveis: ter é o egoísmo, ser é o Amor. “Bem Aventurados os
pobres” quer dizer: bem aventurados os que são e os que amam. Assim é Deus. Para ser verdadeiramente, é preciso
ser despojado do ter. Esse despojamento é o sofrimento. E a morte final não é diferente do fim desse movimento de
expropriação que me arranca para fora de mim, para que, nada tendo mais de meu, eu seja todo para Deus e para o
Cristo – uma pura relação com o Outro e com os outros; a própria definição do Amor. E tendo dado isto, eu poderei
enfim entrar no Amor.
A Igreja, compenetrada pela grandiosidade do Amor de Deus e pela profundidade do enraizamento do egoísmo no
homem, acredita num prolongamento do purgatório para além da morte, tal é a profundidade e a imensidão de
Deus. Tanto estou colado a mim mesmo e atolado no mundo do ter! A suprema passagem do ter ao ser, quem a
opera, afinal, é o purgatório. “A passagem do ter ao ser é a única passagem terrível do cristianismo, não conheço
outra” (Nédoncelle). Em Partage de Midi, de Claudel, há uma frasezinha muito eloqüente que Mesa repete
obstinadamente: “Isto, pelo menos, me pertence”. Precisamente: é preciso que isto não mais te pertença, de outro
modo, não entrarás no Amor eterno, que nada tem de seu, pois Ele é tudo e esse tudo é um tudo dado.
Minha saúde, pelo menos, me pertence: o sofrimento da humilhação, da decadência intelectual.
Jó: sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas mulas e grande número de servos; isto
pelo menos, é meu. Quando não lhe restou mais nada que lhe pertencesse, disse Jó: “Nu saí do ventre de minha
mãe e nu voltarei à terra” (Jó 1,21). Ele tem razão, só que não se trata do ventre da terra, mas do seio de Deus: ali
só se pode entrar nu.
E eu, com voz de enfermeira, direi o seguinte:
“Minha mulher, pelo menos, me pertencia; meu marido, pelo menos, me pertencia”. É verdade e, segundo o desejo
de Deus, vocês eram, ela e você, dois numa só carne. Mas reconheça que, amando-a, você amava um pouco a si
próprio. Doravante, não tem a presença dela, que o encantava e o satisfazia; agora você ama, só ela, sem amar a si
mesmo.
“Meu filho, pelo menos, me pertencia; minha mãe, sua ternura me pertenciam”. Eis os lutos.
“Meu êxito me pertencia”; eis o malogro.
“Meu passado me pertencia”, eis que desde já, alteram-se minhas faculdades e meu passado começa a tomar ares
de casa alheia. “Minha vida, pelo menos me pertencia”; eis a morte, onde todos entram absolutamente sós,
trazendo consigo apenas o que davam. O que deixamos de dar aí fica, apodrecendo pouco a pouco, mas aquilo que
foi dado transformou-se em ser e nós o levamos conosco para a eternidade. Porque o nosso ser é construído pelo
que damos, à imagem de Deus que, se assim nos podemos expressar, é eternamente construído por seu próprio
Dom.
Para terminar, apresento três textos, um deles de um filósofo, outro de um romancista e o terceiro de um sábio.
Escreve Maurice Blondel: “O homem não pode ganhar o próprio ser se não o renegar, de algum modo, para o
devolver ao seu princípio e ao seu fim. Renegar o que tem de próprio e aniquilar esse nada que ele é (aniquilar tudo
o que em nós é nada quer dizer: tudo o que não é Amor), é receber a vida à qual aspira, mas da qual não tem em si
a fonte. É preciso da tudo por tudo...”
�André Gide, nos anos que se seguiram à guerra de 14-18, enquanto se aproximava da conversão, escreveu: “Aquele
que ama a própria vida, a própria alma e protege sua personalidade, cuidando da figura que faz no mundo , a
perderá. Mas aquele que abandonar a vida torná-la verdadeiramente viva e assegurara para si a vida eterna: não a
vida futuramente eterna, mas aquela que, desde já, desde o presente, faz com que se viva na eternidade. Se o grão
não tomba na terra e não morre não poderá dar fruto. Ressurreição na vida total. Esquecimento de toda felicidade
particular”.
E eu acrescento, com Teilhard de Chardin: “Se entendermos plenamente o sentido da Cruz, não mais nos
exporemos a achar a vida triste e feia. Teremos nos tornado mais atentos a sua incompreensível gravidade”. E,
prefaciando o livro onde estão consignadas as notas de sua irmã, que foi toda vida muito doente, escreve: “Oh!
Marguerite, minha irmã, enquanto eu, dedicado às forças positivas do universo, corria por mares e continentes,
entusiasticamente empenhado em contemplar a aparição de todos os matizes da terra, você, imóvel, estendida,
metamorfoseava silenciosamente em luz, no mais profundo de si, as piores sombras do mundo. Aos olhos de Deus,
diga-me, qual de nós teve a melhor parte?”
Conclusão
A EUCARISTIA: RECAPITULAÇÃO
DE TUDO
O mistério da Eucaristia é de tal profundidade, seus aspectos são tão diversos e complexos que não se pode esperar
esgotar-lhe o conteúdo numa conferencia. Efetivamente, a Eucaristia é uma recapitulação de tudo, o ponto a partir
do qual todas as linhas divergem e a partir do qual elas convergem. É a unidade de Deus e do homem no Cristo; do
passado, do presente e do futuro; da natureza e da história; do acolhimento e do dom; da morte e da vida etc. Vou
me limitar a alguns aspectos, aqueles que me são caros.
�UNIÃO AO CRISTO QUE SE DOA EM ALIMENTO
A Eucaristia é o sacramento pelo qual o Cristo se oferece como alimento à humanidade, para transformar os
homens nEle próprio e constituir o Corpo Místico que é a Igreja (“místico” não se opõe a “real”). Para
compreender isto é preciso retornar sempre ao que foi dito na primeira conferencia: o desígnio fundamental de
Deus é unir todos os homens no Amor, fazendo-os participar de sua própria Vida. Como estou sempre a repetir,
Deus partilhou de nossa humanidade, para que possamos compartilhar de sua divindade. Em outros termos, nossa
humanidade tem por fim a nossa divinização, a criação, a Aliança.
A Aliança, com efeito, a máxima realidade da Bíblia, com as diferentes etapas que se estendem de Noé a Jesus
Cristo, que consagra “o cálice da Nova Aliança”. Não é união jurídica, é união de Amor. Eis o motivo pelo qual, de
uma à outra extremidade da Bíblia, circula o simbolismo do casamento. E a Tradição sempre vinculou
estreitamente o sacramento do matrimonio ao sacramento da Eucaristia.
Deus cria a humanidade para desposá-la e o faz ao encarnar-se. Desposar, no mais forte sentido, significa fazer
com ela uma só carne. Deus quer ser, com a humanidade inteira, uma só carne.
Eis a verdade das coisas. Nós sabemos que as aspirações profundas do Amor conjugal não se detêm no abraço de
dois corpos que permanecem exteriores ao outro. A aspiração do Amor é a fusão sem a confusão, na qual cada um
só deseja subsistir para deixar-se consumir pelo outro, tornando-se, de certo modo, seu alimento e carne de sua
carne.
O simbolismo do beijo é muito eloqüente. É o início do gesto de comer. As mães dizem que os filhinhos são
“gostosos de morder”. Seria como se alguém quisesse comer o outro e deixar-se comer por ele, a fim de se tornar
carne de sua carne. “Eu te amo” significa: “Quero deixar-me consumir e consumar por ti, tu és minha razão de vier.
O homem e a mulher não conseguem realizar a aspiração de seu amor, porque os corpos, que são o instrumento da
sua união, são, ao mesmo tempo, obstáculos à união total. Seu voto não se cumpre, pois ele envolve uma morte,
para a natureza e a história. E necessário morrer para esta natureza, que faz com que permaneçamos exteriores uns
aos outros e que, mesmo nos momentos de união muito íntimos, não se realiza-se a fusão total e eles não durem
mais que um instante. Tornar-se verdadeiramente a carne da carne do outro daquele que amo, implica a morte.
É o grande sonho do romantismo alemão: na ópera de Wagner, Tristão e Isolda cantam-se a impossibilidade de
conhecer a plenitude do amor a não ser na morte. No segundo ato, o amor e a morte entrelaçam-se em temas
musicais admiráveis, que se tornam indiscerníveis um do outro. É muito belo, mas termina por tornar-se absurdo,
visto que a morte não é a realização do amor. Ela introduz, antes, um brutal obstáculo. Eis a razão pela qual, neste
mundo, a mais profunda aspiração do amor jamais se realiza em plenitude. Entrar no amor é entrar na alegria, mas
é igualmente entrar no sofrimento. O inevitável sofrimento do amor não consumado. A suprema aspiração do
amor nunca pode ser atendida no plano natural da existência. A natureza do homem se opõe a isso.
Mas o Cristo, por ser Deus e isento de pecado, pode renunciar ao seu ser natural e histórico imediato. O Cristo
pode morrer para o mundo das limitações corporais, sem deixar de ser o Esposo que se dá à humanidade. Eis
porque, para alem da morte, e só para além da morte, o cristo realiza a suprema aspiração do Amor. O Cristo
morre, ressuscita e torna-se Ele próprio alimento, a fim de, verdadeiramente, tornar-se a carne da carne da
humanidade, mais radicalmente que num abraço, que só aproxima dois corpos por um instante. Deus, na Eucaristia,
desposa o homem. Na base do mistério eucarístico, está a idéia de alimento – e essa idéia é absolutamente
essencial.
A Eucaristia, portanto, não é apenas uma refeição que se toma em conjunto e onde as pessoas se unem umas às
outras. Este aspecto certamente é importante, mas insuficiente. A união, antes de ser a dos homens entre si, pela
refeição compartilhada, é a união de cada um com o Cristo, que se dá como alimento. É por conseqüência que o
Cristo une entre si aqueles que comungam. Se o simbolismo é tomado simplesmente no plano da refeição, como
ocasião de reunião, nem por isso expressa a mais fundamental realidade, a da fusão que é a consumação do amor
entre os esposos.
Para compreender isto, é preciso estar bem persuadido de que a Encarnação de Deus não termina no Cristo, mas na
humanidade inteira. Enquanto imaginarmos que a Encarnação é Deus a unir-se a um homem chamado Jesus, nada
compreenderemos. A verdade é que Deus uniu-se à humanidade, ou desposou-a toda, pelo Cristo. Deus se fez
homem para que nós, os homens, sejamos divinizados. A Eucaristia é a universalização da obra do Cristo.
O primordial da Eucaristia, não é simplesmente a presença do Cristo. O Cristo não está ali apenas por estar, mas
para se dar a nós como alimento, para que a união entre Deus e os homens seja o mais total possível. A Eucaristia
não é, antes de tudo, presença, é uma união, e a união implica presença.
Presença real
�A presença do Cristo na Eucaristia é certamente uma presença real. Ela é a mais real de todas as presenças, por ser
presença realizante. A Eucaristia realiza a presença de Cristo em nossos atos livres: “Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue tem a Vida em si” (Jô. 6,54). Isto é tudo quanto há de mais real. Peço-lhes que recordem a
distinção entre o nível da significação e o nível da explicação. A fé situa-se sempre no nível da significação. O
mistério eucarístico significa que o Cristo se dá como alimento, para que nos unamos a Ele, unindo-nos uns aos
outros de tal modo que, por nós próprios, não o saberíamos alcançar. Esta energia unificadora implica Sua presença
real. Mas esta significação não repousa no absurdo. A questão da explicação, ou “modo” da presença real, depende
da filosofia; para o abordar é necessário recorrer a conceitos filosóficos.
Contento-me em recordar que não existe oposição entre signo ou símbolo e realidade. Façam a experiência,
fazendo duas perguntas a uma criança:
-Que é um aperto de mão? A criança não respondera que é um certo dispêndio de energia muscular, provocado pela
pressão de duas palmas de mão, uma contra a outra. Responderá: é o sinal de um bom entendimento, de
camaradagem, de amizade. A realidade de um aperto de Mao é a de ser um signo.
-Que é um sinal vermelho? A criança começará por zombar do perguntador e depois não dirá que é uma lambada
acesa atrás de um vidro colorido; dirá sim, que é uma proibição de passar; o signo é a realidade do sinal vermelho.
Por meio de exemplos elementares, compreendemos que o signo não é algo de exterior à realidade, é a própria
realidade no que ela possui de mais profundo. Dizer que os sacramentos, a começar pela Eucaristia, o Sacramento
por excelência, são signos e “signos eficazes”, não significa, absolutamente, que eles estão fora da realidade e sim
que são a realidade mais profunda.
SIGNO EFICAZ DO CUMPRIMENTO DA TAREFA HUMANA
Há quem diga, às vezes, que, na hóstia consagrada, o Cristo substitui o pão. É bom saber que isso é uma heresia.
Quem procedesse à análise química de uma hóstia consagrada não encontraria senão os elementos componentes do
pão. Esta observação é inteiramente elementar, mas percebo que ainda não é do conhecimento de todos. Jamais se
cogitou na Igreja de crer que as palavras da Consagração mudam a estrutura físico-química do pão. Eis porque a
clássica expressão, originária do Concilio de Trento, “transubstanciação”, mudança de substancia do pão em
substancia do Corpo de Cristo, não pode ser empregada sem explicação. A palavra substancia não tem, hoje em
dia, o mesmo sentido do século XVI. Dizer que o Cristo veio substituir o pão equivaleria a dizer que Deus se
encarna para substituir o homem, como se nos dissesse: “Sai desse lugar que eu quero ocupá-lo, não prestas para
nada! Tua vida, teu suor, a gravidez, a educação das crianças, tudo isso é nada para mim. Vim tomar o teu lugar!”
Seria abominável tomar o Cristo o lugar do pão. Um Deus que se fizesse homem para substituir o homem não
existe; tivesse eu de crer nele, podem estar certos, me tornaria ateu. Os mestres da suspeição, Marx, Nietzsche e
Freud Para expressar-me como Ricoeur), teriam razão de suspeitar da fé como grande mistificação e alienação.
Minha dignidade de homem me impede de crer que o Cristo vem me substituir.
O Cristo não substitui o pão; a mulher feita não substitui a menina; a menina é que se torna mulher feita. A
borboleta não substitui a lagarta, a lagarta é que se torna borboleta. Não é outro que vem tomar o meu lugar, é o
mesmo que se torna outro. Não me agrada ouvir falar de um outro mundo, visto que, rigorosamente, não existe
outro mundo. O mundo da nossa vida eterna é simplesmente o mundo, mas um mundo que se tornou outro. Ser
substituído por outro ou tornar-se outro é, mesmo assim, coisa diferente. Quando Paulo nos afirma que somos
“membros de Cristo” (1Cor. 12,27), esta expressão não suprime a qualidade humana, a personalidade humana. Não
é o membro de Cristo que vem substituir o homem, é o homem que se torna membro de Cristo. Ou, com referência
ao nosso vocabulário: precisamente quando o homem é divinizado é que ele se torna plenamente humanizado, se a
verdade é que o mesmo, o Cristo, é a um tempo plenamente homem e plenamente Deus, Ele não nos pode tornar o
que Ele é, se, simultaneamente, nos humanizar e divinizar.
As boas religiosas acreditavam agir corretamente presenteando-me, cheias de admiração, com um livrinho
destinado às crianças, para fazê-las compreender a presença real. Na primeira pagina da brochura, vinha desenhada
uma hóstia; entre a primeira pagina e a segunda, havia um cordãozinho. Bastava dizer à criança, “puxa e verás”. A
criança o fazia e a hóstia desaparecia, surgindo em lugar dela o Cristo todo sorridente. Olhei para as religiosas com
alguma ironia, mesclada de afeto, e disse-lhes:
-Irmãs, as senhoras são heréticas. Elas me fitaram atônitas.
�-Padre, que exagero é esse?
-Exagero nenhum. O Concílio de Trento recusou a palavra substituição. O C4isto não veio substitui-se ao pão; a
palavra escolhida pelo Concílio de Trento é “conve4rsaqo eucarística”. Expressão de difícil compreensão para os
auditórios cultos de hoje, mas é o pão que se torna o Cristo e não o Cristo que vem substituir o pão.
As religiosas entenderam: se Deus se fez homem, não foi para suprimir o homem. Imaginam algumas pessoas que
Jesus ressuscitado despenca do céu para dentro de um pedaço de pão, sem o qual não saberia onde se meter, para
estar o mais próximo possível de nós. Leva-se para o altar um suporte, que tem a grande vantagem de ser
comestível e ele será comido, pois assim é que o Cristo estará mais intimamente presente. Este modo de falar é
aterrorizante e, sem nos darmos conta, fabricamos as varas com que nos surrarão. É preciso não confundir
proximidade com presença transfigurante.
Na Exposição Universal de Paris, no momento da inauguração da Torre Eiffel, meu pai interessou-se vivamente
pela galeria das maquinas no Campo de Marte. Era uma coisa prodigiosa: assistia-se à transformação completa da
madeira em papel. Ao fim da galeria, viam-se os troncos a chegarem da floresta e, na outra extremidade, após toda
a serie de transformações (serragem dos troncos, fabricação da pasta do papel, etc.), via-se o papel. Era a historia
do papel.
Imaginem que, em vez de o expectador assistir à historia do papel, houvessem decidido que ela assistira às etapas
da história do pão. É exatamente a mesma coisa, com diferença apenas de nuança, mas isto é importante:
rigorosamente, pode-se passar sem papel, não, porem, sem o pão, pois este toca de mais perto nossa vida. Num
extremo da galeria, chegariam do campo os sacos de trigo, já fruto do trabalho agrícola; depois desenrolar-se-ia
toda a serie de transformações e, no outro extremos sairia o pão do forno da padaria. É a história do pão, ou antes, a
história do trabalho sob as espécies do pão e finalmente a história do homem. Pois a verdade é que, na história de
um homem, o trabalho ocupa lugar importante, visto que mesmo a vida privada, o amor e o lazer são
condicionados pelo trabalho.
Quem desejar fugir à abstração e, ao mesmo tempo à mitologia, deve buscar o homem em usa realidade. Ra, o
homem não é apanhado na sua realidade senão quando é apreendido em sua história; o homem abstrato não existe.
O homem real, o homem que Jesus assumiu transformar, é o homem que vive a história; homem e mulher, solteiro
ou casado, com ou sem filhos, trabalhando ou desempregado.
Quanto a mim, quando me sobra um pouco te tempo, antes da celebração da missa, gosto de tomar na Mao uma
hóstia não consagrada e meditar diante deste pedaço de pão. Existem, aliás, duas expressões sinônimas: ganhar a
vida e ganhar o pão; o pão é a vida. Pergunto a mim mesmo: como é que Deus vê este pedaço de pão? Não o vê
como veria um pedregulho, pois o pão é o resultado de toda uma história. Para que eu o possa estar na mão, foi
necessário o trabalho de um lavrador e o de um semeador, sem mencionar todos os fabricantes da charrua; foi
necessário depois o trabalho dos ceifeiros e o dos fabricantes da máquina de ceifar e ligar as medas; veio depois o
trabalho do moleiro, o do padeiro, e portanto o de todas as corporações de ofícios que fabricaram a masseira do
padeiro, etc. O pão é fruto da transformação da natureza. Nossa obra, nossa tarefa de homens, é a humanização da
natureza, a transformação do mundo, para que o mundo se torne humano. É exatamente por isso que é preciso ser
muito severo, a propósito de um trabalho que verdadeiramente não humaniza: isto é, quando a manteria sai
enobrecida do ateliê, mas o homem sai envilecido, isto é um verdadeiro escândalo. Existe aqui uma isca para
diálogo com os marxistas, uma vez que esta idéia, de que o homem se faz homem no trabalho e pelo trabalho, é
básica
para
o
marxismo.
Para quem aqui se detém, isto é o fim. A história do homem permanece puramente humana, fecha-se sobre si
mesma; o pão é comido e continua-se depois a trabalhar, a transformar a natureza e a produzir pão, não haverá
desfecho para alem da história.Mas, se eu levar ao altar esse pão, o Cristo dele fará seu próprio Corpo, pois
diviniza ou cristifica o que eu humanizei. A oração da apresentação das ofertas é excelente: “Nós te apresentamos
este pão, fruto da terra e do trabalho do homem; ele se tornará o vinho da salvação”.
Se o pedaço de pão que eu levo ao altar não e o homem, não há muita coisa mais a ser compreendida na Eucaristia,
a não ser um Cristo que cai do céu num pedaço de pão, para se tornar nosso alimento, no sentido de nos consolar,
de nos fortalecer, de nos permitir a luta contra as tentações: recaímos num moralismo propriamente infantil, no
qual é impossível aos nossos contemporâneos entrar. A verdade é que toda a história humana torna-se o corpo de
Cristo. Não deixa, por isso, de ser história humana, mas seu desfecho fica para além do homem e esta é a sua
verdadeira vocação. Quando o homem torna-se verdadeiramente Corpo de Cristo é que se torna verdadeiramente
homem. Não poderíamos para a educação das crianças, fabricar filmes de curta-metragem nos quais se contaria
toda a história da hóstia. Desde o campo até o altar? A hóstia vem a existir só depois do termo de uma
transformação da natureza pelo homem e o Cristo diviniza e cristifica o que o homem transformou ao realizar sua
tarefa humana. A Eucaristia é o signo eficaz da tarefa humana realizada.
Dizem que na revolução de 1917, numa sacristia desativada de Leningrado, os comunistas jogaram fora todos os
vasos sagrados e puseram simbolicamente no lugar deles seus instrumentos de trabalho. Fizeram bem de trazer
seus instrumentos de trabalho, mas deveriam tê-los posto nos vasos sagrados, em vez de os atirarem fora. Uma tal
�história, se verdadeira, é absolutamente típica do formidável mal entendido que existe atualmente e pelo qual nós,
cristãos, somos em parte responsáveis, pois esquecemos que Jesus Cristo era um homem. Se Deus se fez homem
não foi para descaracterizar o homem. Retorna-me à memória a arguta observação de uma jovem engajada contra
a guerra do Vietnã:
-Missa? Estou até aqui de missa. Meus pais querem me obrigar a ir.
-Vejamos, respondi. Acho que você entende bem a relação entre a Eucaristia e seu engajamento político?
Ela olhou para mim como se eu houvesse enlouquecido.
-Não entendo nada.
-Se você não o percebe, compreendo muito bem que não queira ir à missa. Que iria fazer lá? Efetivamente, se você
for à missa é para que o Cristo divinize toda a sua atividade engajada, para que o Cristo dê uma dimensão de Reino
eterno a toda a sua tarefa humana. O trabalho que lhe cabe não é o de fazer pão, é o de estabelecer a paz entre os
homens. Uma atividade transformadora, mesmo que se trate do modesto nível do relacionamento entre cônjuges,
entre pais e filhos, entre professores e alunos etc., ou de instituições. Na comunhão, o Cristo se dá a nós como
alimento, para que tenhamos não apenas energia humana, mas energia realmente divina, para trabalhar na
construção de uma fraterna comunidade humana. Pois sem o Cristo nada podemos fazer.
O Cristo, portanto, está presente, não como alguém caído do céu, mas como o fruto de uma transformação
divinizante, que Ele opera no mais central dos mistérios da nossa fé, o da Eucaristia. A hóstia consagrada não é
apenas o Cristo, é igualmente o homem cristificado.
Sacrifício
Isto deve fazer-nos compreender que a Eucaristia é o sacramento de um Sacrifício. Esta palavra está desvalorizada
e distante de seu sentido original na linguagem corrente: sacrificar uma situação ou um prazer: dizem a uma
criança: “Você fará o sacrifício desse pedaço de chocolate?”.Habituamo-nos a identificar sacrifício e privação, sem
ir à raiz das coisas.
Torna-se muito difícil entender que o ato sacrifical é aquele pelo qual nos referimos a Deus (etimologicamente,
sacrifício significa: fazer algo sagrado, ou divino). É o que de mais elevado existe na vida humana; é por ele que
ratificamos nossa vocação profunda, a de nos realizar em Deus, no Absoluto. O sacrifício não é, antes de tudo,
privação, mas orientação positiva de todo o ser, de toda a vida, para Deus. Entregar-se a Deus é o único modo de
ser verdadeiramente nós mesmos. Deus é Amor. O homem só é, plenamente homem quando voltado para Deus.
Entenda-se bem: isto envolve privação porque, num mundo de pecado, não se pode, ao mesmo tempo, viver para
Deus e viver para si, ser referido a Outro, ao mesmo tempo que referido a si. Ser uma pura referência a Deus é
renunciar a ser nós mesmos, nosso próprio centro. Conhecemos nosso próprio egoísmo e bem sabemos: em nossos
atos mais generosos, estamos voltados para nós mesmos. Qual dentre nós ousaria afirmar: não existe senão nós
mesmos. Qual dentre nós ousaria afirmar: não existe senão para Deus e para meus irmãos, os homens?
Compreendamos bem: no vocabulário da Igreja (acautelemo-nos sempre diante e palavras que não mais
compreendemos), isto seria o mesmo que dizer: sou capaz de oferecer um sacrifício perfeito.
Na história do mundo, se pusermos de lado o caso particular da Virgem Maria, resta um só homem do qual
podemos dizer que toda a sua atividade e toda sua vida foi um sacrifício. A vida de Jesus Cristo é de contínua
referência a Deus. Em seu ser profundo – por isto é que cremos nEle e sabemos que Ele é o centro de tudo -, é o
único que jamais apresentou um ato livre por si mesmo. Os seus atos livres foram Amor. Toda sua vida foi apenas
Caridade. Nem o mínimo vestígio de encurvamento sobre si mesmo, de vontade própria, de movimento de
egoísmo. Todo o ser do Cristo é sacrifical. O C4isto é o Homem perfeito, por ser puro, absoluta referência a Deus e
aos outros. Digo: aos outros, visto que, repito, não há oposição entre o homem e Deus. Deus não nos pede senão
que trabalhemos para a verdadeira felicidade dos homens, nossos irmãos. Se o que fazemos pelo homem for
realmente para o profundo bem do homem, será, ao mesmo tempo, para Deus.
Na morte na Cruz culmina o Sacrifício do Cristo. Pois só a morte pode oferecer a prova de que uma pessoa não
vive para si. Bem sabemos que é sempre mais ou menos por covardia que tentamos fugir da morte. Se não a morte
definitiva, à morte parcial, que é a diminuição do conforto, a renúncia a certos privilégios, a tudo o que nos
arrebata do egoísmo e à preguiça. Daí as admiráveis palavras de Péguy: “A vida só existe para ser dada”.
A Eucaristia é o Sacrifício do Cristo, é o Amor que é todo Amor, e vai, portanto, até a morte, de onde surge o novo
nascimento, a ressurreição. De duas, uma: ou o Amor é mais forte que a morte, ou a morte é mais forte que o
Amor. O mistério Pascal significa que o Amor é mais forte que a morte. É verdade para o Cristo, é verdade para
nós se o Cristo não for para nós um estranho e se a Ele nos agarramos como os membros ao corpo. É suficiente ter
�o coração no lugar certo para entender que uma vida só é autêntica apenas na medida em que é sacrificada, isto é,
vida com passagem em Deus. Disto é que a Eucaristia é um signo.
AÇÃO DE GRAÇAS
Etimologicamente, Eucaristia significa ação de graças. Não por acaso. O principal sentido de graça é o da beleza;
daí, passa-se à idéia da gratuidade, de dom. O verdadeiro dom é gratuito. O dom supremo é o perdão, quer dizer; o
dom perfeito de onde a expressão “agraciar” (o direito de agraciar pertence ao chefe de Estado). Dar graças é
reconhecer que tudo é graça, daí o reconhecimento no sentido de gratidão. Se tudo é graça, tudo deve ser um
retorno de graças. É lamentável não termos o substantivo rendição de graças.
No Evangelho, o Cristo nos mostra a natureza inteira, como devendo ser recebida da Mao do Pai, como um dom do
Pai. O Evangelho nos demonstra que devemos primeiramente viver o Amor em forma de acolhimento. Acolher.
Tudo é dado. O mundo nos é dado, posto em nossas mãos. “Por isso, não andeis preocupados, dizendo: que iremos
comer? Ou, que iremos beber? Ou, que havemos de vestir? De fato, são os gentios que estão à procura de tudo isso:
o vosso Pai Celeste sabe que tendes necessidade” (Mt. 6,31-32). O pagãos são proprietários de coisas: adquiremnas e possuem-nas. Os cristãos são gestores de coisas: eles as recebem e acolhem. Eis porque os pagãos vivem
inquietos e os cristãos são, ou deveriam ser, calmos. O mundo moderno se enerva à medida que sua fé carece de
vida, ou que olvida que tudo provém de Deus e que, se realmente Deus é nosso Pai, nós devemos a nós próprios a
calma, pois aqueles que confiam são calmos.
Jesus lança à natureza um olhar calmo e límpido. Mesmo diante da fome e da morte, situações extremas. Para Ele,
pedir e dar graças são atos que se confundem: pede em forma de ação de graças, tanto está certo que o Pai cuida de
seus filhos. Contanto que se preocupem com o Reino de Deus: “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça e
todas as coisas vos serão acrescentadas” (Mt. 6,33). O resto, o pão cotidiano: “Venha a nós o Vosso Reino, e o pão
nosso de cada dia nos daí hoje”, isto é, tudo de que temos necessidade para viver, o condicionamento de nossa
vida.
Admirem o que disse Jesus, perante a situação extrema que é a da fome. Ele não disse: “Pai, peço que multipliques
os Paes que tenho na “mão” e sim: “Pai, dou-te graças” (Jo. 6,11). Antes que fossem multiplicados os pães, Jesus
agradece, tanta certeza tem de ser atendido. E, diante dessa outra situação extrema que é a morte, no tumulo de
Lázaro, Jesus diz: “Pai, rendo-te graças pelo que me concedeste”. Ainda, não é verdade, Lázaro é ainda cadáver,
não retornou à vida, mas Jesus diz: “Pai, eu te agradeço” (Jo. 11,41).
Se, no deserto, Jesus recusa alimento, é porque não lhe foi dado pelo Pai. É este o sentido profundo da sua recusa
de transformar pedras em pães. Só quer comer quando é possível dar graças. Não reconhece a si mesmo o direito
de usar qualquer coisa da natureza que não lhe tenha sido dada pelo Pai. Ora, se Ele próprio transformasse pedras
em pães por magia, seria um alimento não recebido do Pai. Bastaria que, no Evangelho, Jesus houvesse realizado,
não esse milagre, pois não seria milagre, mas esse prodígio, para que tivéssemos o direito de lançar suspeitas sobre
todo o Evangelho.
Paulo rende graças como quem respira: pode-se dizer que a respiração de Paulo é uma respiração de
reconhecimento: “Nós rendemos”, di ele, “continuamente ação de graças; não cessamos de... incessantemente
render graças”... (1Ts. 1,2; Fl. 3; 1Cor. 1,4; Ef. 1,15-16 etc.). Coração dilatado de Paulo. Para ele, aliás, a ação de
graças está sempre ligada à graça ou à fé. A graça é o que Deus dá ao homem. A fé, o acolhimento do dom de
Deus. E portanto: “Dou incessantemente graças a Deus a vosso respeito, em vista da graça de Deus que vos foi
dada (1Cor. 1,4)... “Damos graças ao Deus e Pai... depois de ouvirmos acerca de vossa fé em Cristo...! (Cl 1,3).
Devemos apreender o liame entre Eucaristia e ação de graças e entre Eucaristia e alimento: o alimento é o aspecto
mais essencial à natureza. Temos necessidade de comer para viver, e que é que comemos? Carne, frutas, legumes,
tudo o que vem da natureza, na qual não estamos isolados. Segundo Claudel, “o mais ínfimo verme da terra tem
necessidade, para viver, de toda a maquinaria dos planetas” e “para o vôo de uma borboleta, é preciso um universo
inteiro”. Também eu, para viver, preciso do universo inteiro, inclusive do sol e do mar.
O pão é o símbolo de tudo o que Deus nos dá para viver. O pão e o vinho são o alimento elementar dos países
mediterrâneos, da própria terra onde nasceu Jesus. Ao subtrair à minha alimentação um pouco de pão e algumas
gotas de vinho, quero significar que a natureza inteira deve retornar ao Pai. A Eucaristia é, portanto, ação de
graças sob as espécies do alimento. Se tudo é graça, tudo deve ser ação de graças. Para significar isso tudo, nada
melhor que o pão e o vinho, sem os quais nada é possível. São os elementos da própria vida. Deus dá para que nós
tornemos a dar o que foi dado. “Bendito sejas, Deus do universo, Tu que nos dás este pão...”
Notem bem que não temos de dar, mas de tornar a dar, a devolver, pois o que temos já é um dom. Dar é realizar
uma ação de proprietário. Dá-se o que se possui e daí a frase de Pascal: “Meu Deus, eu vos dou tudo...” Aliás não é
�uma frase rigorosamente cristã. Mais cristã é a de Inácio de Loyola, no final dos Exercícios Espirituais: “Meu
Deus, eu vos devolvo tudo...” De nada somos proprietários, somos gestores . A caridade sem ação de graças não
seria caridade verdadeira e cristã. Seria liberalidade de proprietário.
O pão e o vinho da Eucaristia são uma devolução a Deus de toda essa natureza que Deus deu ao homem, para que
ele viva. Para o marxista, o relacionamento do homem com a natureza é de trabalho; e bem entendido, também
para o cristão, mas na própria base da ação de graças há uma disposição profunda que é o contrário de uma
mentalidade de proprietário. Sem a Eucaristia, a nossa vida falseia, torna-se uma vida de proprietários. Com a
Eucaristia nossa vida torna-se verdadeira, uma vida de reconhecimento, isto é, de refletido conhecimento da
verdade.
SACRAMENTO DA COMUNIDADE HUMANA A
CONSTRUIR
Digamos enfim que, se o Cristo se dá a nós como alimento, é para nos reunir numa comunidade fraternal. Não será
por eu ter tanto insistido no fato de Cristo fazer-se o alimento de cada um, que desprezaremos por isso o
simbolismo da refeição, isto é, de um alimento que tomamos em conjunto e não cada um separadamente, em seu
canto. O aspecto pessoal e o aspecto comunitário são igualmente essenciais. O Cristo institui a Eucaristia, sinal da
Nova Aliança, no próprio momento em que promulga a clausula única dessa Aliança: “Amai-vos uns aos outros
como eu vos amei”. A cláusula da união com Deus é a da união fraterna dos homens entre si, a construção da
comunidade humana. Não haverá aliança com Deus se não houver aliança dos homens entre si.
O simbolismo do pão e do vinho foi explicitado desde os primeiros séculos, dele restando vestígios, em certas
orações eucarísticas: “Do mesmo modo, ó nosso Deus, que os grãos de trigo eram espalhados nas planícies e foram
moídos numa só farinha, do mesmo modo que os cachos de uvas espalhavam-se pelas colinas e foram espremidos
num só vinho, que sejamos todos reunidos numa só fraternal comunidade”. Dizia Agostinho: “Quando comemos o
Corpo de Cristo, incorporamos a humanidade inteira”.
Ao compreender que o pedaço de pão consagrado que recebemos é uma parcela do pão imenso que é a humanidade
toda divinizada pelo Cristo, perde-se a propensão ao tédio. Eis porque se pode revestir a celebração eucarística com
elementos culturais: a Eucaristia deve ser uma festa, mas nunca será uma festa de clube noturno. A Eucaristia é
antes a condição de toda f4esa pois se ela não existisse não haveria esperança de ressurreição e a festa humana
estaria presa ao círculo da morte.
Uma comunidade não é apenas uma coletividade. Não existe, a não ser que tenha liames recíprocos de amor ou de
amizade, ou se cada um for para os outros mais que para si. Aquele que faz de nós “um” é o Cristo. Eis porque não
dá o corpo a não ser quando compartilhado. O pão eucarístico é um pão já partido, a missa é a “fração do pão”, isto
é, a construção da comunidade. Quando pronuncio a oração, antes da refeição, tenho o cuidado de não dizer:
“Senhor, abençoa o alimento que vamos tomar e dá pão àqueles que não o têm”. Teria muito medo de que Deus me
respondesse: “Dá-lhe tu mesmo esse pão”. Digo sempre: “Ensina-nos a dividir”.
É a partilha do mesmo Pão que significa que devemos compartilhar com outros tudo o que for possível partilhar: o
dinheiro, o tempo, a cultura etc. Acontece, é certo, que tendo compartilhado do mesmo pão, fale-se mal do vizinho,
recuse-se a servir, etc., mas isto é pecado. “Aquele, escrevia Bossuet, que recebe a Eucaristia com ódio no coração
contra seu irmão, faz violência ao Corpo do Salvador”. “Portanto, se estiveres para trazer tua oferenda ao altar e ali
te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa tua oferenda ali diante do altar e vai primeiro
reconciliar-te com teu irmão, depois virás apresentar a tua oferta” (Mt. 5,23) de outro modo, ela não significará
nada absolutamente. Sempre sonho que ao chegar para a missa das onze, sou empurrado por alguém que sai da
Igreja. “Lembro-me que estou distanciado de um membro da família, vou-me reconciliar; espero ter tempo de
voltar à missa.” Se tomássemos realmente consciência dessa partilha de pão, que é um signo de que devemos
compartilhar tudo, haveria uma base solida para a civilização. A Eucaristia é o sacramento da unidade humana.
Eis o que é importante compreender: nossas refeições humanas não têm o poder de expressar uma humanidade
totalmente reconciliada no Amor. A refeições que tomamos em casa, com a família, com os amigos, significam
apenas uma fraternidade muito parcial. Somos oito ou dez a compartilhar do mesmo alimento, nada mais. Além
disso, ninguém convida os inimigos à sua mesa. Não existe reunião humana sem exclusão. Pode-se até ir mais
longe, dizer que numa refeição humana, o pedaço que eu como, os outros, vocês todos, não o comem. É uma
observação que pode parecer infantil, mas não o é. Enquanto estamos na França, numa economia de abundância ,
há em outros continentes povos inteiros que não têm como saciar a fome. Estes problemas são, decerto, múltiplos e
�complexos, trata-se da economia, de mercados, do egoísmo das nações prósperas, mas a partir disso é que se trata
de refletir, para compreender que a humanidade ainda não é fraterna.
Eu, de boa vontade, celebro Eucaristias “domésticas”, na sala de jantar de uma família; começa-se por uma
refeição entre amigos, prossegue-se com uma reflexão sobre o Evangelho e termina-se com a celebração. Há nisto
algo de muito comovente; toca-se com o dedo, realmente, um relacionamento real, entre o signo eucarístico e a
vivência da fraternidade humana. Mas há um inconveniente; os que se reuniram já eram fraternais. São grupos de
amigos, homens e mulheres que se conhecem, que dependem da mesma cultura, que Têm entre si muitas
afinidades. O perigo é a Eucaristia aparecer apenas como a consagração de uma fraternidade já realizada.
Uma das mais belas recordações de minha vida é a de um encontro de patrões, engenheiros, empregados e
operários da mesma empresa, todos eles cristãos. Durante duas horas, a reunião foi muito dura: opunham-se os
pontos de vista dos patrões aos dos engenheiros e aos dos operários. Afinal, íamos nos separar quando levantou-se
um operário, dizendo: “Nós somos cristãos. Não nos separemos sem rezar um Pai-nosso”. Aqueles homens, que
durante duas horas se haviam afrontado com dureza, rezaram juntos o Pai-nosso. Poderíamos ter celebrado a
Eucaristia: nesse lugar, ela teria assumido todo seu sentido, pois a Eucaristia ao e a consagração de uma
fraternidade já realizada, mas a exigência de uma fraternidade para q qual pôs mãos à obra, cada qual segundo sua
vocação e capacidades. Eis toda a dialética do “já pronto” e do “ainda não”.
A Eucaristia é a crítica de nossas refeições humanas, que são decerto legítimas, porém mais próprias a excluir do
que a reunir. Nós nos apropriamos do alimento. Só o Corpo de Cristo ressuscitado não pode ser apropriado, pois
está para além dos limites da natureza e da história. Ele é, por si, a desapropriação absoluta, a Caridade. Aquele
que é isento de qualquer espécie de propriedade. Não é possível apropriar-se de uma desapropriação, isso nada
significa. Toda refeição humana é apenas uma vitória provisória sobre a agressividade, ódio, o egoísmo; nenhuma
delas se pode gabar de ser vitoria decisiva. A única refeição que significa uma reconciliação universal é a partilha
do Corpo do Cristo. A Eucaristia é que nos recorda, dia após dia, que, para além da morte e da ressurreição de
Cristo, não há fraternidade universal possível.
Não foi sem razão que a Igreja, durante séculos, impôs aos cristãos o dever de participar na assembléia eucarística,
pelo menos uma vez por semana. Hoje ela insiste muito menos nisso, pois repugnam-lhe os atos de autoridade
extrínsecos. O que a Igreja espera é que seja de tal ordem progresso dos anos futuros que os cristãos não
necessitem mais dos preceitos legais para participar da missa.
A Eucaristia é o Sacramento por excelência. É o Cristo sacrificado, que, enquanto homem, tende inteiramente a
Deus e, enquanto Deus, tende inteiramente ao homem. O Cisto é o abraço, ouso dizer, a cristalização destes dois
impulsos. O Beijo de Rodin é um só bloco de mármore; a mulher é movimento para o homem, o homem
movimento para a mulher. É apenas uma imagem,mas pode nos auxiliar a compreender a realidade do Amor entre
Deus e o homem. A hóstia consagrada é, a um tempo, dom do homem a Deus (ou o Sacrifício) e dom de Deus ao
homem (o Sacramento). Ao termo disto tudo, existe aquilo que insisto em chamar nossa definitiva divinização; ou
melhor, o objetivo de nossa esperança: nossa plena e total liberdade na alegria. “Quero que, onde estou também
eles estejam comigo” (Jo. 17,240. “Porque o veremos tal como ele é” (1Jo. 3,2). Eis o que Jesus Cristo oferece, o
que é insubstituível.
EPÍLOGO
Quero terminar este livro com uma nota de otimismo e esperança. Se o leitor compreendeu bem as conferencias
que apresentei, o que nele deve predominar é a esperança e a alegria. Seja qual for o fardo da vida, seja qual for o
sofrimento que sentimos, sem nos poder esquivar diante da divisão dos cristãos, a Igreja certamente está em plena
renovação. Mas devemos todos contribuir para esta renovação e isso não pode ser feito senão com trabalho.
Conforme o exprimem as últimas palavras de Jeanne D’Arc au bucher (de Claudel), admiravelmente musicadas por
Arthur Honegger:
HÁ A ESPERNÇA MAIS FORTE!
HÁ A ALEGRIA MAIS FORTE!
HÁ O AMOR, O MAIS FORTE!
Niterói, 18 de agosto de 2009
�
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Formação Cristã | Formación cristiana
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Cristianismo | Cristianismo
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Dimensão espiritual | Dimensión espiritual
Dimensão apostólica | Dimensión apostólica
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Um recurso composto principalmente de palavras para leitura. Exemplos incluem livros, cartas, dissertações, poemas, jornais, artigos, arquivos de listas de discussão. Note-se que facsímiles ou imagens de textos ainda são do gênero Texto.
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Crer para Viver <br />Conferências sobre os principais pontos da fé cristã
Creator
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Varillon, François
Date
A point or period of time associated with an event in the lifecycle of the resource
1991
Subject
The topic of the resource
Cristianismo
Description
An account of the resource
As conferencias dos dez últimos anos do Pe. Varillon no eixo escolhido para este livro: a apresentação da coerência da fé cristã.<br /><p>- Uma introdução, ou melhor, um pórtico pelo qual é necessário entrar na leitura do livro, destinado, acima de tudo, ao leitor que nunca ouviu o Pe. Varillon, para que se familiarizasse com seu vocabulário e sua pedagogia. </p>
<p>- 1. O Cristo, morto e ressuscitado, coração do Real, com a admirável meditação sobre as Bem Aventuranças.</p>
<p>- 2. O acolhimento do Dom de Deus: Maria, imagem da Igreja, depois, a Igreja, experiência do acolhimento do Dom de Deus por todos os batizados; </p>
<p>- 3. Os principais dogmas: permitem aprofundar quem é Deus, quem é o homem e qual pode ser o seu relacionamento.</p>
<p>- 4. Alguns critérios de discernimento para a realização da tarefa humana: situar o relacionamento com o Cristo no âmago dos dinamismos humanos, não porém ao lado deles, nem em seu lugar; viver o Evangelho, que é um apelo à fé e à liberdade; orar, visto o dom de Deus ser uma tarefa a cumprir; combater o mal e o sofrimento, ao invés de resignar-se a suportá-los.</p>
<p>- 5. a Eucaristia: Ela é a “fonte e o cimo da vida Cristã”</p>
Language
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pt-BR
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Edições Loyola
Contributor
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Compilação: Bernard Housset<br /><br />Tradução: Yolanda Seidel Toledo
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Livro
Bem Aventuranças
Bienaventuranzas Dogma de la creación
Cristianismo
Cristianismo Fe cristiana
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critérios de discernimento
Dogma da Criação
Eucaristia
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