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DISCIPLINA
-E lhes digo isto para que saibam que o que é mais importante na nossa querida mãe, a
santa Madre Igreja, é a obediência. Aqui, a disciplina tem que se posicionar acima de tudo.
Paramentando-se na sacristia, Padre Rogério alinhavava na cabeça os pontos chave da
homilia de daí a pouco, momento em que teve sua atenção despertada pelas palavras que
lhe chegavam através da aparelhagem de som e que vinham da nave do templo. A voz
grave e mais pausada do líder comunitário era inconfundível e mesmo sem ter ouvido o que
Nelson havia falado antes que aquela exortação final à obediência lhe houvesse chamado a
atenção, o padre balançou a cabeça negativamente. O olhar entre espantado e curioso das
duas senhoras do Apostolado da Oração que na pequenina mesa à sua frente lhe
preparavam já o lanche de depois da missa e que com o rabo do olho o estavam a observar,
era uma prova irrefutável de que o seu gesto de reprovação às palavras ouvidas não tinha
sido nada discreto.
Ali, mais uma vez, ele constatava que, apesar dos dois anos tentando mostrar com palavras
e não só com elas, mas também com atitudes e gestos bem concretos, que havia um modelo
de Igreja de maior comunhão e participação a ser vivido, muitos fiéis teimavam em
permanecer acorrentados a uma prática eclesial ultrapassada. Uma Igreja sem a liberdade
na qual os leigos não necessitassem se arvorar em meros repetidores de regras de disciplina
antiquada e que não educavam o povo para a religião do Deus de Jesus Cristo, fazendo com
que permanecessem aprisionados nas imagens de um deus falso, sedento na busca de
sacrifícios vazios e não de misericórdia como o nosso Deus de Jesus Cristo. Igreja geradora
de espaço onde também os leigos não fossem somente esses meros figurantes, não lhes
cabendo a possibilidade do exercício do menor questionamento que fosse, nem lhes sendo
permitida a crítica mais singela, por mais construtiva que pudesse ter sido a sua motivação.
Havia muito a fazer, muito a caminhar, refletia Rogério. Ainda preciso de um vasto tempo
até que os tenha feito acreditar que os quero mais atuantes e digo esta palavra não com o
sentido carimbado de leigos travestidos como se fossem mais clericais ainda do que os
tantos padres retrógrados e atrasados que precisam converter urgente a sua rota. Ser leigo
na realidade é muito mais do que isto. Ele tem uma atribuição bem maior e que não é a de
substituto de sacerdotes como alguns podem pensar e mais ainda, na forma como os quero
ver, a sua função não se resume à execução tão somente de tarefas operacionais e de apoio
que, é óbvio, são também necessárias, tais como, dentre uma imensidão de outras,
providenciar o café do celebrante, fazer o almoço para arrecadar fundos para as obras
assistenciais, recolher o dízimo ou responsabilizar-se pelas leituras nos cultos.
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�Bem antes de ser ordenado sacerdote, desde quando ainda seminarista, Padre Rogério muito
queria e estava envolvido com aquela comunidade. Não que sempre pensasse assim como
hoje. Houve um tempo, mesmo quando já freqüentador do grupo de jovens e mais ainda,
numa época depois que se percebera vocacionado à vida sacerdotal e estava no Seminário,
em que sentia o papel do leigo na Igreja de forma bem simples e apenas subalterna à
hierarquia. Para ele, naqueles anos, uma boa definição de leigo poderia ter sido algo bem
diverso que teria, caso o tivessem pedido, registrado mais ou menos assim: Leigo é todo
aquele que está, ou deveria estar, a serviço do padre fazendo todas as coisas necessárias
para que ele possa celebrar bem, ministrando os sacramentos no atendimento à comunidade
colocada em suas mãos pelo bispo.
Tinha havido um homem que lhe fez ver o quão pobre era esta definição. Alguém que lhe
ensinou a ver e a sentir a Igreja com um outro olhar. Com uma mirada mais bela e
profunda. Um homem que lhe havia feito sentir que existia toda uma longa estrada a ser
trilhada até que fosse alcançado pelos leigos um papel bem mais pleno, uma atribuição que
já haviam tido nos princípios da Igreja e para o qual, retornando pelo comprido caminho,
eles precisavam voltar. Um papel que não era de obedientes cordeiros que se tornavam
muitas vezes das ordens emanadas da hierarquia, mas também de sujeitos imbuídos, como
Povo de Deus, da responsabilidade pela construção do Reino.
Cristiano, seu falecido e tão querido bispo tinha sido este homem. Profeta, ele só errara
num ponto, Rogério ia relembrando. Seu bispo pensava que a hierarquia seria o único lado
de tensão nessa necessária volta à origens, mas não, os últimos períodos de aula na
preparação para o sacerdócio no Seminário e, principalmente, os dois anos já como padre,
mostravam a Rogério que a corda do lado do povo também era resistente e se esticava
muito, na vontade que fosse mantida uma situação que lhe era bem cômoda e
descompromissada, abrindo mão do poder de também participar mais ativamente da vida da
Igreja. Em vários momentos este resistir era até maior e era sentida a tensão da corda bem
maior do lado laical que a ponta que, no extremo oposto, os hierarcas seguravam e
defendiam, puxando-a fazendo força com medo de perder o poder, ele constatara. O leitor
da voz de barítono e lenta acabara já de nomear os falecidos todos, bem como também os
aniversariantes dizimistas e as outras variadas intenções da missa dominical há algum
tempo, mas de olhos fechados, absorto em seus pensamentos e lembranças do saudoso
bispo Cristiano, Rogério se mantinha longe da sacristia e de todo o ambiente que o rodeava.
Já totalmente paramentado aguardava a hora de adentrar a capela para presidir a celebração
da missa.
-Padre, alertou o ministro cutucando bem levemente com a ponta do indicador o seu ombro,
como que com receio de tocá-lo.
-O sino anunciando a nossa entrada tocou há um minuto e a assembléia já se encontra de pé
aguardando a procissão de entrada. O senhor se sente bem?
-Claro, claro, estou ótimo, vamos logo. Respondeu-lhe Rogério com a expressão assim
meio boba e porque não dizer até frustrada, de quem é arrancado bruscamente de
enlevantes e distantes pensamentos para o centro da dura realidade a ser vivida e
enfrentada.
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�Quando da chegada à capela Robson e Mônica a encontraram praticamente vazia. Um
grupo de senhoras idosas rezava o terço, reunidas todas elas nos três primeiros bancos do
lado direito, bem à frente da imagem da Virgem de Fátima, presente que havia sido dado à
Igreja pela comunidade portuguesa do bairro.
Devemos ter nos acomodado nos lugares habituais desses dois casais de velhos, pensava
Mônica agora que o templo se enchera e os dois estavam ladeados e espremidos pelos
quatro idosos num banco onde normalmente caberiam no máximo cinco fiéis. Cochichou
então, no ouvido do marido, essa que foi uma das suas primeiras impressões daquela
comunidade que, a partir daquela manhã quente e abafada de domingo, iria fazer parte das
suas vidas, pelo menos até quando decidissem mudar-se dali do bairro o que era impensável
para os dois naquele momento. Robson respondeu-lhe baixinho, abrindo um largo sorriso
na sua cara quadrada e que bem merecia ter sido barbeada naquela manhã, que, como
marido e mulher eles estavam mesmo totalmente em sintonia, pois não é que ele também
havia pensado a mesma coisa a respeito da localização que os dois tinham escolhido para se
sentar na Igreja e que devia, quem sabe pelos usos e costumes do lugar, ser considerado
como propriedade daqueles que desde um longo tempo sempre estiveram acostumados a se
sentar ali naquele banco que malfadadamente havia sido escolhido por eles?
O badalar forte do sino postado ao lado da porta à direita daquela imagem de Nossa
Senhora, pelo homem que no seu modo de ver seria o sacristão do lugar, fez com que todos
se levantassem e, de imediato, Robson percebeu que sairia dali a procissão de entrada que
daria início ao culto eucarístico. Porta aberta, povo de pé e nada de sair gente dali.
Imaginou então, apesar de ter reparado que muitos também já olhavam para aquela porta
com o sino ao lado, que talvez mirasse no alvo errado e que dali não iria vir ninguém.
Tentando então ser o mais discreto possível e, da mesma forma que tinha ocorrido com o
padre momentos antes dentro da sacristia, não tendo também nenhum sucesso nesse intento,
Robson vira a cara larga e quadrada para trás e, além de notar o quanto a capela está lotada,
havendo muita gente que não encontrou lugar para se assentar e se postou de pé, não repara
nada de diferente que pudesse denotar que dali viriam o celebrante e seus acólitos. Torna
rápido o olhar para frente não sem antes ter observado que o seu movimento provocara uma
onda de muitos outros, suscitando em várias outras pessoas às suas costas a mesma
curiosidade de olharem para os fundos.
Puxando com a mão esquerda bem aberta, num gesto de carinho, para perto do seu o rosto
de Robson, Mônica lhe sussurra bem humorada que alguém, com certeza distraído,
cometera um erro e que, sem observar se o padre já estava presente na Igreja, tocara o sino
e agora não é que estavam todos eles ali esperando um sacerdote que, por alguma
dificuldade havida com o padre e que sobre qual problema que ele era capaz de ter tido,
eles eram incapazes de sequer imaginar, não havia ainda chegado para celebrar a missa. Isto
é o que acontece a nós, os leigos, que sem pensar, agimos como robôs, badalando às horas
programadas, nos nossos mecanismos internos, as ações das quais nos incumbimos, da
mesma maneira que, de forma automática, ao ouvir o sino todos nos levantamos, rematou
Mônica novamente sussurrando em seu ouvido, fazendo com que Robson sorrisse mais
uma vez.
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�Sente-se no ar uma aflição e um desconforto o que torna mais pesada a atmosfera,
provocando naqueles que são mais sensíveis e observadores, a impressão de que os
ruidosos motores dos ventiladores tinham agora a necessidade de imprimir mais força
ainda, para que suas hélices que um dia haviam sido negras e que agora, cobertas por uma
poeira fina e clara, se encontravam esbranquiçadas, pudessem girar e mais barulho ainda
provocassem. Sucedeu-se isto tudo numa daquelas ínfimas frações de tempo, que no
relógio não devem ter ocorrido em mais que um minuto, mas que na nave da capela
parecera ter durado bem mais que os aflitos e ansiosos considerariam como uma eternidade.
Lá dentro da apertada sacristia, despertado das suas reflexões, o sacerdote faz andar, não
sem um quê de impaciência, a pequena procissão que passa então mais rápida do que de
costume sob a mesma porta de onde Robson presumira iria sair o padre e o seu séquito.
EXPECTATIVA
Marta e Tomás viriam almoçar naquele que era o primeiro domingo de curtir a casa. Dia
em que Mônica programara continuar a arrumação das coisas no novo lar. Apesar de ter
julgado, a princípio, como atitude prematura o convite feito por Robson para que o casal
tão amigo de noivos comesse com eles, já tinha relevado tal julgamento. Primeiro porque
gostava demais da presença dos dois companheiros e também porque, como toda recém
casada, Mônica naturalmente estava ansiosa e demonstrava isto ao enrolar e desenrolar,
com os dedos da mão esquerda, os cachos do sedoso e bonito cabelo ondulado, agora
menor, pois que fora cortado para o casamento, para mostrar aos amigos a nova casa, os
presentes e principalmente o toque pessoal que a tudo ela dava na decoração do pequeno
apartamento.
Não que houvesse tranqüilidade nela quanto aos resultados da tarefa de preparação da
comida que com toda certeza caberia a ela, posto que Robson mal-mal possuía competência
para fritar um ovo. Insistiam em permanecer, rodando pela sua cabeça, incertezas sobre o
cardápio com tanto esmero escolhido e por sua insegurança outro tanto de vezes
modificado, bem como também dúvidas a respeito da apreciação que os três comensais
fariam, daquela que seria a sua primeira produção culinária mais elaborada. Risonha não
obstante essas expectativas, ela acha nas lembranças do último encontro havido entre eles o
definitivo ponto que a fez ver, agora de forma que considera irretocável, não ter sido
precipitado aquele convite feito pelo marido.
Não é que foram Marta e Tomás que se convidaram? Mônica constata não sem alguma
surpresa. Sem educação teria sido Robson caso tivesse optado por ficar, como eu
permaneci, em silêncio diante das insinuações tão insistentes feitas a nós dois para que os
chamássemos a uma visita nesse domingo pós a lua de mel. Não, e Mônica volta ao ponto
inicial da incerteza, que momentos antes até julgara ser imutável, em considerar precipitado
o convite feito pelo marido, mas Robson poderia tê-los convidado para algo mais simples
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�como um lanche de final de tarde. Era só passar na padaria, comprar algumas coisinhas
gostosas e já prontas, uma cerveja, ou talvez por segurança deveríamos trazer duas, um
refrigerante diet e a mesa já estaria posta e pronta.
Tudo tão limpo, tão arrumado e Robson não entendia a faina da mulher que tendo acordado
mais cedo, deixando-o entre os lençóis naquele último e mais gostoso sono, troca de
posição os objetos de decoração e os três porta-retratos postos sobre a mobília. E lá vem
mais uma varrida nos cômodos, outra nova passada de pano sobre os móveis e estava ela
agora acertando algum impossível milimilímetro desaprumo naquele quadro que menos de
doze horas antes, na noite do sábado, ele instalara e alinhara, disto tinha a mais plena
certeza, depois de fazer os furos na parede da pequena sala.
Aninhado na poltrona individual da sala e sentindo o conforto e o cheiro gostoso de novo
que sai dela, se dá conta de que, pelo menos na sua casa, pois que na loja de móveis outros
prováveis compradores poderiam tê-lo feito, era ele o primeiro a se assentar ali, observa
curioso a mulher correndo para lá e para cá, pronto que já se encontra para ir pela primeira
vez à capela, cinco quadras distante, para a missa. Preocupado desde a infância com o
cumprimento rigoroso dos horários, já fizera por duas vezes o alerta para que ela deixasse
de lado aquela arrumação, que no seu modo de perceber as coisas era totalmente
desnecessária, e fosse se aprontar para irem logo à Igreja. Haveria tempo de sobra quando
retornassem da missa para deixar aquilo tudo, que para ele estava mais do que pronto e
arrumado e que para ela ainda carecia de um retoque final, para que pudessem bem receber
o casal amigo.
O odor agradável de carne assando no estréia do forno do fogão, que agora invade todo o
apartamento, torna-se mais uma constatação para Robson de que a mulher não quer
nenhuma surpresa e procura deixar tudo arrumado para a recepção das visitas. Pano de
limpeza numa mão e espanador na outra, Mônica passa pela poltrona e lhe beija os cabelos
no topo da cabeça, dizendo que não eram necessários mais que cinco minutos para que se
tornasse também pronta para saírem. Apesar da pouca crença de Robson de que esse seu
dito se cumpriria, em cinco minutos ela já se apresentava à sua frente linda e de saltos
baixos para não ficar mais alta do que o marido, para que juntos pudessem ir à missa
naquela que dali por diante se tornaria a comunidade onde viveriam, como leigos, o amor
de Deus que nas suas vidas sentiam representado no sacramento do matrimonio vivido por
eles desde há tão pouco tempo. Conforme era a pretensão deles, iriam chegar cedo.
Necessitavam de tempo suficiente para conhecer e sentir, antes do início da celebração, o
novo ambiente.
Na rampa que dava acesso à única porta da capela umas quinze pessoas, várias delas
vestidas com camisetas coloridas nomeando-as como pertencentes às pastorais do dízimo,
da catequese e do batismo, conversavam espalhadas em pequenos grupos e nenhum dentre
eles lhes dirigiu palavra ou algum gesto por pequeno que fosse de simpatia e acolhimento.
Como os irmãos separados são mais cuidadosos que nós, os católicos, na recepção dos fiéis
que chegam pela primeira vez às suas igrejas para as celebrações, pensou Robson enquanto
passavam pela rampa e entravam no templo. Indo um pouco à frente e puxando-o pela mão,
Mônica escolhe sem nenhuma dificuldade, pois que em sua grande maioria os bancos ainda
se encontravam vazios, aquele que lhe pareceu ter, além de uma boa visão do altar, também
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�uma melhor ventilação, pela proximidade da janela de um lado e do grande ventilador com
as hélices pretas e empoeiradas em formato parecido com o de imensas colheres. Ligeiros
se ajoelham se acomodando no banco estreito de madeira avermelhada.
Sentados agora seus olhos passeiam descansados e sem nenhuma pressa, por todos os
espaços visíveis a partir daquele posto de observação que tomaram na capela. Fazendo jus à
sua profissão, rápido, Robson observa a falha de segurança cometida pela engenharia
naquela construção, eis que somente uma saída havia ali para o caso de ocorrer alguma
emergência mais séria e que exigisse uma rápida evacuação do lugar. Mônica entretia-se
admirando os belos quadros da Via Sacra, não sem que também tivesse deixado de observar
ter sido aquela igreja construída, obviamente, para que nela fosse instalado um sistema de
ar refrigerado e quem sabe faltou dinheiro, pois que se tivesse sido do jeito que ali
acontecia, com o uso dos ventiladores apenas, bem mais janelas deveria de haver nas suas
paredes brancas laterais. Enquanto percebem que à sua volta pouco a pouco vão chegando
os fiéis, eles comentam um com o outro essas suas impressões.
A conversa sussurrada retoma o tema tratado por eles quando Robson, orientado por
Mônica, batia firme o martelo e fazia os furos nas paredes para que nelas pudessem estar
pendurados os diversos pratos, colecionados pela mulher desde a adolescência, guardados
que foram com todo cuidado para a sua casa e os três quadros que haviam sido pintados e
presenteados por Marisa, irmã dela e também sua madrinha de casamento. Falavam dos
seus muitos sonhos que pretendiam verem realizados através dos trabalhos pastorais que
com toda certeza iriam desenvolver ali na nova comunidade. Mônica lembrava-se da
facilidade que sempre tivera para lidar com as crianças e os adolescentes. Robson dizia não
sentir que se situava por aí o chamado que sentia de Deus na sua oração, para o exercício da
missão comunitária. Não é, ele lhe dizia com muita ênfase, que experimentava nos últimos
tempos um apelo bem forte para atuar na formação religiosa dos adultos? Fazer algo na
preparação dos leigos botando em prática os estudos variados de teologia laical que nos
últimos anos havia feito, para que surgisse mais viçosa a Igreja de comunhão e participação
com a qual tanto eles dois sonham.
Acaba a recitação do terço pelo grupo de mulheres, agora enxertado por várias outras
paroquianas, umas poucas dentre elas de meia idade e até uma ou outra mais jovem e
salpicado entremeio a elas por alguns poucos homens. Tudo gente que chegara para a missa
de daí a pouco. Minutos depois, ainda quando revisitavam o assunto da noite passada,
chega um homem e toma o microfone iniciando uma admoestação. Não há como negar que
as palavras, num tom grave e deixando a aparência de serem proferidas em câmera lenta,
daquele senhor não tenham exercido função semelhante a uma ducha de água gelada nos
anseios de trabalho apostólico do casal. Se este é o líder comunitário ele deve ter falado em
nome do padre e se é isto que o sacerdote e a nossa nova comunidade pensam a respeito do
papel que o leigo deve exercer na Igreja nós, literalmente, estamos fritos, pois que teremos
um trabalho hercúleo em fazê-los enxergar que há toda uma nova postura e um espaço
diferente a ser conquistado na Igreja pelos leigos. Foi assim, ainda de surpresa, que Robson
falou baixinho ao ouvido de Mônica, comentando o discurso proferido por Nelson lá do
ambão ao lado direito do altar.
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�Ela retrucou então lhe dizendo em meio àquele sorriso que desde a primeira vez em que a
viu tanto o encantara, que o problema de que agora eles tomavam conhecimento exigia ser
observado também por um outro ângulo e nessa nova ótica ela sugeriu que seria possível
fazer uma avaliação diferente do fato. O que havia sido entendido por Robson como um
imenso problema, passava a ser no seu novo ponto de vista uma desafiadora oportunidade.
O ângulo alternativo sugerido por Mônica mostrava quão belo era aquele campo de missão
que o Senhor colocava à frente deles. O trabalho de transformação de uma comunidade
acomodada e vivendo em muitos aspectos uma existência pré-conciliar em uma nova Igreja
comprometida e na qual, leigos e hierarquia, de mãos dadas, se colocassem unidos na
construção do Reino de Deus entre nós.
COLUNAS
Padre Rogério abaixa-se para beijar o altar deixando à mostra o rarear dos cabelos no alto
da cabeça. Levantando agora o rosto que lhe dava a aparência ainda de uma menor idade
daquela que na realidade possui, mira a assembléia enquanto faz o sinal da cruz. Não deixa
de reparar no casal jovem e novato ali nas suas celebrações em meio àquele lugar que
sempre era ocupado pelo grupinho de idosos da Renovação Carismática tão seu conhecido.
Olhando melhor, pela idade que aparentam, um dos dois será neto de um daqueles casais,
não fosse por isto não estariam sentados em meio a eles dessa forma tão espremida, teria
sido muito mais confortável se houvessem permanecido em pé. O rapaz, coitado, parece ter
se colocado meio de lado até, na busca de posição mais cômoda, intuía Rogério.
A comunidade agora pede perdão pelos seus pecados e o olhar do padre chega mais uma
vez àquele local onde estão Mônica e Robson. Mais um casal de classe média pensou, aqui
dentro da Igreja. Temos um público interno que é tão diferente daquele que se situa ao pé
da rampa de entrada no final das missas. Lá fica o depósito de gêneros alimentícios e
roupas dos vicentinos e à sua porta, sempre que temos celebrações aqui no alto, está sempre
postado um aglomerado de gente pobre. Qual o porquê de não vê-los aqui dentro,
celebrando com todos? O que deve ser feito para conseguirmos inseri-los na comunidade?
É como se não se sentissem à vontade para se servirem à mesa principal, ficando, lá no
chão, aos pés dela para pegar as migalhas que caem da mesa farta do Senhor.
A primeira leitura da missa falava da necessidade da reconstrução do templo de Jerusalém
pelo povo eleito e, de imediato, a cara triste da zeladora da capelinha do alto da favela lhe
invade a cabeça. Rosto enrugado de gente sofrida, cada uma daquelas rugas de Dona
Amélia devia de ter uma história, uma luta, uma dor, um sofrer sentido. Recorda-se da
tristeza da velha ao relatar-lhe o caso das colunas de mármore que há tantos anos eram
enfeites da Capela da Virgem de Nazaré.
-O pároco resolveu reformar a Igreja matriz. Coisa da maior necessidade, ninguém há de
por nessa decisão algum vamos ver direito ou espera lá que seja. Os cupins estavam mais
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�piedosos que as donas beatas e não sei se orar eles rezavam, mas que trabalhavam dia e
noite lá por dentro do altar, isto eles labutavam. Ela ria mostrando as muitas gengivas
vazias do branco dos dentes. O altar, muito antigo, de madeira, da matriz estava oco que
nem despensa de pobre. As madames e os doutores que lá freqüentam mereciam mesmo um
altar novo. Nisto, já disse para o senhor, não tem que se botar nenhum porém. O que ficou
ruim demais da conta e nos chateou, seu padre menino, foi que ele mandou aqui no alto do
morro a Kombi para buscar aquelas duas pilastras que o senhor conhece bem porque são
elas que adornam agora as laterais do altar novo da igreja principal.
Não sabia que elas eram de lá, foi o que retruquei e Dona Amélia prosseguiu célere.
-O senhor, padre menino – é assim que ela me chama – há de ir me desculpando por eu
estar nesse chororô de lembranças tristes, mas foi exata essa coisa que muito magoou a
gente da nossa capelinha do alto. O senhor pode acreditar que teve até umas pessoas, dessas
que são mais fracas de fé e que acabam pondo o seu credo mais nos humanos e nas coisas e
menos no Espírito de Deus, que até deixaram a nossa comunidade? Aquelas pilastras são do
melhor mármore. O senhor padre menino já há com toda certeza reparado na lindeza que
tem o tom de colorido delas. Coisa de país estrangeiro. Das itálias, é o que os mais antigos,
dos remotos anos quando eu ainda pelejava na roça lá pros lados da Bahia, antes que o
chicote da seca imensa nos tocasse, como bois tangidos na busca do poço de água que
garante a vida, para a cidade grande, onde só tivemos guarida aqui na favela no alto do
morro.
São muito bonitas realmente. Chamam mesmo a atenção. Vou até confessar para a senhora
que, pela causa mesma dessa beleza, eu não gosto quando põem, na matriz, lá em cima
delas aquelas samambaias que vocês chamam de choronas, porque quando fazem isto, as
ramas compridas da planta escondem a beleza que é o mármore rosa no qual elas foram
esculpidas.
-O que mais nos doeu foi que na nossa pouca inteligência, pois que somos pessoas que não
têm nenhum estudo e no caso de se ser necessário que se coloque as letras no caderno não
vai sair nada que faça que possa ser lido e entendido por alguém letrado. Mas como eu
assuntava com o senhor, seu padre menino, dolorido foi quando nos demos conta de que o
padre vigário e o povo da matriz tinham medo ou até duvidavam da nossa capacidade de
cuidar e proteger as peças que eram da nossa capelinha da Virgem. Teve gente nossa que
até achou de dizer que eles lá que tinham os estudos e o muito dinheiro é que sabiam das
coisas e que o melhor mesmo que as pilastras tinham que fazer eram elas enfeitarem o altar
da igreja que também é nossa, a principal, grande e plena de importância e não ficar onde
as pessoas nem dão valor a elas por não entenderem de arte e de coisas caras. Desacordo
desses. Pois não é que o senhor mesmo está me falando que o povo da matriz põe
samambaia chorona em cima delas encobrindo toda a sua arte e cara boniteza? Que Deus
me perdoe, mas a sua mãe, a Virgem Menina de Nazaré, estava tão acostumada já com as
pilastras, para mim até ela gostava demais da conta delas junto conosco, que ela se quedou
tristinha com a saída das suas pilastras naquele sábado na Kombi da paróquia, carro esse
que nunca tinha subido aqui no alto e que quando veio não foi para nos trazer alegria, mas,
ao contrário, levou de nós a belezura que a nossa santinha tinha tanto gosto de estar delas
bem juntinha. Toda vez que eu vejo o barulho da Kombi subindo o morro para trazer o
senhor, me vem a lembrança daquele dia primeiro que ela veio até aqui e nos levou embora
os ornamentos da Santa no altar.
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�Alencar, o ministro, sentado junto nas cadeiras de espaldar alto, cutuca-o novamente, agora
mais sutilmente com o cotovelo. Chegara a hora da Aclamação ao Evangelho e todos já se
tinham postos de pé. Sempre obediente, Alencar e os coroinhas escalados para aquele
domingo aguardavam que o padre se levantasse e o cotovelo batendo de leve na sua costela
acordou-o do relembrar dos pedaços das conversas tão boas que costumava ter com Dona
Amélia naqueles dias em que subia o morro para lá no alto celebrar a missa com o povo
simples do lugar e da sua vergonha pela atitude impensada e com toda certeza, é bom que
se frise, sem a mínima maldade, pois que é homem muito bom, do seu superior tirando da
capela dos pobres os enfeites de mármore rosa que a adornavam.
Rogério aterriza de novo. Respira mais fundo que de costume e, de novo presente à
celebração que preside, canta com voz forte e afinada até que segundos depois voa
novamente. Meu Deus, perdão pela minha dispersão e pela desatenção do padre em não
notar que a sua ação de trazer as tais colunas não era nem um pouco justa com esses seus
paroquianos mais simples. Não sou capaz de lembrar-me de uma palavra que seja do que
foi rezado no salmo responsorial e da segunda leitura da missa, vagamente me vem umas
poucas palavras perdidas de um sentido maior. Baixa os olhos e passa-os verticalmente por
sobre o texto da leitura feita, retomando assim a preparação que havia feito para a homilia.
Nela, teve que frear a língua e, por muito pouco, não trocou a palavra “colinas” por colunas
tão impregnada estava no subconsciente a triste tomada das tais colunas de mármore rosa,
chamadas por Dona Amélia de pilastras.
IMPRESSÕES
Era a mesma a impressão causada nos dois pela homilia de Padre Rogério. Esperavam bem
mais da pregação do celebrante. Ele não soubera aproveitar as belas mensagens contidas
nas leituras previstas na liturgia para aquele domingo. Para Mônica ele parecera estar
distante, preocupado, quem sabe, com outras coisas. Robson também tivera a mesma
sensação. Pois não era, comenta, ao mesmo tempo perguntando à esposa, que tinha ficado
totalmente fora de contexto a metáfora de colina que ele usara na tentativa de explicar a
noção de reconstrução do templo contida na primeira leitura? Pois é, riu Mônica, ao invés
de explicar clareando a idéia, ele confundiu-nos a todos. Robson balança positivamente a
cabeça e sentindo que o rosto posicionado do lado direito se virara para o seu lado, olha
também para ele e sente-se fuzilado pelo olhar firme que brilha por de trás daquela armação
de óculos moderna e de lente espessa que em nada combinavam com o traçado, as roupas e
a idade daquela a qual serviam. Sorri, como que se desculpando do cochichar que
incomodara à vizinhança, recordando-se do quanto ele também se sente incomodado
quando há conversas à sua volta em meio às celebrações das quais participa.
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�Não era somente o celebrante que se encontrava disperso, também Robson assim se sentia.
Desde que chegaram não conseguira concentrar-se entrando no clima exigido pela
celebração. O pensamento vai e vem na gangorra em meio às muitas emoções fortes vividas
nos últimos tempos por ele. Talvez por tê-lo achado tão parecido com aquele diácono que
lhes falara naquele domingo, há dois meses, sobre o sacramento do matrimônio no encontro
de noivos que fora promovido pela Pastoral Familiar da sua antiga paróquia, o ministro das
palavras infelizes de antes da missa, a lembrança de tal encontro lhe veio cheia à memória.
Também aquele diácono não tivera sucesso na sua palestra e os conceitos propalados por
ele, bem como os exemplos que sugerira para serem seguidos por aqueles vinte casais
participantes como eles do curso, não eram nem um pouco condizentes com a realidade
vivida hoje em dia pelos casais jovens.
Não que houvesse cometido alguma heresia, pregando uma moral desalinhada com as
diretrizes emanadas do Vaticano. O que ocorrera é que, e Robson não sabe direito se pode
pensar assim das palavras ocas saídas da boca do diácono, elas chegavam aos seus ouvintes
como sons fora de foco, parecendo terem sido emitidos em outras eras. Era como se eles
estivessem ouvindo em tempos do disco a laser, o som chiado e cheio de falhas dum disco
de setenta e oito rotações que, além disso, também se encontrava trincado porque o tal
palestrante era muito repetitivo e não avançava nunca nos assuntos, batendo e rebatendo
sempre nas mesmas teclas. Os volteios se davam principalmente se fossem referentes a
pontos de alguma doutrina ou pastoral para a qual tinha havido uma baixa recepção por
parte dos fiéis na Igreja, ou que à luz das mutações cada dia mais profundas e rápidas
vividas na sociedade, devem, portanto serem revisitadas.
Nos ensinamentos que recebemos da nossa mãe a Igreja é de primordial importância que
seja feita a avaliação do que nos é passado, verificando-se se tratam de pontos doutrinais ou
pastorais. Os primeiros, aqueles que visam rechaçar uma doutrina como falsa ou autorizá-la
como verdadeira, exato o que não ocorre nas segundas, as questões pastorais. Estas, que em
determinada época podem ter sido consideradas como inseguras, em outras circunstâncias e
tempos já poderão ter se tornado seguras. Nosso palestrante diácono tratava como efetiva
doutrina aspectos que são pastorais e que além do mais têm hoje baixíssima acolhida por
parte dos cristãos e estão a exigir novas leituras e orientações para nós, os fiéis.
Incomodara-o sobremaneira o modo autoritário e muito mais legalista até do que pretendia
ser a própria lei com que, dentre vários outros pontos repetidos à exaustão na longa e muito
cansativa palestra, o diácono tratara das questões relativas à moral da afetividade e da
sexualidade. Junto a muita gente na hierarquia da Igreja, também aquele diácono parecera
aos dois ter uma certa fixação, quem sabe até um tanto quanto mórbida, pelas questões
referentes à sexualidade. Pobre homem a quem uma boa terapia muito auxiliaria, remata
Robson a reflexão. Lembra-se agora do comentário muito pertinente feito por uma das
noivas no intervalo do café e que os fizera a todos rir muito. A tal moça observara que
fossem aqueles conselhos seguidos dali por diante, não haverá no mundo nos anos
vindouros uma nova geração de filhos de cristãos, pois que seríamos todos nós os batizados
e seguidores de Jesus, como ele, o diácono, também celibatários e guardiões da virgindade.
Em meio às gargalhadas gerais que tal comentário provocara, Mônica havia completado,
fazendo com que fossem aumentados os decibéis provocados por tantos risos, que caso o tal
10
�diácono houvesse pregado uns vinte anos antes para os pais deles e por eles tivesse sido
atendido, nenhum deles ali estaria para constituir platéia para a palestra. Eram coisas assim
que passavam pela sua cabeça enquanto lá na frente, no altar, o sacerdote ofertava ao Pai o
pão e o vinho para o sacrifício. Queria porque queria partilhar com sua mulher sentada ali
ao lado dele esses pensamentos todos, mas a lembrança do olhar de desaprovação sentido
forte, mesmo que aliviado no seu ímpeto por estar protegido detrás de lentes tão espessas,
da velhinha do lado direito, somado ao fato de que o estar disperso não lhe dava nenhum
direito de tirar também a concentração de Mônica, ao contrário, o estado de distração no
qual estava imerso estava a lhe exigir que brigasse com ele, que o dominasse e o
mantivesse sob seu controle, voltando dessa forma a atenção para o clima celebrativo que a
cerimônia e a sua fé pediam, mas Robson sabe que se localiza muito longe dessa disposição
e sente-se fraco e incapaz para esta luta enquanto o pensamento rodopia cada vez mais
rápido em sua cabeça.
Das tantas palavras que vem lhe visitar sentado espremido naquele banco da capela, três
permanecem dando saltos no cérebro, como que implorando para que lhes fossem
concedidas uma maior atenção. “Lei, celibatários e virgindade” são as tais palavras pulantes
que faziam com que vibrassem os seus miolos. Resolve então escrever uma carta para o
diácono – como é mesmo o nome dele? – como fizera tantas vezes anos antes com Tomás,
o amigo querido que os visitará dali a pouco. Lamenta a velha e conhecida incompetência
de só conseguir reunir na cabeça os argumentos para rebater algo que escuta e do qual
discorda, depois de passado algum tempo do fato ocorrido, quando não há mais tempo para
rebatê-lo. Relembra o tempo das cartas e agradece a Deus, ali durante aquele ofertório, o
fato delas terem ajudado Tomás na sua conversão, bem como também auxiliaram Mônica,
Marta e alguns outros amigos que, com a ampliação dos destinatários das cartas, acabaram
sendo beneficiados também por elas.
Imagina então como seria a tal carta para o diácono anônimo. Faz e refaz mentalmente o
começo da correspondência. Testa o seu início começando pelas leis, acha melhor agora
que não seria uma boa idéia iniciar o texto por elas, quem sabe não será mais interessante
terminar por elas depois de ter discorrido, e até daria para juntá-las no mesmo parágrafo, as
explicações que iria dar sobre as duas outras palavras: celibatários e virgindade?
Ali, em meio à celebração do memorial da paixão, morte e ressurreição de Jesus, repassa as
variadas vezes em que Ele, a quem seguimos, questiona as leis da sua época. Torna-se
então muito claro ao contemplar essas cenas a total liberdade do Mestre frente às regras que
mantinham presos os seus conterrâneos seguidores da Lei Mosaica. “É por isto que vos
digo: a lei tem que nos libertar. Somente livres chegaremos até o meu Pai. Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça, lei que aprisiona não é lei, é prisão que não leva ao meu Pai”.
Está aí uma frase que poderia muito bem ter saído da boca de Jesus, uma bem provável
“ipsissima verba”.Quem haveria de afiançar que não poderiam ter sido usadas em uma de
suas pregações a proclamação de tais palavras?
Como os fariseus contemporâneos de Jesus de Nazaré, também muita gente na Igreja de
hoje vive todo seu apostolado tentando passar ao povo de Deus uma religião feita só de leis,
de regras, procedimentos e rituais que acabam por realizar nos dias atuais o mesmo papel
que aquelas muitas prescrições judaicas exerciam sobre os anawin, os pobres de Javé,
11
�aprisionando-os. Precisamos urgente de profetas que denunciem a forma como são
colocadas as leis. Elas, é mais do que óbvio, são necessárias e têm que existir. O problema
acontece quando as colocamos acima do homem e aí lhe vem mais uma vez, o exemplo da
malfadada palestra do diácono sem nome. Por que costumamos nos esquecer dos exemplos
dados por aquele que, desde há dois mil anos, buscamos seguir e que teve uma prática de
vida de total liberdade em relação a uma religião legalista que, ao invés de conduzir, acaba
por dificultar a caminhada do povo para Deus?
Quando esquecidos do agir de Jesus nós aumentamos o legalismo da religião e temos como
primeira conseqüência desse incremento legal, a exclusão cada vez maior dos pobres do
seio da Igreja. Não há aqui hoje nesta capela uma prova cabal e triste disto? Onde estão os
tantos e tantos pobres também moradores aqui deste bairro? À minha volta, com raríssimas
exceções, quem sabe de um ou outro pobre mais cara de pau, só temos presentes gente que
pelo seu modo de se portar e vestir situa-se dentro dos padrões vigentes na nossa sociedade
capitalista, inserida da classe média para cima.
Recorda-se daquela vez em que no mutirão para consertar as casas da vila, construída para
os velhinhos abandonados pelas suas famílias, conheceu e trabalhou como auxiliar de
pedreiro de Seu Milton, preto velho, homem comprido e reto como um poste fino, de
braços longos e alta estatura na muita magreza para tal tamanho e que diante de gente que
não era da sua mesma condição social, tornava-se sempre desconfiado e mantinha os olhos,
postos lá no alto do seu rosto, voltados para o chão.
Seu Milton me dizia então, encabulado e tendo muitas dificuldades em passar as ordens
para mim e é óbvio que era imprescindível que eu as tivesse, porque daquela profissão eu
não era possuidor da menor noção que fosse do como deveria me comportar para lhe
auxiliar ali no trabalho. Com o passar das horas e o conseqüente aumento do meu cansaço,
por não estar nem um pouco acostumado ao exercício de uma atividade tão bruta, enquanto
ele não dava a menor mostra de que sentisse o grande esforço que fazíamos para dar conta
daquela construção até o final do dia, Seu Milton, foi se soltando e houve momentos em
que muito conversamos. Foi quando pude ver melhor seu rosto chupado de homem muito
delgado e olhos parecendo serem de cavalos de tão tristes que eles eram. Dizia ser muito
fácil reconhecer um pobre, mesmo quando este estivesse travestido com roupas de gente
melhor situada, com mais importância na hierarquia social, ele me garantia. Pobre pisa leve
e delicado como se calçasse pano, não faz barulho no chão. Pobre nunca mira nos olhos de
alguém que ele considere como seu superior por ser gente que tem mais dinheiro ou mais
cultura do que ele, afirmava essas coisas falando baixo e de forma macia, medindo cada
uma das palavras que pronunciava.
Indaguei-lhe dos porquês para mim deste curioso comportamento e respondeu-me lá com
suas palavras simplórias e ao mesmo tempo profundas que quando o pobre se esquece da
necessidade desse cuidado e fica metido a besta, pisando forte e olhando para a frente em
ambientes outros que não aqueles onde, por se sentir em meio aos seus, ele pode agir assim,
coitado, num triz vai se dar mal tomando alguma cacetada nos cornos. E olha que esse
cacete, ele procurava me mostrar, não precisa vir da forma física como nós muitas vezes
pensamos. Tem umas outras pancadas que doem muito mais. São as que batem lá dentro da
gente, no coração. É um olhar, um gesto, um não nos ver, uma palavra mal dita, atitudes,
12
�ações e palavras que querem fazer com que o pobre sinta a sua situação de menor, de
invisível, a condição de alguém que precisa reconhecer o lugar que, claro, não é aquele
onde está que lhe foi conferido pela sociedade e que tem mais é que retornar logo para o
seu espaço de origem, onde deve permanecer confinado e submisso.
E por aí foram subindo parede acima as suas razoáveis palavras, construindo também em
mim a consciência de que sem que tivesse me dado conta, no dia a dia, já tinha observado
este comportamento das pessoas mais simples que ele me contara, mas nunca atinara do
porquê dele nem lhe dera alguma mínima importância que fosse. Seu Milton, preto velho e
esperto, me ensinou que o agir do pobre olhando para baixo e pisando macio é para que não
sofra de novo com os já, tantas vezes vividos desde a mais tenra infância, sentimentos de
exclusão e de não aceitação por parte duma sociedade que criamos e que é tão
preconceituosa, da qual participa também e por causa disto tanto exclui, a nossa Santa
Madre Igreja.
O que as pessoas que pregam e acabam por exigir um legalismo estéril dentro da Igreja
precisam saber é que as vítimas principais desta sua postura são em primeiro lugar eles
mesmos e depois os pobres. O que também quer dizer que muitos desses que rezam nesse
catecismo têm o seu prejuízo dobrado, pois que já fazem parte da comunidade imensa e
sempre crescente, devido ao modelo econômico vigente, dos excluídos e como se não
bastasse essa exclusão, por opção própria escolheram também viver na Igreja esta postura
de subserviência que tanto mal faz a nós leigos frente à hierarquia, ou seja, são vitimados
duplamente. Mas aí tem um senão: caso esses pobres tenham feito realmente uma opção
consciente por este seguimento, menos mal porque dentre outras possibilidades lhes foi
dada a liberdade da escolha.
O que é terrível é que muitos dos que adotam essa linha legalista na Igreja a seguem porque
em nenhum momento lhes foi dada a possibilidade sequer de pensarem que haveria outro
caminho a ser seguido, uma outra via muito mais bela, rica e condizente com as palavras e
atitudes de Jesus a ser vivida. Acho que seria algo assim o que escreveria sobre a lei ao
diácono que nos fez a palestra. Caso fôssemos todos nós que lá estivemos e o ouvimos,
cristãos com um conhecimento mais aprofundado da nossa fé, ainda vá lá, mas o problema
é que dentre aqueles casais havia vários que tiveram um catecismo falho, o que os fazia
presas fáceis de idéias retrógradas e distantes das que pregou Jesus quando viveu entre nós.
O ofertório terminara e Robson aliviando-se do desconforto levanta-se num pulo, junto a
toda assembléia.
TIME
O padre está com sono. É a segunda vez hoje que tenho que acordá-lo, foi o que imaginou
Alencar. Esses padres novos só querem diversão. Dão a vida por uma festa e saltam de
13
�galho em galho de uma para outra no afã de aproveitá-las todas. Deve ter ficado até altas
madrugadas na comemoração de algum casamento que ele celebrou ontem de noite. No
tempo do Padre Justino coisa assim jamais aconteceria. Nunca que ele aceitava convites
para eventos desse tipo, exceto é claro as inocentes quermesses paroquiais, que essas são
saudáveis e qualquer criança pode participar sem que haja a possibilidade dos seus pais
levarem por conta disto o menor susto que seja, emendava em suas reflexões o ministro, já
botando certezas em suas conjecturas no que sua fértil imaginação havia pensado ter sido a
noite anterior do padre. Este não é um bom clérigo para a nossa comunidade, arrematou
finalizando.
Alencar, 72 anos, já tinha visto e vivido de tudo, envolto que fora em muitas realidades
diferentes nas comunidades em que vida afora seguira a fé. Várias vezes ele teve
dificuldades com a postura que considera moderna e perniciosa da Igreja instituição de hoje
em dia, sendo que em algumas delas chegou até a viver conflitos mais sérios com a galeria
de sacerdotes e bispos que passaram pela sua existência, mas agora o caldo entornara mais
quente ainda e ele tinha a nítida impressão de viver ali a sua crise mais severa com o clero.
Alencar não entendia definitivamente a cabeça de Padre Rogério e considerava um
despautério a nomeação pelo bispo de um sacerdote tão inexperiente e fraco para ajudar ao
pároco em comunidades que são tão importantes e que possuem o seu modo de ser Igreja já
totalmente estruturado, como era ali na capela em que nesses últimos anos vivia e
trabalhava servindo à sua fé.
Uma comunidade, como ele gostava sempre de dizer, usando a imagem esportiva para
deixar ainda mais clara a idéia que pretendia ver formada, que jogava por música. Aqui
todos sabem a hora exata de atuar. Ninguém perde a bola deixando-a bater na canela. Aliás,
minto, há que se por este verbo no passado. Ninguém desafinava, pois que agora, desde há
dois anos, quando chegou aqui esse garoto, nós costumamos perder muitas jogadas para o
adversário e temos tomado gols em todos os jogos, não conseguindo o nosso ataque, em
contrapartida, marcar os tentos tão necessários para que vençamos os jogos da nossa fé
cristã autêntica e pura. Depois de liderarmos a tabela por muito tempo estamos na lanterna.
Esse padre novo acabará por rebaixar a nossa comunidade, levando-a de roldão para as
séries inferiores até matá-la num futuro que se avizinha.
Para Alencar era mais do que evidente que o padre novo viera para agir ali entre eles como
um dos sinais do final dos tempos e este era mais um exemplo do grande poder do diabo
que andava cada dia mais potente na Igreja. Visto por outro ângulo, esta constatação até lhe
dava consolo porque era prova de que a nova e tão esperada vinda de Cristo estava
iminente. As pessoas são desatentas e não reparam que depois dele, o cujo, ter provocado
tantas divisões no cristianismo, agora trabalha inserido no próprio clero, infiltrando esses
padres moderninhos na casa de Deus. Será que ninguém vê que por causa dessa Igreja
moderna os protestantes seguem para de tudo tomar conta e que só aqui na nossa rua temos
cinco igrejas dos crentes? Não observam que em algumas delas há mais fiéis freqüentando
os cultos do que católicos na missa, vivendo aqui que é o verdadeiro templo de Deus?
Isto sem nem pensar, que isto eu não quero mesmo, nos tais muçulmanos que agora,
impelidos mundo afora pelo demônio, quando não estão jogando carros bomba ou aviões
por sobre alvos cristãos e judeus, eles estão que se explodem em meio ao povo depois de ter
14
�amarrado na cintura um tanto de explosivos capaz de fazer a festa de muitas viradas de ano
novo nas nossas cidades. O capeta está vivo e forte. Fortíssimo, mas se alguém pensa que
isto é de todo ruim, está redondamente enganado. A força de satanás hoje em dia é prova de
que o tempo do Apocalipse chegará breve e a vitória do Cordeiro aí será definitiva com nós
todos que fomos fiéis juntos a Ele neste vale de lágrimas e provação, também unidos ao
Senhor gozaremos da glória eterna.
Deus me perdoe por achar que esse padre dorminhoco é enviado do coisa ruim, mas não
consigo parar de imaginar algo diferente disso, com as chances que ele me dá de pensar
assim. Esta manhã mesmo já me vem este exemplo que me faz capaz de mostrar a ação do
mal nele a partir da observação que faço do seu impacto negativo em mim. Não foi que
depois de eu vir sereno e tranqüilo para a missa, após ter chegado cedo, cheio de contrição,
tanto que daqui da sacristia até acompanhei a recitação do terço e encontro o padre mais
desligado da tomada que urso hibernando no meio do inverno mais rigoroso? Peguei o
homem dormindo enquanto a comunidade, toda preparada e de pé lá na nave do templo nos
esperava. E não bastasse isto, agora vem ele dando esses sinais de impaciência passando a
impressão de que devemos correr na procissão de entrada, como se tivéssemos que dar um
pique depois de termos nos aquecido, saindo na boca do túnel de algum estádio para
adentrar o gramado. Procissão sempre foi procissão, seja aqui, em Roma, ou na China.
Tem que ser lenta, cuidadosa, cheia de reverência, temor e respeito. Entrar na igreja assim,
rápidos como esse padre parece querer nos empurrar, só pode ser algum arranjo daquele
que eu nem gosto de dizer o nome, para que eu e muitos outros fiéis tenhamos tirado a
concentração e entremos para a celebração eucarística fervendo em raiva.
Não que eu seja contra ela, a tal da raiva, todo mundo sabe que ela tem a hora de sua
necessidade. Não é a ira o pecado que é praticado por Deus? Graças eu te dou, Senhor, pela
minha santa raiva, é o que rezo ainda na procissão já dentro da capela. Quem é aquele
jovem casal que invadiu a nossa área privativa da terceira idade da Renovação? Pergunta-se
já respondendo que os dois só podem ser gente do padre novo. Quando eles vêm e está
escrito, a Bíblia já previra assim, não chegam de um em um. Vem em legião, bando, horda,
exército da discórdia que invade o campo para mexer no nosso time, fazendo com que caia
a qualidade do jogo de uma equipe tão boa, a da nossa Igreja e que estava vencendo todas
as partidas até que eles foram, a princípio bem discretamente e agora, Deus do céu,
invadem de forma descarada as nossas posições, sem o menor pudor de esconder as suas
intenções malignas de ferir de morte as colunas, até então tão firmes, da Santa Madre Igreja
Católica, Apostólica e Romana. Não tenho dúvidas disso, vários deles eu bem conheço e
dentre esses, vários dos enviados para a divisão e enfraquecimento do nosso time estão aqui
agora espalhados diante de mim.
Quem conhecesse e olhasse para Alencar com um pouco mais de atenção poderia reparar a
jugular grossa estufada no pescoço, o rosto mais vermelho do que o normal e o apertar
nervoso das mãos, amassando bem mais do que seria plausível e necessário o folheto da
missa que daí a instantes se iniciaria, enquanto mira com toda a força dos seus potentes
olhos irritados, o casal que só podia ser do mal, pois que se sentou em lugar, que todos ali
sabiam, já possuía donos e além de tudo mais, ainda dava mostras de não saber se
comportar dentro da igreja, com seus muitos sorrisos e pouco disfarçado palavrear. Um
15
�procedimento tão explícito dos dois que já havia sido reparado por ele nesse nem um
minuto em que se encontrava posicionado diante do altar.
É esse o tipo de gente que invade a equipe da Igreja hoje em dia, um povo sem a mínima
educação para a boa convivência numa instituição de fé como a nossa. Será que eles não
tiveram pais que os punissem disciplinando-os quando faziam as coisas erradas? Com
certeza que não. Estes aí só podem ser filhos de pais descasados. É o que sempre digo, foi o
divórcio a segunda posição que o diabo conquistou no nosso time. O primeiro lugar que ele
tomou, diferentemente do câncer do divórcio que foi uma posição de ataque, está localizada
na defesa e atende pelo vistoso nome de Concílio Vaticano II. Depois dele ficou
desguarnecida totalmente a nossa retaguarda, deixando que o inimigo entrasse livre e
trocando passes com a bola dominada, sem que ninguém lhe fosse dar combate, desse um
carrinho na bola ou mesmo prendesse as suas pernas, lhe fazendo uma falta, tornando assim
a defesa escancarada para que eles façam em nós esses tantos gols.
Vendo-me aqui em cima ao lado do celebrante no altar, muitos paroquianos podem até
pensar que mudei de lado e agora, depois de tantos anos de luta, baixei as armas, aliás,
melhor dizendo, podem achar que dependurei as chuteiras. Enganam-se redondamente
aqueles que pensam assim. Os que me conhecem bem sabem que não deixo fácil o campo.
Principalmente se a hora é difícil e o jogo está sendo perdido, mesmo que seja de muitos
gols a diferença, como acontece agora. Jogo até o final com garra e denodo. Sou fúria na
defesa e lança de ponta afiada e cheia de veneno no ataque até que o juiz supremo, o
Senhor Deus, apite o final do meu jogo. E não pensem vocês que estou cansado. Caso
preciso seja, apesar da minha idade avançada, estou pronto para prorrogações e até para
bater decisivos pênaltis na defesa das bandeiras da Cristandade.
Aceitei o convite para ser ministro da eucaristia porque julguei que neste posto tenho
melhores e maiores condições de lutar pela verdadeira fé. Uma pena, penso novamente, o
povo ser tão desligado. Fossem como eu, mais atentos, teriam percebido como o padre, aqui
do meu lado está dormindo. Pobres fiéis, pois que de uma outra forma também dormem
como o sacerdote aqui no altar. Devem pensar que o Padre Rogério medita de olhos
fechados e até são capazes de tecer elogios a tamanha contrição. Eu, aqui bem junto dele,
tenho certeza de que o gajo está em outros campos, bem longe. Quem sabe até, e que Deus
há de me perdoar caso esteja errado meu pensamento, mas nós que convivemos mais de
perto com esses padres da modernidade sabemos bem como eles são tão frágeis para estas
coisas da carne, ele na certa sonha com alguma dessas mocinhas doidivanas do grupo de
jovens que deve pelas suas graças estar bulindo com o coração dele.
Terminadas as duas leituras a assembléia se põe de pé para o canto de aclamação ao
Evangelho e Alencar, sabedor de que o padre voa bem alto e longe e sem dar mostras
também de que possua alguma consciência de que também ele está bem distante dali da
celebração, cutuca-o pela segunda vez naquele dia, tentando ser sutil, e graças a Deus,
conseguindo o seu intento. Enquanto se levantam junto aos coroinhas, alguns segundos
depois do povo já ter se levantado Alencar, olha de esguelha para o padre tendo presente no
rosto um sorriso misto de ironia e raiva.
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�Começa a homilia e de imediato retorna aos seus devaneios, não sem antes ter visitado com
os olhos os jovens novatos que, no seu modo de ver o mundo, só podiam ser gente que viria
trazer mais dificuldades ainda do que as tantas que eles já possuíam na comunidade,
reforçando bem mais as posições do time inimigo. Volta à infância e juventude para se
lembrar das celebrações do passado. Antes havia mistério, muita reverência e respeito
absoluto nas missas. No meu tempo a gente nem via durante a maior parte da missa o rosto
do sacerdote, nem as suas mãos e o que elas faziam escondidas, até que, maravilha das
maravilhas. Ele lá virado para o altar levantava o Corpo e o Sangue de Cristo. Hoje se
perdeu esta dimensão sagrada e misteriosa que havia na celebração católica. As missas são
feitas sem o cuidado e a beleza que a liturgia antiga exigia e tanto prezava.
Esta igrejinha de hoje não tem peso, não tem força. Não mandamos mais nada. Na política,
nem vereadores católicos nós conseguimos eleger hoje em dia. E nem quero pensar nos
deputados, mesmo que sejam dos menores, os estaduais. Católicos em cargos executivos?
Esses nem em sonhos mais ousados somos capazes na atualidade de imaginar. Antes eu
reclamava e sentia muita falta da ausência dos partidos cristãos e dos seus candidatos fortes
e vencedores do passado e não tímidos e parecendo envergonhados como aparentam ser os
candidatinhos de hoje. Os gatos pingados que vez ou outra teimam em aparecer se
identificando, com coragem, como verdadeiros candidatos católicos apostólicos romanos
são raríssimos, ao contrário dos irmãos frouxos, pois que desses há milhões dando sopa por
aí. Os católicos são tão moles e aqueles irmãos da fé em quem votei e acreditei nos últimos
anos e que poderiam ter iniciado uma carreira vitoriosa de homens de crença e vida efetiva
na verdadeira Igreja, tanto me decepcionaram que na política tenho preferido de uns anos
para cá anular o meu voto.
Os protestantes de agora, esses que são das denominações mais modernas e que jogam
sempre no ataque e não aqueles antigos das igrejas de retranca e acomodadas do passado,
pois que esses bíblias da reforma de antigamente mais se parecem aos nossos católicos
frouxos, pois que são também, como nós, jogadores de times que jogam e perdem de muito,
levando olé do inimigo pelo mundo afora. Consolo, o único que me resta é que ainda temos
gente que resiste, como esses irmãos que estão em torno do par jovem e sem educação.
Bom reparar que nos últimos tempos este consolo tem até crescido em mim, pois tenho
notado que em nossas cores têm aparecido, além de nós, os mais velhos, também jovens
bons de bola da fé verdadeira para jogar. Surpresa boa demais é ver na televisão uns
programas em dois ou três canais que falam essa nossa língua. Refletindo melhor e
deixando um pouco de lado a raiva, reparo que não é pouco o meu consolo. Apesar de
padres como esse que, azarados, tivemos que engolir há muito sinal de que as colunas da
igreja verdadeira ressurgirão fortes e que teremos de novo conosco o poder religioso e
político, que jamais podíamos ter perdido, reunificados na cátedra de Roma.
MULHER
17
�Mais uma missa que não me apresenta novidades no seu começo. Eis aí mais uma igreja
que só tem homens na procissão de entrada. Nunca fui capaz de entender este mistério. A
coisa mais difícil de se ver é uma mulher participando da equipe de auxiliares que entram
com o sacerdote para a celebração da missa. Alguém do sexo feminino sentada lá em cima
ao lado do presidente da celebração é algo mais difícil ainda de se ver. Olhando com
atenção para o grupo que sai da sala ao lado do sino que tocou há cerca de um minuto,
Mônica observa a pequena procissão que caminha célere rumo ao altar e repara que, como
de costume, só pessoas do gênero masculino a compõem.
Conquistamos uma larga fatia do mercado de trabalho, temos já em muitos lares a
participação dos nossos maridos na condução dos afazeres domésticos e da educação dos
filhos, acessamos já quase quanto os homens os bancos escolares, sendo que em alguns
cursos de terceiro grau, antes praticamente de uso exclusivo masculino, hoje chegamos a
ser a metade dentre os alunos, temos os mesmos direitos e deveres dos homens perante às
leis que nos regem, muitas de nós têm cargos executivos nos estados e municípios de todo o
país só nos faltando, e o tempo dessa conquista virá breve, disso eu tenho certeza, a
assunção de uma mulher ao cargo maior de presidente da república. É lastimável que só
não tenhamos conseguido avançar na reconquista desse espaço. O de também conduzir e
liderar o povo de Deus que já foi nosso um dia na Igreja primitiva.
Mônica dirige o olhar primeiro para os bancos da frente e logo após, também para os lados
e percebe serem elas, as mulheres, a maioria no templo nessa manhã de domingo. É
paradoxal isto que acontece, ela segue a reflexão, apesar de sermos ampla maioria em quase
todas as celebrações e eventos religiosos que acontecem ao redor do mundo, acho até que
somente não temos a maior presença feminina, é claro, nos mosteiros masculinos e nesses
grupos radicais de direita presentes na Igreja, praticamente só nesses lugares não vamos
encontrar mais mulheres do que homens celebrando a Eucaristia.
Lá na Amazônia, naqueles três meses de férias que tanto bem me fizeram, tempo em que
pude trabalhar como voluntária junto às comunidades espalhadas pela floresta adentro,
muitas delas sem ver um padre há meses e sendo lideradas com toda a competência e
carinho por mulheres religiosas e leigas. Todas aquelas que pude visitar eram comunidades
vivas, vibrantes, com gente comprometida no seguimento de Jesus e que em nada ficam a
dever àquelas outras das zonas mais urbanas que são dirigidas pelos padres. Não estarei
sendo feminista e puxando a brasa para o meu fogareiro, ao pensar que envoltas em mãos
femininas essas comunidades não se encontram mais bem atendidas do que se estivessem
cuidadas pelos homens? Temos mais sensibilidade, somos mais atentas às necessidades dos
pequenos e excluídos e além dessas duas que listei, identifico em nós, e aqui está uma
prova cabal dela, essa outra vantagem competitiva que possuímos em relação aos homens:
somos em maior número na Igreja.
Mônica sorri agora ao se recordar de Irmã Lourdes, freira que acompanhava e apoiava
tantas comunidades dispostas num raio de mais de duzentos quilômetros, lugares sem
estradas que fossem dignas de serem chamadas por este nome. Em uma dessas viagens,
dizia para ela, e recordar-se disso a fazia rir, que além de tudo o mais, nós, as mulheres,
somos bem mais fortes, inteligentes, espertas e competentes que os homens. Duvido, ela me
dizia, enquanto dirigia saltando com o jipe pelas quantidades de buracos, ao mesmo tempo
18
�em que dava as suas sonoras gargalhadas, que haja um padre na diocese que agüente o
tranco que eu e as outras irmãzinhas suportamos neste mundão do Deus dará. Quando eles,
depois de muita insistência nossa, viajam para cá nos acompanhando a estas capelas por
nós assistidas, só fazem reclamar. Falam dos caminhos ruins, do termos que andar com eles
longas distâncias a pé e a cavalo, das travessias, até com a água nos chegando às coxas de
igarapés, dos piuns que são esses mosquitinhos da bunda branca que você não conhecia e
que a eles foi apresentada da pior forma possível, ao se descobrir alérgica às suas dolorosas
picadas e relembrando isto, lhe vinha mais uma sonora gargalhada, das muriçocas e outros
muitos mosquitos diurnos e noturnos, dos carrapatos, do ter que dormir em redes. Sabe que
eles são uns moleirões?
Agora, como se tal coisa ainda fosse possível, Irmã Lourdes ria ainda mais alto, ao mesmo
tempo em que com a sua habilidade ao volante, fugia do atoleiro que convidava o jipe para
uma parada de descanso naquela baixada em meio à floresta que parecia não levar a lugar
nenhum. Só tem uma coisa que não os vi alguma vez reclamarem dela. Advinha qual é?
Sem nem dar um segundo para que eu tentasse uma resposta, ela continuava sua fala
respondendo para mim que era da comida. Nesse fim de mundo é Jesus Cristo no céu e o
padre aqui embaixo na terra. Como eles são muito raros e lá vinha nova gargalhada, são
tratados por estas bandas a pão de ló e rosca da rainha. Ah, minha querida, por aqui, quando
chega um sacerdote, mata-se o novilho mais cevado, o leitão mais gordo e aqueles que são
mais pobres na comunidade não vão deixar de sacrificar a melhor galinha do galinheiro,
aquela que era guardada para curar o resguardo do próximo parto da dona da casa. Padre,
são eles quem afirmam, é tão difícil que deve ser tratado como se anjo fosse.
No relembrar da viagem Mônica não deixa de considerar que o povo tem total razão ao
chamar de anjos os sacerdotes. Não são os anjos os portadores da mensagem de Deus e não
é nada mais nada menos do que esta boa nova o que eles levam aos fiéis? E num gesto de
assentimento que faz com a cabeça ela vê que ali se encontrava uma prova de que o povo
de Deus na sua simplicidade tem sabedoria. O único senão que faço é porque não vi, a não
ser em umas duas ou três saudáveis exceções, famílias que dessem às freiras o mesmo
tratamento que era por eles reservado aos padres.
Tanto quanto os clérigos, Mônica fala para si mesma, também as religiosas são anjos de
Deus e como tais merecem ser tratadas. Acostumados a associar à figura masculina o
exercício do papel de líderes nas comunidades, por eles estarem investidos do poder que
lhes é concedido pelo Sacramento da Ordem como sacerdotes ministeriais, os padres
passaram a ter nas comunidades católicas um tratamento que chega até, quando
psicologicamente não se encontram saudáveis, a gerar um certo afastamento deles do
convívio com o povo, por passarem a se considerar posicionados acima deles, esquecendose de que uma das maiores características sempre explicitadas por Jesus em suas palavras,
atitudes e atos era a de ser um servidor e estar sempre ao lado dos simples e excluídos. Não
se lembrando que o seu ministério e isto até etimologicamente, ele se resume na palavra
serviço, esses imaturos sacerdotes acabam por se fazerem servidos sempre pelo povo ao
qual deveriam servir.
Nós, as mulheres, conseguimos nos achegar mais, colocamo-nos entre eles, somos aceitas
como alguém mais que vem para trabalharmos juntos, homens e mulheres bem vindos no
19
�mutirão da vida. Eles têm mais dificuldades em serem empáticos. Até porque lhes é exigida
uma postura multissecular de líderes, o que faz com que sintam uma certa resistência em se
juntar ao grupo, sendo-lhes mesmo exigida por parte do povo uma certa distância crítica
para que possam melhor deliberar sobre os rumos a serem tomados comunitariamente,
direções essas que teriam que ser definidas em grupo por todos, leigos, religiosos e
sacerdotes e não somente pelos padres que lideram as comunidades. Coitados, nesse
aspecto nem eu nem ninguém lhes pode imputar culpa, pelo menos não são culpados os
padres de hoje, pois que recebem uma herança. Muitos dentre eles têm dificuldades em
transformar as untuosas e cheias de salamaleques formas de tratamento da Igreja triunfante
da cristandade e que vêm trazidas carregadas de geração em geração de sacerdotes pelos
séculos afora, em estruturas de serviço e de participação solidária na comunidade. Nesse
modelo de igreja, no qual o poder se concentra na hierarquia e a todo custo deve nela ser
preservado, em detrimento do poder sacerdotal distribuído também em partes justas pelos
leigos já que nós todos também somos sacerdotes como batizados. Sim, porque o Batismo
nos torna todos e todas em sacerdotes. Eles, os ministeriais e nós, os leigos, sacerdotes
régios.
Intrigante, enquanto reflito sobre a questão da mulher na Igreja o pensamento, voando alto,
levou para a mesma nuvem o papel da mulher e também a questão do povo de Deus perante
a hierarquia. Povo e mulheres somos, como nos tempos bíblicos, os anawin de hoje em dia,
os pobres de Javé, esses a quem o Senhor mais revela as maravilhas dos seus mistérios.
Esta dimensão do povo de Deus, tradicionalmente pobre no sentido maior da tradição
bíblica que a palavra comporta, pois junta dentro dela, além dos excluídos tradicionais,
também todos aqueles que se põem vazios, para que dentro dos seus corações haja espaços
abertos e livres, prontos para receber o amor infinito de Deus. Trata-se duma dimensão que
devemos resgatar, de que somos pelo nosso batismo e não somente nós, as mulheres, mas
também os homens, além de sacerdotes, também reis e profetas.
Eu, Mônica. Eu, mulher. Eu, rainha. Mônica I, não é que o título nobre até que fica bem em
mim? E ela sorri sozinha do pensamento louco, sentada ao lado do marido naquele banco
apertado, ao mesmo tempo em que tem que jogar o corpo mais para diante, por não haver
espaço disponível para que os seis moradores daquele assento pudessem ter todos eles as
costas apoiadas em seu encosto. A posição desconfortável mais avançada em relação aos
vizinhos ajuda-a para que seu sorriso não seja percebido por Robson. Com dificuldade gira
um pouco o corpo e olha-o de soslaio, este não é o trono que mereço, pensa sorrindo, ao
mesmo tempo em que se dá conta de que, absorto na celebração, Robson está muito longe
para notar o que se passava ao lado com a sua rainha, que bom, pois tudo que Mônica
queria era não ter que lhe explicar as reinações que lhe vinham, ali naquela primeira missa
que na nova comunidade ela participava.
O espocar do som forte da batida da bateria, marcando o ritmo do canto, conclamando o
povo para que aclamasse a proclamação do Evangelho, remete-a, enquanto aliviada se
levanta, à infância e às celebrações do mês de outubro em sua cidade natal. Protegidas
pelos olhos cerrados, passam dentro das suas retinas o desfile dos congados. À frente vem a
bandeira de Nossa Senhora do Rosário e logo atrás dela, coroados e com a sua melhor
roupa vão passar a rainha e o rei do congado. Aí estão cristãos que nunca perderam a sua
dignidade apesar de que são todos excluídos em dobro, primeiro por serem negros e
20
�também porque todos eles são gente bem pobre. Lá à moda deles, é bem provável que de
uma forma inconsciente, desfilam e resgatam as suas realezas originais, legítimas do
batismo enquanto dançam batendo forte os pés no chão pelos calçamentos tão irregulares,
construídos pelos seus antepassados, de pés de moleque das ruas da minha meninice. De pé,
Mônica I, a rainha, faz força para se manter atenta à leitura do Evangelho.
CEGUEIRA
Escondidos por detrás das grossas lentes dos óculos retangulares muito mais apropriados
para enfeitarem rostos jovens, os belos olhos de uma cor verde puxada para o cinza de
Nadir estão fixados firmes sobre o jovem casal que sussurra ao lado. Esforça-se por parecer
duro e descontente aquele velho e vincado rosto de avó acostumado desde sempre à ternura,
aumentada ainda mais de uns anos para cá pela chegada dos dois netos. O sorriso
encabulado que o seu empinado olhar recebe de volta fez com que duvidasse de ter
alcançado êxito em demonstrar irritação e desconforto. Esse olhar desconcertado de retorno
do jovem que pelo brilho da aliança no anelar esquerdo só podia ter se casado há bem
pouco tempo, a fez recordar aquele domingo à tarde, faz três anos, quando sozinha com
Rodolfo em casa, fazendo a regulamentar sesta dos tempos desde a aposentadoria sua e a do
marido, chega esbaforido, como se lhe faltasse chão e ar, o filho único Alexandre.
Olhar de mãe não se engana e vi no seu rosto, recorda, a desorientação e tristezas imensas.
Os olhos daquele homem grande que saíra de dentro de mim tão pequeno e indefeso,
tornaram aos meus naquele instante de forma toda frágil e desesperançada. Senta aqui
conosco na cama, meu filho. Foi o que pude lhe dizer e era essa a primeira e mais
necessária coisa que ele ansiava. Desabou em nosso meio aquele homenzarrão de quase
dois metros de altura. Não sentou. De bruços, rosto escondido entre os dois travesseiros e
os braços recolhidos sobre o peito, ele veio.
Rodolfo e eu delicadamente o abraçamos sentindo pelo balançar do seu corpo o choro
sentido e silencioso que liberara. Acabou. Dessa vez consumou-se a separação. Foi essa a
certeza que tive tendo de novo sob meus braços, o filho que tantas e tantas vezes acalentara
e fizera dormir afastado dos medos e demônios trazidos pela descoberta do mundo, desde
aquele momento de tanta felicidade para mim, em que Alex saiu do aconchego das minhas
entranhas. As primeiras lágrimas brotam e permanecem penduradas nos cantos dos meus
olhos que ali na cama estavam desprotegidos da armação e das robustas lentes da minha
muleta visual. O que poderia lhe dizer? Que não queria que sofresse? Que, ah, minha
loucura, teria preferido que dentro de mim, sempre protegido de todos os males e
dificuldades do mundo, Alex tivesse permanecido?
21
�A cantiga de ninar salta da boca sem que eu tivesse lhe dado o comando para sua saída.
Expressão de espanto e de muita reprovação Rodolfo deveria ter na cara fosse eu capaz de
bem enxergá-lo, ele, da outra banda da cama, levanta o rosto e sinto que quer que eu cesse
com a absurda canção, no seu modo de ver, totalmente descabida para aquele momento.
Nessas horas muito me ajuda a cegueira e só precisei fingir que não havia sentido a sua
muda ordem para que calasse a boca. Continuei, como tantas e tantas noites fizera. “Vem
pegar Alex que tem medo de careta...”.
Estes jovens, além de nos apertarem invadindo o nosso banco, vêm ainda trazer-me essas
tão tristes recordações. Não que tenha muito desgosto de rememorar esses fatos. Eles fazem
parte da nossa história e nunca poderei, nem que pudesse ou mesmo numa hora de
insanidade eu quisesse, esquecê-los. Busco a mão do meu marido e por um instante consigo
prestar atenção à leitura da missa, perdendo-me logo em seguida, de novo, nas brumas das
lembranças daquele final de semana. A mão do meu homem, bem mais quente e forte do
que a minha, traz segurança e a aperto firme prendendo-a nesses momentos em que a
tristeza se alastra dentro de mim.
O tempo passou vagaroso até que se acalmasse. Meu repertório de cantigas de ninar foi
repassado umas três vezes. Solfejei, relembrei melodias das quais nem me recordo mais das
letras cantando a “boca chiusa”, bem baixinho, no seu ouvido. Entendi a virada que deu no
leito olhando agora para um ponto fixo no teto, como a senha para que eu desse por
encerrado aquele íntimo recital. Permanecemos assim, os três naquela cama em silêncio de
se poder ouvir o deslocamento do ar causado pelas asas dos anjos que, do alto do céu,
tinham sido enviados pelo Divino Espírito Santo para consolar meu filho e que ali no
quarto nos rodeavam voando e muito nos abençoando.
Começou a falar então segurando forte a nossa mão e não parava mais. Palavras que
vinham aos borbotões sem nos proporcionar espaço que fosse, no pouquíssimo intervalo
que havia entre elas, para que pudéssemos também inserir as nossas perguntas, pois que
precisávamos entender melhor e mais profundamente tudo que tinha acontecido e que o
coração de mãe que em mim bate, gritava que não haveria volta. Contou-nos que não
houve, como das inúmeras vezes passadas, nenhuma discussão ou briga e era isto que fazia
com que tivesse a convicção que dentro de mim também já existia, de que era o final da
linha. Acabou por tudo ter se esvaído. Terminou, era o que nos dizia, não foi de uma ferida
grande por onde, aos jatos, tivesse saído todo o sangue que mantinha vivo o amor. Acabou
ferido que fora de machucado de não se dar atenção, coisa pequena que deixava rastros
pouco perceptíveis no caminho do casal aos quais não se deram os devidos e necessários
cuidados. Pingos que secaram da mesma forma como também havia se tornado seco o amor
que uniu um dia o meu filho à sua mulher.
Rodolfo, tão calado estava que até achei que tivesse dormido, resolve participar da
conversa consolando o nosso filho e, naturalmente, entra torto, de uma forma assim meio
enviesada na conversa que era mais um monólogo, pois que até aquela hora só Alex se
pronunciava. Tentou consolá-lo então dizendo que aquilo tudo passava, que não dava nem
uma semana para que os dois estivessem de novo felizes nos braços um do outro. Foram
essas frases como que a esperada senha para que o choro dele voltasse e entre soluços lhe
respondeu que esquecesse. Que aquele não tinha sido o fim de um capítulo, mas do
22
�romance todo, feito final definitivo e fatal como a morte é e que não havia mais nada que
fosse capaz de uni-los de novo, ou que os fizesse imaginar pelo menos em sonho que
haveria alguma escondida via que poderia ser trilhada na esperança de que ainda fosse
possível um fio que fosse de possibilidade de se refazer o casamento.
Não que meu marido tenha entrado de todo errado na conversa difícil. O problema com ele
não era o conteúdo, mas a forma como ele se portava falando nesse tipo de conversa mais
delicada. Dizia e as suas palavras fizeram com que me viesse ao coração uma tristeza
mortal porque me lembrei de Deus e do juramento que os vi fazer diante do sacerdote.
Como garantir que não tinha mais nada que unisse o casal? O sacramento podia dizer que
tivera fim sem ao menos conversar com um padre, aconselhar-se? Ficariam os dois, meu
filho e sua mulher, em pecado para sempre? Estava Alex, meu amado filhote assinando ali
a sua eterna condenação? E Drica e Tomás não contavam? Não existiam? Não eram
levados em consideração em meio às ruidosas e crescentes crises no relacionamento dos
seus pais? Duas lindas e inocentes crianças, Drica àquela época com oito e Tomás com seis
anos, que eram os dois quem mais iriam sofrer com o término do matrimônio e que nas
palavras do pai deles ali na nossa cama não foram consideradas.
Meu querido filho, que raiva imensa eu tive de você ali deitada. Vontade de soltar a minha
mão da sua. De supetão. De colocá-lo, ríspida, para fora do leito, de dizer-lhe palavras bem
duras, fazendo com que você, Alex, sentisse quão errada e dura tinha sido a sua resposta a
Rodolfo. Mas me contive. Trinquei os dentes e mantive arregalados os olhos até que eles, já
normalmente tão incertos, parecessem estar cobertos por camada de milhares de grãos de
finíssima areia. Sem o corrimão que me proporcionava o par de óculos, mantê-los firmes
fixos apontando para algo ou mantê-los cerrados, exceto pelo desconforto que me causei
com os olhos abertos além do tempo em que necessitavam serem molhados do cuspe da
piscada, causava bem pouca diferença, pois que me faltam as definições dos contornos das
coisas para as quais olho.
Proceder desse jeito me acalmou e pude pouco a pouco me colocar lá dentro daquela raiva
dele. Era aquela uma ira que nem podia se comparar à minha de tão grande que era e que
crescera devagar, pois fora curtida, não por um momento, mas durante um longo tempo e
que meu filho sentia ali no nosso meio. Raiva que não chegava só, que vinha acompanhada
de um sentimento de vazio e de incompetência por ele, junto com a esposa, não terem dado
conta de segurar a barra do casamento.
Barra do matrimônio? Não sei porque usei esta expressão. Hoje já penso diferente e como o
sofrimento causado em nós pela separação e principalmente por aquela questão do pecado,
de se dar cabo a algo que fora selado diante do altar de Deus, um exato como esse aqui
diante de mim agora, na frente do qual Alex e a sua mulher tinham jurado que iria durar
para sempre o seu amor. É verdade, me espanto com o tanto que mudei e como vejo todo o
acontecido hoje de uma nova maneira, com novas lentes. Por isto estou mais leve, mais
integrada comigo mesma e bem mais perto de Deus. A dor causada em nós todos pela
separação na família me amadureceu e me fez compreender que essas coisas não são nem
um pouco simples como desde jovem eu fora acostumada a imaginar. Não dá para aprender
a nadar sem cair na água e foi preciso que o problema caísse pesado, como se fora um
23
�meteoro, de uma vez, sobre nossas cabeças, para que eu tomasse consciência do tamanho
da dor e do sofrimento que a separação provoca.
Casamento, hoje eu sei, não pode ser uma barra a ser suportada constantemente nos fazendo
infelizes. Como me fez bem ouvir daquele padre velhinho, do qual nunca soube o nome e
que me atendeu em confissão durante o encontro da Renovação Carismática que fomos
com nosso grupo de oração em Aparecida do Norte! Lamentava com ele, aos prantos, o
término fazia um ano da união do meu filho e da minha tristeza por considerá-lo condenado
por Deus pelo fato de ter traído o sacramento do matrimônio. Ele me perguntou então,
falando muito baixo e tendo que repetir a indagação, pois que da primeira vez não o havia
entendido, se Alex e a sua mulher eram felizes quando viviam juntos? Claro que não, eu de
chofre tive que lhe responder. Viviam como cão e gato brigando o tempo todo e, pior ainda,
depois por Drica eu soube, que até agressões físicas entre os dois havia naqueles tempos de
casados. Abrindo bem os braços como se quisesse me abraçar e com aquele sotaque
estrangeiro que não consigo identificar de que país seja, ele me disse sorrindo e
aumentando a voz que até sou capaz de achar que as pessoas que atrás, na fila, já deviam
estar ansiosas com a demora da minha confissão devem ter escutado, que eu não tinha com
o que me preocupar porque Deus não havia criado ninguém para ser infeliz e que se depois
de terem tentado tudo eles chegaram à conclusão de que para que fossem felizes, eles e os
seus filhos, melhor seria mesmo que se separassem e ele, como sacerdote não achava que
estivessem em pecado e que muito menos ainda já estivessem por conta disto condenados
por Deus a viver as suas eternidades lá nas tristezas dos infernos. Sorria, minha irmãzinha.
Deus não é tão mal assim como nós somos. Ele é amor e misericórdia sempre juntos. Ele
nos ama a todos muito mais do que sejamos capazes de imaginar e nenhum filho Ele quer
que seja infeliz. Nem a sua nora, aí ele completou, falando ainda mais baixo e piscando
matreiramente para mim o olho direito.
E aquele sacerdote tão feliz nas suas palavras, continuou a comprida confissão falando-me
que se eles não eram felizes, Deus também era infeliz com eles e que a separação nesses
casos era o melhor caminho. Minha filha, ele disse por fim, com tudo que você me contou,
sou capaz de apostar que até para os seus dois netos foi mais razoável que tudo houvesse
terminado. Peguei-me então balançando afirmativamente a cabeça. O padre tinha toda e
plena razão. Os meninos que eram tão assustadiços e que choravam tanto por qualquer
bobagem, agora estavam muito mais tranqüilos e até os seus comportamentos na escola e as
suas notas haviam sensivelmente melhorado e deste fato eram mais do que testemunhas os
boletins escolares. Foi aí, exato nesta hora, que tive a iluminação do Divino Espírito Santo
e com a clareza que esses meus olhos sempre tão embaçados nunca têm, pude ver o quanto
tinha sido bom para todos os personagens de nossa triste história, eu e Rodolfo também
incluídos, que tudo tivesse terminado. Casamento para ser casamento mesmo tem que ser
como o meu e o do Rodolfo que é como também espero com muito carinho que seja o desse
casal desconhecido aqui do meu lado. Tem que nos fazer felizes e nos levar em
conseqüência disto para Deus. Ao contrário de mim, que mesmo tendo eles tomado o nosso
lugar preferido aqui na capela, não fiquei nem um pouco incomodada com isto e até os
achei bem simpáticos, apesar desse jeito deles de serem muito conversadores, ao contrário
de Rodolfo, aqui do meu lado, conheço bem o meu homem, que está se remoendo todo pela
presença do casal jovem aqui no nosso lugar. Que pena, porque sem que disso tenham
culpa ou acaso pudessem pelo menos imaginar, eles estando aqui conosco, estragam a
24
�missa do meu marido. Como eu gostaria se o Espírito Santo me desse essa graça de tornar o
meu marido menos rabugento. Caso ele fosse mais tolerante nem um pouco este simpático
casal o estaria incomodando.
VISÃO
Que audácia a desses dois garotos sentando bem aqui no meio do nosso banco. Foram estas
as palavras de Rodolfo ao perceber, quando ainda faltavam uns bons metros até a chegada
ao seu banco e sem que Nadir fosse capaz ainda de lá na frente enxergar algo que não
fossem formas indefinidas. Chegando ao banco privativo, ao contrário da sua mulher e
também de Totonho e Abigail que deveriam se sentir incomodados com a presença
daqueles jovens em seu meio, ele logo se tranqüilizou pensando lá com seus botões, em
meio aos murmúrios reclamatórios de Nadir, que havia alguma coisa, com a qual ainda não
atinara, mas que até que a encontrasse iria remexer em todas as gavetas e desvãos da
memória, até achar o que fosse essa semelhança que existia entre essa moça e Bianca a
antiga esposa do seu filho Alexandre.
Diferentemente de Nadir que desde o início do namoro entre os dois tivera sérias
dificuldades com a nora, eu sempre tive uma relação muito positiva com Bianca. Gosto da
menina e sinto que, mesmo depois de tudo que entre eles aconteceu, ela também gosta de
mim. Tínhamos longas conversas, entre nós havia vários interesses comuns e nos
alegrávamos quando os descobríamos. Minha ex-nora me contara que eu lhe lembrava o
seu avô, falecido ainda quando ela era muito criancinha. Do meu lado eu lhe dizia que ela
me recordava a filha que queria ter tido e nunca tivemos, pois que somente somos pais de
Alexandre. Ela, rindo, perguntava-me como podia se parecer com alguém que não tinha
existido e eu lhe respondia indagando dela como também podia achar-me parecido com o
avô lá dela que havia falecido quando ela era ainda praticamente um bebezinho e do qual,
segundo ela mesma me contara, muito vaga lembrança tinha e nenhuma fotografia dele lhe
haviam algum dia mostrado.
Fui eu quem primeiro notou que entre os dois tinham começado os problemas. Apesar de
que para Nadir eu não pareça, sou muito observador e tenho certeza de que antes que ela ao
menos sonhasse que na casa que o nosso filho construía existiam umas pouco perceptíveis
trincas, eu já as havia reparado. Fiquei calado então. Julguei que não era ainda o momento
de comentar com a minha mulher o que eu via. O que no meu modo de entender as coisas
eu devia fazer foi exatamente o que eu fiz: orei por eles. Rezei muito para que não
deixassem que aquelas rusgas e dificuldades iniciais tomassem vulto. Afinal, além deles
dois, havia também as duas crianças e eu notava que no meio daquele turbilhão que pouco a
pouco foi se formando naquele lar, os meus netos eram os que se encontravam mais
vulneráveis e desprotegidos.
Crise é inerente à vida de qualquer casal que queira viver um relacionamento sério e
responsável. Não há escapatória, todos os casais têm crises. Até hoje, e lá se vão mais de
25
�quarenta anos de vida a dois, temos os nossos arranca-rabos. Dos principais sou capaz de
me recordar até no nível dos detalhes. Quem diz que tem uma vida de casados há algum
tempo e que não passou ou vive uma crise, ou se engana e não tem vida a dois ou está
alienado e não é capaz de perceber as dificuldades no seu relacionamento.
Modéstia às favas. Reparo muito bem nas pessoas próximas. Sinto-me uma exceção nessa
questão de ser homem e ser observador. Noto que geralmente são as mulheres a perceberem
os sinais iniciais de que a convivência não vai bem e começa a balançar. Elas reparam isto e
vêm logo pra cima da gente com uma história de repensar e avaliar a relação. Meu Deus,
como eu me estressava quando nos primeiros anos de casados lá me vinha Nadir com este
tipo de papo! Naquele tempo eu ficava fulo de raiva e considerava como conversa mole,
autêntico papo furado, uma tediosa e perfeita lengalenga. Hoje estou, quem diria,
transformado. Têm horas que nem me reconheço e dou, ao contrário daquelas épocas,
muito valor pelas ocasiões em que ela me pegava pelo pé, me fazia parar e olhar para trás,
revendo a caminhada por nós dois feita e verificando nela o que não mais deveríamos
repetir. Nadir tanto fez que acabou por me convencer mesmo de que aquilo era conversa
séria e não somente papo furado. Isto eu ponho na conta de que foi porque ela é muito
gente fina, uma autêntica pedra noventa, e não ficava só batendo na tecla do negativo
comigo. Com o jeitinho que lhe é peculiar e todo afetuoso, ela sabia como ninguém
valorizar o que tinha acontecido de bom no nosso casamento. Que ótimo que foi ela que
Deus me deu porque têm mulheres que são terríveis. Hienas que só vêem as misérias e as
merdas que a gente faz. São totalmente cegas para as coisas boas que, por mais que a crise
esteja grande, teimam em acontecer nas nossas vidas.
É isto, a gente acaba por se tornar cego e insensível, incapaz de perceber a graça de Deus
planando à nossa volta. Pensando bem, fui muito injusto com as mulheres e reconsidero o
que acabo de refletir. Não são só mulheres que são danadas só enxergando o que há de
ruim. Têm muitos companheiros homens que também são nós cegos. Uns até são daqueles
agarrados parecendo nós molhados que viram uma bucha e que nem cristão de muita reza e
paz com Deus consegue desatar. A esses tais falta total competência para sacar algo
positivo na mulher ou na vida de casa. Incapacitados de pai, mãe e vizinhança para o
mínimo reconhecimento ou elogio quando algo de bom lhes faz a companheira.
Uma pena que nas nossas compridas conversas em nenhum momento Bianca tocou no tema
do a quantas andava o seu casamento com meu filho. Ao mesmo tempo me vem a dúvida. E
se ela tivesse abordado comigo esse assunto tão delicado? Teria tido eu condições de
compreendê-los e ajudá-los? Ou seria mais um a chorar e a lamentar com ela em cima das
dificuldades que o casal enfrentava? Isto até hoje, tanto tempo já decorrido, me martela a
consciência, pois mesmo não tendo nunca me falado sobre a crise do seu casamento, eu
muito bem a percebia e nesse caso poderia ter sido eu quem deveria ter desentocado a lebre
na tentativa, por mínima chance que existisse, de salvar aquele casamento de pessoas que
são por mim tão queridas.
Lembro aquele domingo fatídico em que tudo terminou. Alex chegou, estávamos deitados
após o almoço, abriu a porta de casa com a sua chave e deitou-se em nosso meio. Chorou
feito criança. Chorou muito mesmo. Eu em silêncio desabei todo das minhas vergonhas e
chorei também com ele. Em mim havia a esperança de que aquela era uma crise a mais e
26
�que, como as outras já acontecidas, também esta passaria e eles tornariam às boas. Eu
estava enganado e Alex tinha razão quando com muita ênfase ele nos confirmou que tudo
terminara e que não existia a menor chance de que ocorresse um reatamento entre eles dois.
Demorei a entender aquilo que para mim soava paradoxal. Quando há briga séria tem volta,
ao contrário do que ocorrera daquela vez em que sem ter tido briga alguma tudo tinha, no
modo de Alex perceber as coisas, terminado. Passei a reparar a partir daí que as crises
costumam ser bem mais sérias e sem retorno quando o casal se acomoda e nem briga mais
nem há luta pela manutenção e convencimento do outro dos seus diferentes pontos de vista
diferentes. Aí reside o grande perigo, descobri. Quem vê de fora não costuma enxergar o
que se passa nas entrelinhas do casal. Por fora bela viola, mas por dentro pão bolorento.
Parar de brigar é como ter cessado de gerenciar a crise e aí ela terá toda condição e força
para crescer e tomar conta, como trepadeira que a tudo envolve e sufoca, provocando o fim
por inanição do amor do casal. Nunca mais tive dos tão gostosos e longos papos com
Bianca e como sinto falta deles.
Passado tanto tempo essas feridas da separação já não sangram mais, mas há uma que
permanece aberta e ainda me faz sofrer muito. É a maneira como a nossa Igreja trata
Alexandre. Mais de um padre e até agentes de pastoral com muita liderança nas
comunidades cristãs já vieram até a mim e a Nadir para tentar nos convencer do quão
grande era o nosso engano nessa matéria ao considerar ser o nosso filho também um
excluído da Igreja por estar divorciado e, porque nós não fomos feitos para viver sozinhos,
ele tem hoje uma nova companheira. Diziam-nos ser tudo bobagem e que acharmos que o
nosso filho era tratado de maneira diferente na comunidade por ser descasado, não passava
de cisma nossa. Como ele não é discriminado se nem mesmo a comunhão, o remédio que
Jesus nos deixou para quando estamos fracos e doentes, ele não pode mais tomar? Será o
corpo de Cristo apenas fortificante para os sãos? Nunca! Ah, meu Deus, como eu tenho a
certeza de que se fosse Jesus de Nazaré quem estivesse ali no altar no lugar de Padre
Rogério, Ele olharia nos olhos do meu filho, nos de Bianca, bem como também nos olhos
de toda a multidão incontável dos que vivem este mesmo tipo de exclusão da nossa mãe
Igreja, chamando-os com todo o carinho do mundo e com um envolvente e lindo sorriso
nos lábios, para se aproximarem logo e comerem com Ele da sua Ceia. E ao convocá-los ao
altar, com a autoridade de quem do templo do Pai expulsou os vendedores, Jesus não
deixaria que a turma da liturgia lesse no microfone da capela esse texto pronto tão
excludente que a Adalgisa recita agora dizendo que só poderão se aproximar da mesa
Eucarística os que estão preparados e tiveram confissão recente com o sacerdote. Como me
incomoda ver a nossa Igreja tratar o Corpo e o Sangue de Cristo como prêmio para os fortes
somente.
Os cabelos, isto mesmo, agora me lembrei, são eles, os cabelos dela, que me fizeram
recordá-la. Sorrindo, Rodolfo encontra a sutil semelhança que observara entre Mônica e
Bianca. Olha agora com olhos de enxergar para o altar e assusta-se pelo longo tempo em
que estivera perdido nos seus devaneios, trazidos que foram pelo simpático casal jovem ao
lado.
27
�ESPINHO
A danada da coluna entrevada doera até aquele último momento em que mesmo cansado
ainda se manteve acordado. Tão certo como dois mais dois são quatro de que não parara de
incomodar mesmo no breve tempo de sono, ter acordado mais cansado ainda do que antes
de dormir era prova disto. Lembra-se de ter ouvido, antes de apagar, os galos ensaiando a
cantoria matinal. Em meio às pontadas que sente agora, quando à frente da capela repassa a
série de pequenos papéis quadrados, de cor amarela, onde anotara noite adentro os variados,
tão necessários e urgentes lembretes daquele domingo para a comunidade.
Proibido que fora, desde os tempos de padre Justino, de realizar a leitura deles ao final da
missa, pois que, além de serem considerados excessivos pelo padre e se confundirem com
os avisos naturais a toda comunidade, eles eram também motivo de chacota e de risos por
parte da grande maioria dos fiéis e deste importante detalhe Nelson não sabia, que os viam
como enfadonhos e repetitivos, ele o fazia agora naquele vácuo de tempo havido entre o
final da recitação do terço e do toque do sino que todo domingo anunciava a procissão de
entrada. Nos dias em que a liderança da reza do terço cabia à Dona Maria, ele não gostava,
pois que ela rezava as Ave Marias de forma mais compassada, como era também a sua voz,
o que diminuía sensivelmente o tempo livre entre o final da reza e o início da celebração, ao
contrário das outras senhoras que recitavam as palavras repetindo-as como se estivessem a
ponto de ter um desmaio pela perda do fôlego, como se fossem um daqueles discos antigos
de vinil em 33 rotações posto na vitrola para ser tocado em velocidade de 78 voltas por
minuto, deixando assim ampliado e isto era excelente, o período para as religiosas
admoestações dominicais.
Ao chegar à capela dera muitas graças a Deus por não ter enxergado no grupo que se
preparava para a costumeira recitação do terço de antes da missa a figura firme e imponente
de Dona Maria. Significa que terei mais tempo. Deus seja louvado e que mantenha a Dona
Maria atrasada, pois que hoje necessito de um tempo maior para os meus recadinhos. Nosso
povo continua relapso, usando a fé da mesma maneira como a que usa a carteirinha do
clube social. Não vê que a religião é coisa séria e que Deus, lá do alto, tudo vê e em seu
grande livro anota todas as desobediências e pecados desse povo que me dá a impressão de
que vive para pecar, pulando fora toda hora dos preceitos da lei do Pai. Bem que esses
ventiladores barulhentos e horríveis que já deveriam ter sido trocados há muito tempo,
poderiam simbolizar os pecados dessa gente que eles tentam e não conseguem refrescar
aliviando-os desse calor já insuportável a esta hora ainda novata da manhã. É isto, cada
rodada de hélice é uma falta por eles cometida.
Passa os olhos pelas laterais da capela e vê que de cada lado são cinco os ventiladores. Ri
então, Nelson, enquanto já ansioso escuta a interminável ladainha de Nossa Senhora
recitada sempre depois do terço. Dez ventiladores. Um para cada mandamento. Aquele ali
que até treme de tanto rodar só pode ser o do sexto. Domingo especial aquele em que de
tanto girar, as hélices se soltaram e foi por graça de Deus que ninguém se feriu com
pedaços das suas pás que voaram para tudo quanto foi lado, daqui posso ver a marca
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�deixada pelo vôo cego de um destroço dele arrancando o reboco do teto. Dessa vez Deus
ainda foi paciente. Quem sabe porque viu aqui no templo que ainda há uns poucos fiéis,
mixaria de quase nenhum, que teimam em seguir a lei de Deus e por isto valerá a pena
investir nem que seja mais um pouco para que se convertam. E ainda há gente sonsa que
acha que as minhas prédicas de antes das celebrações não são importantes.
O que padre Justino fez comigo não se faz com nem com um mouro, que dirá com um
cristão que nem eu. Caso pelo menos eu fosse um desses bundas moles daqui da Igreja,
ainda daria para se tentar uma ponta que seja de justificativa para o seu ato. Mas não, logo
comigo, o seu braço direito e em muitas horas delicadas e difíceis, o esquerdo também, foi
que ele veio dar essa de inimigo. Chegou pra me falar todo cheio de salamaleques e não me
toques. Tantas foram as frescuras que as minhas ânsias pouco a pouco subiram até que não
agüentei mais e tive de dizer para ele que desembuchasse logo o que queria de mim. Não
usando exatamente essas palavras, é obvio, pois que sei e conheço muito bem qual seja o
meu lugar e o que aprendi primeiro da religião foi a obediência ao padre. Isto quando ainda
eu era pequeno igual aquele pirralho que por não ser cuidado como devia pela sua mãe,
pula de um banco para o outro.
O que o sacerdote com tantas voltas queria me comunicar era que eu não mais deveria dar
as minhas orientações de conduta ao povo juntamente com os comunicados comunitários e
que se o quisesse poderia fazê-lo antes das missas. Abaixei a cabeça e evitei ao máximo
que ele percebesse a minha raiva e o constrangimento que as suas palavras me traziam. Eu
é que sou homem de muita fé, porque se fosse um desses aí, dos mais fracos, teria largado
tudo e hoje seria quem sabe um desses ateus que vivem combatendo o Papa. Desacreditar
de Deus acho que não conseguiria. Seria impossível viver sem o conforto da religião e acho
que fosse eu mais franzino da fé, teria me bandeado de armas e bagagens era para os lados
dos inimigos e fundado uma igreja de crentes só para a minha devoção e para o bom uso
dos fortes como eu.
As derradeiras partes da oração Mariana terminavam e Nelson dava uma última passada
nos cinco papeizinhos amarelos previstos para o dia. Muda a ordem deles e deixa em último
lugar aquele que falava da situação da desobediência dos cristãos às ordens da Igreja e que
ele considerava como principal para esse dia e que por todos os ouvintes deveria ser
guardado na memória durante a semana. Já diante do ambão, ele acerta a altura do
microfone a espera do amém derradeiro das senhoras piedosas. Avalia o quão mais quente
estará o templo lá pelos meados da celebração, pelo número já muito alto dos fiéis
presentes. Com a chegada do grupo dos dorminhocos retardatários, que era como ele
chamava aquelas pessoas useiras e vezeiras em se atrasarem para o culto, não haverá lugar
nem para a circulação dos insetos, ele pensa enquanto seus olhos detalhistas checam aquele
casal sorridente, muito juntinho um do outro, que conversa lá no meio da igreja bem
naquele lugar que é cativo da turma mais idosa da Renovação Carismática. Ou são dois
inocentes desavisados, ou fazem parte como eles do movimento dos velhinhos que estão à
sua volta e estão ali sentados porque foram convidados por eles, Nelson sentencia.
Apesar de ser também ministro da eucaristia e de geralmente, posicionar-se também ao lado
do celebrante no altar, neste domingo Nelson não está escalado para a celebração e a sua
única missão na capela serão as cinco exortações iniciais ao povo de Deus. Admoestações
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�essas que, como se sabe, já se tornaram folclóricas e são muito mais motivos de chistes e de
piadas do que de assimilação e cumprimento pelos ouvintes. Após lê-las se encaminhará,
como de costume, para os fundos da capela, posicionando-se no tablado onde deveria, caso
existisse, estar o coro. Dali, daquela posição mais alta era onde, quando não estava no altar,
melhor ele se sentia dentro da capela.
Daqui da retaguarda sou igualzinho ao publicano da parábola e posso exercitar a minha
humildade reconhecendo-me como pecador que merece sempre o perdão de Deus como
bem aprendi no Movimento desde a juventude. Nem sei por que me veio à lembrança o
padre Justino e o que ele me fez não deixando mais que eu, junto aos avisos finais
comunitários, também passasse os meus recadinhos. Naquela época cheguei a pensar que
ele conhecia o meu pecado, tendo tido acesso de alguma maneira ao meu passado. Na
minha idéia, aquela não era mais do que uma forma sutil dele me afastar da liderança da
comunidade, ou mesmo dela como um todo, ou seja, mais uma vez eu era discriminado pela
minha mãe a Igreja. Nessas horas em que somos cortados e não nos oferecem as
explicações suficientes que justificassem aquela poda, aliado ao fato de que o meu couro e
o meu espírito já estão mais do que acostumados às pancadas e à discriminação, a
imaginação fica livre para correr sem censura fazendo todo tipo de conjecturas. Dei então
graças a Deus por nunca ter me confessado com ele. Não que tivesse desse pecado para me
confessar, pois sou forte e tenho controle sobre mim e desde muitos anos nele não caio
mais. Posso dizer com orgulho que dele estou todo limpo. Mas como confissão é sempre
também um espaço de se buscar apoio e orientação e aí cabe o que sempre faço nas minhas,
ou seja, dialogo abertamente com o sacerdote que me confessa sobre os meus desejos
proibidos e as inclinações que tenho que deixar bem fechadas e guardadas a sete chaves em
suas caixas pretas.
Senhor, por que Você me fez assim? Por que colocou dentro de mim este espinho que fere
muito mais que o silício sem dó nem piedade? Uma vez, faz tempo isso, li um artigo no
qual o seu autor supunha ter sido também este o tal espinho na carne que São Paulo dizia
sofrer. Não há como dizer que sim nem que não, mas considerando-se, como eu aqui o
faço, o tamanho do sofrimento que seu problema lhe provocava e, experimentando eu no
dia a dia da minha existência, o quanto esta situação me custa caro, posso crer que não seria
nenhuma surpresa haver sido este meu pecado semelhante ao tal espinho na carne do santo
apóstolo dos gentios.
Não me sinto nada bem quando me vêem esses pensamentos considerando a direção sexual
das pessoas como um pecado em si. Sou fruto das contingências e vicissitudes da vida, não
sou ninguém especial, algo assim como um extraterrestre, e nem sei ao certo o quanto
alguma química ou até mesmo uma combinação genética possa ter ou não contribuído para
este meu estado de ser. O que sei e afianço é que um dia me vi assim e, para mim mesmo,
concluí que ser desse jeito era uma energia muito maior do que a minha capacidade de
dominá-la ou muito menos mudá-la. Influência da família, dos pais, dos amigos, da escola?
Evidente está que tudo isto participou, de uma maneira ou de outra, na minha construção
para que essa tendência pouco a pouco fosse se imiscuindo dentro do meu jeito de ser. Sei
lidar muito bem comigo mesmo e, quando sinto que vai vir trovoada em mim e que há
riscos de que vá perder o controle, tenho lá no fundo da gaveta guardada a minha disciplina
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�e aí a coloco bem apertada na carne, como naqueles tempos em que participava mais
vivamente do Movimento, e a uso até que sinta a calma retornar novamente.
O que hoje sei, Senhor, daqui do fundo da Sua Igreja mais uma vez lhe digo, é que não há
culpados na minha história. Da mesma forma que me enxergo sem culpa, também afirmo
que ela não pode ser imputada a nenhum desses que passam agora, pelo filme da lembrança
e que de alguma maneira imprimiram alguma marca em minha vida. O que hoje sei
também, Meu Deus, é que estou limpo. Estou puro e branco como a neve que descansa nos
altos montes que na Europa um dia avistava da janela da minha cela, naquele ano em que
para lá fui enviado, ou mesmo branco como um vestido de noiva pronto para ser usado na
entrada gloriosa e triunfal na igreja para o seu grande dia. Há dez anos, comemoro neste
natal, estou casto. Não tenho ninguém, não saí nesse tempo todo com nenhum igual ou
mesmo nenhuma diferente de mim. O Senhor que tanto me conhece sabe o quanto este
esforço me pesa e me custa, mas a vitória em me preservar assim na pureza me dá muito
consolo e alegria e o Senhor sabe disto. O espinho, apesar de me machucar fundo a carne
não se consumou mais em pecado e por isto eu necessito dar graças ao Senhor todos os
dias, meu Deus forte. Mesmo não se tendo constituído em pecado, hoje ele ainda bastante
me faz sofrer e disto o Senhor é bem sabedor pois vê até bem antes de mim a discriminação
que me persegue por todos os cenários da existência. Se lá fora ela já tem um peso e ele é
muito grande, aqui dentro ele é carga muito maior e torna-se ainda mais difícil de suportar.
Muitos desses, como eu, homens e mulheres, não foram capazes de carregar fardo tão
penoso e se afastaram da casa paterna, da Sua casa, Senhor. Quem não vive este drama não
é capaz de dimensionar o quanto machuca sermos tratados como pecadores públicos, gente
que não consegue dominar os instintos e inclinações e que, por isto, dos jovens e das
crianças precisam ser afastados. Separam-nos dos outros na Igreja, ao contrário de tudo que
o Senhor pregou, como se fossemos portadores de uma nova lepra ou alguma doença
tremendamente contagiosa.
Negativo que dentre nós não tenha também desses fracotes e moleirões, longe disso, pois
que há multidões deles, mas que atire a primeira pedra aquele ou aquela que não possuindo
a sua sexualidade como a nossa, não teve lá nalgum momento da sua vida uma fraqueza da
qual tivesse que se envergonhar e se confessar dela a um sacerdote. Misérias e pecados
originados da carne são os que mais ocorrem e independem da opção sexual de cada um.
Até mesmo aquele que é o pecado maior de todos o da violação de crianças os temos entre
todos, sejam os que são como nós ou também entre os normais da sociedade. Quantos e
quantas tidas por pessoas de sexualidade sã na Igreja e na sociedade ocidental e cristã não
carregam dentro dos seus cofres mais secretos pecados inconfessáveis e que muito mais
mal do que pode provocar o nosso espinho eles são capazes de provocar?
Não que eu queira justificar ou mesmo amenizar o meu árduo fardo colocando sobre a
minha condição alguma aura de beleza. Meus quarenta anos de vida me fizeram um homem
maduro e nunca, nem em pensamento que eu quisesse almejar algo assim. O que quero, o
que peço a Deus nas orações é que me aceitem na Igreja como eu sou porque nem eu, nem
nenhum de nós que somos assim fizemos o menor pedido que fosse para que desse jeito nos
tornássemos. Meu Senhor, Você bem sabe que por conta disto tudo que nesta celebração
eucarística, nem sei porque recordo, eu larguei o Movimento, me mudei de comunidade e
até mesmo de cidade. Vim para cá e nesses dez anos a ninguém, tirando fora os meus
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�confessores e escolhi-os sempre com bastante cuidado para que fossem de paróquias
distantes daqui, tive a coragem de dizer dessa minha condição. Confesso, aqui no fundo que
foi por medo que esta minha condição de vida a ninguém eu divulguei. Eu, meu Senhor,
que no começo das divagações que me dominam nesta manhã aqui na missa, consideravame duro e forte, reconheço, agora que chegamos lá no altar ao Seu ofertório que, como todo
mundo, também sou fraco e não sei como reagiria a um novo desprezo por parte dos meus
irmãos de fé por me saberem assim como sou de fato em minha essência. Decerto que me
desestruturaria e alguma desgraça seria bem capaz de fazer para não ter que suportar mais
uma vez a carga de tão imensa vergonha.
CARACA
Caraca, sinto-me empurrado pelo ministro que vem na minha cola, aqui bem atrás de mim
nessa procissão de entrada. Está tudo muito louco e não entendi nada. Depois de
permanecermos numa boa, calmos e tranqüilos parados dentro da sacristia aguardando o
padre terminar as suas orações, como um raio, tudo de uma vez se modifica e entramos
praticamente correndo na Igreja. Chego a sentir e ouvir a respiração dele de tão perto que
de mim ele caminha e pelo ritmo dela nada bem ele está. Pelo menos agora já chegamos ao
altar e não corro mais o risco de que ele, no afã de andar rápido, tropece nos meus passos e
interpretássemos aqui, bem na frente do altar, uma cena de comédia pastelão que ninguém
merece com a procissão se desmoronando e um caindo por cima do outro. Pelo menos na
platéia temos novidades. Aquele cara e a sua menina eu nunca tinha avistado por aqui. Será
que é gente boa? Tenho dúvidas porque não é que se sentaram logo em meio ao grupo mais
careta e contra os jovens daqui da comunidade? Só de idade é que eles devem ser jovens.
Vai ver são desse tipo de pessoas quadradonas e caretas que só por engano no calendário da
cegonha não nasceram antes. Novos de corpo e coroas de espírito. Isto é o que eles devem
ser.
Vida louca essa minha. Eu aqui ajudando na missa e um montão de apostilas me esperando,
aflitas, em cima da escrivaninha do quarto. Estou frito. O vestibular esmurrando a minha
porta e, colocando a situação em termos percentuais, cerca de trinta por cento da matéria
necessitando ainda ser revista e eu na casa do Amigão Jesus. Mas é bom estar aqui e caso
tivesse optado, como papai e mamãe que, primeiro de maneira sutil sugeriram, logo depois
abertamente tentaram e, quando eu já estava de saída pra vir para cá, agressivamente
exigiram querendo me forçar a permanecer em casa para estudar, estaria, além de infeliz,
totalmente incapacitado para aprender algo ou relembrar o que quer que fosse, porque
depois da virada de ontem estudando das sete da matina às 10 da noite, o caneco está pra lá
de cheio. Meia gota a mais e a cabeça transborda.
Isto sem contar que mais infeliz também eu ficaria porque não veria a mina com quem hoje,
ninguém me segura, vou pedir pra namorar com ela. Será que ela vai se assustar com o meu
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�pedido, eu que nem ficar com ela fiquei? Tatiana, Tati, Tana, Ana, como será que ela
quererá ser por mim chamada? Aqui do altar, de frente pra ela e lamentavelmente tendo
dela a minha visão prejudicada pelo casal novo na capela que se postou na frente da minha
menina. Caso eles não tivessem aqui vindo a Tati estaria linda de corpo inteiro na tela dos
meus olhos, porque os velhinhos daquele banco são tão baixinhos que não são capazes de
tampar a visão de ninguém, mas esses dois são grandões e a minha gatinha ficou meio
escondida lá atrás deles. De repente, sabe que até foi bom? Imagina só se eles não a
tampassem e ela estivesse completona aqui no meu campo de visão, mas toda charmosa
desse uma de fresca e fizesse de conta que não me via? Eu juro que uma loucura eu faria
aqui nessa missa pra que ela em mim prestasse atenção. Menina, você não me conhece e
por seu amor sou até capaz de plantar uma bananeira bem na frente do altar. Coragem pra
uma doideira assim é o que não me falta. Será? Aí é que ela me chamaria de maluco e nada
comigo ela ia querer ter. Tem juízo, cara. Amor é assim mesmo. No começo é gostoso até
doer e eu estou ainda na parte dolorosa desse tal de amor.
O padre Rogério está esquisitão pacas hoje. Parece que o homem está sonado. Vai ver que
ele passou a noite toda virado em algum jogo no computador. Também eu sou assim,
começo a jogar e perco os limites. Vai embora a fome, a responsabilidade com o estudo, as
obrigações que tenha assumido com meus pais ou com o grupo de jovens. Vai tudo pra o
espaço derrubados na mesma velocidade em que as vidas dos personagens do jogo se
acabam. Talvez não. Vai ver ele está na tal crise de crença que a coordenadora do grupo
ensinava pra gente e que ninguém me peça pra explicar porque patavina de nada foi que eu
entendi do troço. Aliás, não é bem assim, de umas beiradas do assunto eu compreendi,
como, por exemplo, aquela parte em que as coisas quando não são originadas de Deus nos
trazem sentimentos negativos, que ela chama de desolação. Sou capaz de entender o padre
então porque tem dia que eu fico assim também: sorumbático e chapadão, não querendo
que ninguém me venha esquentar ainda mais a paciência.
Ele na tal da crise do deserto e eu na crise de curso. E se eu não gostar de administração de
empresas? E se esse esforço grande paca, de estudar feito um doido o ano todo for em vão
e eu acabe por descobrir logo no primeiro dia de aula que não era nada daquilo que eu
queria? Tati, se acontecer isto você vai ser uma namorada viúva, porque eu juro que morro,
meu amor. Caraca, nunca vim ajudar na missa tão desligadão como me sinto hoje. Estou
pra lá de Marrakesh. Volta, Flavinho, vem e desce devagar que é pra você não se
esborrachar no chão. Você está na capela como auxiliar do sacerdote em uma coisa muito
séria que é a sagrada Eucaristia. Coisa de respeito do Homem lá de cima que você curte
tanto e do qual quer estar cada dia da sua vida mais perto. Pára de circular feito pião dentro
dessa montanha de pensamentos pirados e volta cá pra dentro da Igreja, pra missa de
domingo do padre apagadão que nem abajur de lâmpada queimada.
Esse padre é maneiro, comparando o jeitão de ser dele com um carro, eu diria que a
máquina e a carroceria são dez. Motor potente faz muitas coisas, promove vários agitos
para a galera. Carroceria bem bolada porque tem espaço para carregar a turma. O que falta
nele são alguns acessórios. Têm uns até que custariam muito pouco pra ele incorporar e uns
tantos outros que acho que são possíveis de darem mais trabalho para serem encaixados.
Exemplos da falta desses assessórios no padre me chegam aos montes. A falta de tempo
dele pra conversar com a galera, ouvir nossos anseios, responder às dúvidas e tratar das
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�dificuldades que todo jovem tem. Mata lá na raiz mesmo qualquer tentativa que a gente
faça de aproximação dele quando nos chama de “aborrecentes” e que somos complicados.
Nessa ele erra dobrado porque põe no mesmo saco quem é do grupo e já passou da
adolescência, quem já está nela e quem ainda vai chegar lá e também porque ser complexo,
como nós admitimos que somos, é atributo do ser humano e é bem diferente de ser
complicado como ele em variadas ocasiões tem nos rotulado. Outra situação que me vem
de coisas que faltam nele, é o jeito de nos tratar quando namoramos e ele está dando bola
por perto. Nem um abraço pode pintar. Beijinho então, mesmo dos pequenos e mais
simples podemos dar como demonstração do nosso amor e afeto.
Não tiro nem uma bicota de razão dele quando critica a gente pela ficação que muitos de
nós curtem. Até uns tempos atrás eu também era desses de ficar, mas agora estou mais
sereno e calmo na parte afetiva e me vejo muito mais na da responsa do que na do ficar.
Viu que beleza o que pensei aqui agora, meu amor? Eu quero é te namorar. Flávio pensa
enquanto olha para Tatiana e seus olhos melados não encontram os dela. Ficar é uma coisa
e eu concordo com o padre quando nos cobra as demonstrações de carinho entre os ficantes.
Agora, a minha discordância é quanto aos beijos e abraços dos namorados. Esses, eu e a
Tana, a partir de hoje incluídos, temos mais é que trocar para demonstrar o nosso afeto e o
nosso gostar de estarmos juntos e nos amando. Acho que o fato dele ser europeu, gente
mais fria do que nós somos é que faz com que nos veja de forma diferente e faz com que
precise de um acessório específico para que compreenda que as demonstrações de carinho e
afetividade dos jovens são boas e não fazem mal a ninguém, muito antes pelo contrário. Só
trazem o bem e por isso essa matéria ele tem que estudar de novo para melhor nos entender.
Espera lá, meu irmão, eu raciocinando assim posso estar dando margem a que se pense que
sou todo a favor de se liberar geral os carinhos entre os namorados e até se ir para a cama
nem bem a gente tem um compromisso formal ou em vários casos ainda nem se conhece
ainda de uma maneira razoável. Nada disso.
Outro ponto também que me incomoda no seu comportamento como sacerdote da nossa
Igreja nem diz respeito a nós, da juventude, mas à meninada da catequese. Pô, tem muito
tempo mesmo que ele não dirige uma palavra sequer, não fala uma frase, não dá uma
explicação diretamente para as crianças, para que elas possam participar melhor entendendo
o que é esse troço de missa. Daqui do altar vejo bem o rosto deles e me chateia ver a luta
das tias catequistas para fazê-los permanecer quietos. Fico com dó deles, os pequenos, que
devem se sentir meio “aliens” na celebração. Posso estar enganado, mas o que me passa é
que para cá eles vêm só para bater o ponto, tendo marcadas nas suas cadernetas a presença
obrigatória no culto eucarístico e nem um alô mínimo que seja do padre eles ganham.
Será que peguei pesado com o padre e os trecos daqui da igreja? Penso que não, mas se bati
forte demais, que Deus e o padre me perdoem. O que eu quero mesmo é ajudar, é ser um
cara legal, é trabalhar para um mundo melhor e mais justo que as gerações passadas não
quiseram ou não souberam legar para nós. Caraca, voei alto e quase não me dou conta de
que já está na hora do ofertório da missa e nessa hora coroinha tem mais é que ralar para
ajudar o celebrante.
Ter que estudar quando o que preciso mesmo e quero é trabalhar. Como vou poder namorar
legal a Tata se vivo durango dessa maneira? Seria tão bom se já estivesse na batalha com
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�um serviço legal para fazer. Ter a minha grana na mão todo final de mês para as paradas e
pra poder comprar as roupas maneiras que curto. Sem essa de só usar roupa escolhida e
comprada por mãe. Ela é esperta e tenta me fazer achar que sou eu quem escolhe, mas saco
bem qual é a dela. Posso comprar desde que seja numa daquelas lojas caretas que só têm
roupa de nerd ou de velho. Viva a liberdade dos que têm grana!
Para com isso, Flavinho, com pensamentos desse tipo eu já te falei que é capaz de você
passar uma impressão de que é um cara vazio e fútil que só pensa nele e nos assuntos
materiais. Sou assim não. Tenho grandes preocupações com o social e na minha cabeça
somos nós, os jovens, que temos que ralar por um mundo mais justo, onde todos possuam o
necessário para viverem felizes e com dignidade. Incomoda pacas que os pobres daqui da
região não participem diretamente, como nós de classe média, das celebrações e dos grupos
da capela. Participam, mas é indiretamente porque sempre se colocam lá embaixo perto do
depósito de coisas dos vicentinos, como se não fossem dignos por não terem a roupa
adequada, ou não se sentirem limpos o suficiente, para estarem diante desse altar de Deus.
Hora de parar com a viagem e pousar aqui na missa, Flavinho. Presta atenção no que você
faz, cara. Vai acabar, ao invés de levar a água para o sacerdote lavar as mãos, trocá-la
derramando vinho nele, pagando o maior mico e sendo zoado a vida inteira pela galera que
é tudo gente muito maneira.
EMBAIXO
Não sei como esse povo agüenta ficar dentro duma igreja tão quente e abafada como esta.
Deus me livre e guarde! Aqui fora, a gente escondida na sombra gostosa da amendoeira, já
está pra lá de quente, imagino na capela o forno que não deve estar. Nas duas vezes que
estive lá dentro, numa era inverno e foi o batizado de Maicol, aí não senti muito calor. O
incômodo foi que tivemos que assistir primeiro a missa para, só depois dela, o padre batizar
o guri. Da outra vez foi duro e suei que nem tampa de marmita, carregando o menino no
colo e com a barriga varando os sete meses da Lurianety. Permaneci sentada no primeiro
banco a celebração inteira, para a dona Marlene, da Obra do Berço, me dar de presente ao
final da missa o enxoval da Luri.
Morri de vergonha quando ela me levou lá na frente daquele povão para me mostrar para
eles e ser aplaudida. A barriga e os peitos tinham crescido muito e a blusa já não dava conta
do recado e acontecia que quando eu a puxava embaixo sobrava em cima e quando acertava
no alto faltava pano na barriga. E isto já no final quando Maicol, incomodado, não queria
mais ficar no meu colo e eu tinha que segurá-lo pela mão, porque se soltasse o danadinho
ele ia aprontar tantas ali que eu até duvido que a Dona Marlene iría me dar o presente que
tanto me serviu porque eu já com o barrigão daquele tamanho e nem um pagãozinho sequer
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�eu tinha em casa para a minha filhinha que naquela época nem se seria mulher eu sabia e as
roupinhas do enxoval de Maicol, se já não tinham acabado, deviam vestir naquele tempo os
seus quinto ou sexto neném nalgum barracão de pobre na redondeza.
Não sei o que seria de mim se não fosse o pessoal daqui da capela. O pai de Maicol, quando
estava ainda solto já nem queria mais saber nada de mim e do menino. Hoje, que está preso
em Bangu, duvido que ele pelo menos tenha lembrança do nosso namoro curtinho tão
gostoso e do fruto do nosso amor que é a cara cuspida e escarrada dele. Nesse tempo ele
ainda não tinha se envolvido com o pessoal do movimento da boca. Deus é pai e nunca que
ia de me abandonar e por isso Ele me arrumou em seguida um pai também melhor para a
minha filha. Esse olha e cuida dela. Dá presentes, compra roupas, traz um bombom e leva
ela para tomar refrigerante e comer cachorro quente. De mim mesma ele não cuida mais
porque só ficamos mesmo foi o tempo necessário para a gente criar intimidade e fazer a
Lurianety. A mãe dele, avó da Luri, também é sangue bom e visita sempre a netinha, me
ajudando demais quando leva a Luri e aí dou sempre um jeito de encaixar o Maicol na
encomenda, para a casa lá dela, facilitando a vida para que eu possa ir à luta e levantar uns
dinheirinhos. Minha sogra me contou que o seu filho e pai da minha filha vai deixar o
serviço de camelô, que isto não está mais dando grana nenhuma e só se ganha nessa parada
é porrada dos guardas que, se não bastasse isso, ainda por cima, roubam as mercadorias
deles e vai trocá-lo por uma profissão melhor e mais segura. Vai ser ajudante de pedreiro
em construtora. Coisa boa mesmo e que vai ter a estréia da carteira profissional dele que
será assinada pelo patrão doutor.
A gente vê logo quando a pessoa tem berço. O avô de Maicol, coitado, um pinguço que era
motivo de zoação dos meninos nos becos e que vivia todo mijado e delirando caindo pelas
sarjetas. A avó dele, aí eu não sei bem se por desgosto, ou se sempre ela tivesse sido
mesmo sangue ruim, era a maior piranha da favela. Não é então que o pai do meu filho só
poderia dar no que deu? Diferente demais dos avós da Luri. Este, o pai dela, teve família
direita. Foi cuidado, teve gente que olhava para ele com atenção e amor. Outro dia até eu vi
ali naquele quadro do salão, pena que já tiraram, um retrato dele no catecismo. Isto ele
nunca que me contou e eu não sabia que até nas coisas de igreja ele tinha se metido. Uma
pena que o nosso caso não tenha dado certo. Ele teria sido um cara gente fina para se fazer
um cafofo legal, coisa de sala, cozinha e quarto separado.
Dos assuntos de Igreja mesmo só tomei conhecimento quando dona Marlene me viu
grávida de Maicol e foi lá em casa anotando meus dados e querendo saber mais de mim.
Fiquei até desconfiada demais das intenções dela. O que me vinha no pensamento e tinha
uma gente que me botava esses grilos na cabeça, era que aquela coroa ia querer roubar a
minha criança quando nascesse para mandar vendida para o estrangeiro. Coisa essa que de
maneira nenhuma eu ia de concordar, porque lá em casa é assim, minha mãe sempre disse,
onde comem cinco, comem seis. Aos poucos fui relaxando e aumentava a confiança nela.
Hoje gosto demais. Dona Marlene é a minha mãe branca e mágoa dela, das pequenas, só
tenho uma. Ela nunca que quis batizar filho meu. A esperança que tenho é que desta
terceira barriga ela e lá o marido sejam os padrinhos.
Não que eu quisesse mais um menino. Aliás, se for pensar direito, nenhum deles veio de
coisa assim querida de antes. Veio porque Deus manda. Nenhum homem de papel passado
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�e de Deus abençoe na igreja eu tive. Sou mulher de paixão violenta e quando ela vem não
tem mais nem pensamento que me aconselhe e me entrego toda sem medir conseqüência ou
o que poderá vir. Depois vem o arrependimento, mas na hora em que bate o amor o que
vale mesmo pra mim é o momento para se viver. Apesar de ter pouca idade, sou vivida e
sofrida como se muito mais anos eu já possuísse.
Queria ser de Igreja. Tenho inveja desse povo que chega para a missa com a roupa
arrumada, os filhos de banho tomado e cabelos que o pente e a escova muito alisaram. Mas
sei do meu canto e lá em cima não é lugar para mim. Na escola fiquei só por três anos e até
hoje não tenho bem ao certo se foi porque eu repeti o ano, ou se tudo se deveu pelo fato de
que mamãe cismou que a tia não gostava de preto, que ela decidiu me tirar definitivo da
escola. Ela nunca me explicou isto direito e eu nunca também tinha parado para ficar nessa
de pensar nos porquês de eu ter largado as aulas. Mamãe devia ter razão porque se teve um
tempo em que fui uma menina envergonhada foi naquele último ano em que freqüentei as
aulas. Achava que era por causa da minha burrice, da minha feiúra, ou do uniforme já
muito usado e desbotado que herdei das minhas irmãs mais velhas que, todas, o tinham
vestido antes de mim, que a tia Zenaide nunca me chamava no quadro negro, nem dizia o
meu nome, a não ser é claro na hora da chamada, ou para fazer rindo alguma crítica de
voadice qualquer minha.
Igreja é igual escola. É lugar de gente branca e rica. Desse tantão de gente que vem às
missas dá para contar nos dedos das mãos e sobra um pouco de dedos nos pés, as pessoas
de cor. E mesmo esses que vêm é porque apesar de terem a boa cor, que essa não tem
maneira de se esconder, já estão hoje num estado de vida igual a dos ricos e podem assim
ficar mais à vontade entre os branquelos. Um dia vou arrumar um marido bom e vou casar
na Igreja. De roupa comprida, de rabo saindo pela porta e é claro, toda branca. Dona
Marlene me prometeu que faz questão de me dar o vestido de casamento e que eu nunca
que podia perder as esperanças e que tinha até um santo da Igreja que podia me auxiliar
nesse sonho de casamento. Só que a doação dos panos dela para o casório eu não quero
não, porque ela falou também que pode ser de qualquer cor que eu escolher, mas de branco
é impossível porque esta cor é reservada para as noivas que se guardaram virgens para os
seus maridos e essa, estava na cara, pra ela não dizer que estava no meu corpo também e
nos dois filhos, não era mais a minha situação. Quem sabe eu não acho um padre também
da cor que não ligue que eu entre na Igreja toda noiva de revista. Linda demais e com os
três filhos na frente de dama e de pajem de honra.
Pára de sonhar, mulher metida a besta. Com três crianças depois de desembuchar este que
você não sabe ainda nem se vem menino ou menina, nem emprego decente pra te sustentar
você vai conseguir arrumar e ainda fica aí na porta da Igreja esperando a ajuda dos que
cuidam dos pobres, ficando nessa imaginação doida de marido e ainda dos bons pra casar.
Qual homem será o maluco de se arranchar com essa nega, ainda bonita, que isto eu sou
mesma, mas já gorda e com filharada pra criar? Filhos que nenhum deles o tal noivo bom
ajudou a fazer e que só vão ficar dando trabalho e despesa? Ninguém assim vai ser possível
de estar disponível. Caia na real, mulher, ainda mais nos dias de hoje com essas menininhas
metidas a gatinhas e oferecidas se abrindo pra os caras que nem mala velha.
37
�Tenho mais é que me cuidar depois dessa gravidez, tomar remédio e não deixar mais,
quando arrumar um namorado, ele fazer barriga em mim. Sei como Dona Marlene muito
bem me ensinou, que fazer sexo sem ser casada é pecado grave, mas que fazer? Também
tenho direito a viver e ter alguma diversão e satisfação no mundo. O que não posso é ser
irresponsável de colocar mais filhos no mundo sem ter condições de bem criá-los. Lá vem
descendo rápido a rampa aquela mulher que não espera nunca a missa acabar. O que houve
que fez com que ela saísse hoje da missa chorando? É sempre assim, dois minutos depois
dela passar e estoura a boiada e aparece o povo saindo na pressa igual a de quem tem a
precisão de tirar pai da forca ou a mãe da zona e é a hora em que eu aqui, devagarzinho,
ganho os meus trocados e os mantimentos para passar a semana com mamãe e meus dois
filhos.
EM CIMA
O toque enjoado do celular logo que acabara a consagração, a todos muito incomoda e mais
ainda a Nelson que lá de trás observa que a senhora que recebera a ligação, contra todas as
regras da educação e do decoro dentro de um templo e bem mais grave ainda, em momento
tão solene da liturgia da missa, sem demonstrar maiores cuidados em parecer discreta,
atendia o telefonema. Ganas de ir até ela e tomar das suas mãos e ouvidos o pequeno
aparelho. Mesmo estando de costas, foi visível o susto dela às palavras ouvidas. Sem
desligar o telefone ela cochicha com o marido ao seu lado que, muito assustado, afasta dela
o seu rosto como se tivesse tomado um choque. Ela fala algo novamente ao celular e
Nelson lamenta ela não estar virada para ele, para que pelo menos tentasse, mesmo sem
conhecer leitura labial, compreender o que se passava com as palavras que à distância
pareciam ser tão impactantes. A mulher abaixa a cabeça e fala de novo algo rapidamente ao
celular, como se pedisse uma confirmação e balançando a cabeça afirmativamente para o
seu esposo ao lado, termina a ligação. Em segundos as pessoas posicionadas próximas dos
dois também tiveram reações semelhantes à do marido daquela que recebera a ligação e
Nelson lá nos fundos tinha certeza de que coisa muito importante e que não era nem um
pouco boa, tinha acontecido.
As mãos dadas para o Pai Nosso atuaram como fio condutor facilitando a comunicação e
fazendo com que se abrisse rapidamente o raio do burburinho cujo epicentro era a tal
mulher que recebera o telefonema. Um dos desconfortáveis sabedores da notícia olha
ansioso para trás como se o socorro de alguém ele buscasse e encontra de imediato o olhar
e a expressão incomodada e curiosa de Nelson. Sai então do seu lugar e a passos largos
caminha rápido para o tablado do coro. Nelson se abaixa para escutar o que tanto agitara o
povo lá mais à frente. A informação que lhe é passada o deixa tonto e um zumbido forte no
ouvido permanece. Sem conseguir conter o choro, segue pelo corredor central da nave e
como se fosse à cata do cumprimento de Padre Rogério no abraço da paz, se junta a ele e
38
�lhe dá a notícia. O bom homem de Deus que por tantos anos trabalhara para a Igreja, havia
descansado. O Papa tinha morrido.
Seu erro foi não aproveitar aquela hora em que por Nelson de tudo soubera, para contar o
acontecido ao povo. Resolveu fazê-lo juntamente com os avisos finais antes da benção.
Distribuindo a comunhão Padre Rogério se deu conta de que perdera a boa hora do aviso e
a cara de uns chorando e de outros entre tristonhas e assustadas, era prova de que, qual fogo
em palha seca, da notícia todos já sabiam. Falou-lhes então ao final da sua tristeza pelo
falecimento do pontífice. Queria dizer mais, palavras de esperança, mas elas não saíram
conforme tentara ao cérebro comandar. Ficou nisso.
Indo embora para casa terminada a missa, cada um, da sua forma, carregava dentro de si a
esperança de que nasceria com o novo papa que dali a alguns dias seria escolhido, sob a
inspiração do Espírito Santo pelo consistório dos cardeais a nova Igreja com a qual cada
qual sonhava. Os mais conservadores a expectativa da volta daquela Igreja mais forte,
poderosa e clerical da cristandade. Os outros sonhavam com uma Igreja mais justa e
solidária que esbanjasse por todos os poros o amor do Pai e que os tivesse, independente de
serem leigos ou padres, mais atuantes e comprometidos com o mundo do Reino, pleno de
esperança, justiça e de paz.
E todos eles, gente da cristandade e da comunhão e participação saíam do templo amados
do mesmo jeito pelo Pai que desde há pouco acolhera no seu colo de amor o sucessor de
Pedro.
39
�
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Programa Magis
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Trabalhos (monografias, sínteses) apresentados no Magis por participantes do programa. Também inclui referências para o curso.<br /><br /><em>El Programa de Formación Magis se realiza en la CVX América Latina desde 1997 (el primer encuentro intensiva se realizó en Lima-Perú desde el 1 de enero hasta el 15 de 1998). Más que un curso es un proceso de formación integral de 3 años y medio, que desarrolla 1 etapa preparatoria y 3 Módulos: Cristología, Eclesiología y Espiritualidad Laical. Cada módulo cuenta además con temas especializados en ética cristiana, discernimiento socio-político, discernimiento para la misión, espiritualidad, sexualidad en tiempos presentes, análisis de la realidad, y otros más.</em>
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http://www.lacvx.org/p/programa-magis.html
Language
A language of the resource
es
pt
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Um recurso composto principalmente de palavras para leitura. Exemplos incluem livros, cartas, dissertações, poemas, jornais, artigos, arquivos de listas de discussão. Note-se que facsímiles ou imagens de textos ainda são do gênero Texto.
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Title
A name given to the resource
Missa
Creator
An entity primarily responsible for making the resource
Cyrino, Fernando
Date
A point or period of time associated with an event in the lifecycle of the resource
30/05/2010
Subject
The topic of the resource
Eclesiologia
Description
An account of the resource
Missa é um conto no qual refletimos sobre a questão da Igreja e dentro dela a questão do leigo.
Language
A language of the resource
pt-BR
Publisher
An entity responsible for making the resource available
CENAL
Format
The file format, physical medium, or dimensions of the resource
PDF
Type
The nature or genre of the resource
Conto
Source
A related resource from which the described resource is derived
Programa Magis de Formação - Magis II
Eclesiologia
Magis 2
Magis II
Missa
-
https://d1y502jg6fpugt.cloudfront.net/42521/archive/files/0ecb2018b0174a3b44984eabd7fce6b8.pdf?Expires=1712793600&Signature=VhIw0f3ixC3ZHa1qw1kKmYcqauBl0yN124ghDN7ZOtwiNQfdgSliyblPcyIbCaS3yXWX%7E5OnDeru-T%7EycE6Wan874r0RBe6Y0eHbRwFu5DHYn1MurxvCbtnvTs9gktx9BaZGyRDxmwNjPfQSVDBpkZwQ901QT-onabTwqOniCPmy0dP%7ETEvpdTKuINHKLKlX%7EjWFglnOoxLcKmMG4ZZRLFhIlNP2o-FjjEvTsLlQGUu-KDtu5j3-7bihkpMxfLBdvVI5o95NaANYisgWe4tm0%7ET6xDDqeAaV9U8iZS0k3U%7EC0%7EyZM0RLqbXMMLp2-A-I2CFldpenjfFKOT1M3D0Wcw__&Key-Pair-Id=K6UGZS9ZTDSZM
acf05b47236575860f5e36d98b961015
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-Esse tal de Jesus é mais uma invenção de vocês, homens supersticiosos. Lá no
fundo o que vocês sentem é medo. Medo do amanhã, medo da morte, medo da vida.
Para poderem se apoiar em algo criaram um deus. Só que este Deus estava muito
distante. Foi então mera questão de tempo a criação de um mito humano. Um homem
que fosse ao mesmo tempo deus e homem. É isto. Foram juntando aos poucos coisas
ditas por uns, feitas por outros, aspectos de uma série de pessoas, fatos acontecidos com
um tanto de gente em um só homem. E sabe o que mais? Para cúmulo de tudo, ainda
inventaram ao final que este tal homem / deus, havia ressuscitado. Calma lá. Sou um
ser humano inteligente e racional. Não me venham com lendas. Vocês pregam um mito
em suas igrejas. Aliás, não é um mito. São dois. O mito do guru que pregava na
Palestina dizendo palavras bonitas para o povo e o mito do fantasma. Um ressuscitado
que passava pelas paredes e devia ficar assustando o pobre e influenciável povo.
Robson estava vermelho de raiva. Aquele discurso de Tomás o havia tirado do
sério. Várias vezes, enquanto Tomás descarregava sobre ele seus argumentos, até que
tentara retrucar, mas quem disse que havia jeito de se fazer ouvir. Era sempre a mesma
história. Tudo, mais uma vez, se repetindo. Tomás se empolgando e só falando. Sua
empolgação fazia com que se imaginasse talvez num estúdio de rádio, falando ao
microfone de dentro duma cabine para uma audiência que não tinha como lhe retrucar
os argumentos. “Como era possível um homem já em pleno século XXI vir com umas
baboseiras daquelas?” dizia sempre Tomás nas discussões, negando a existência de
Jesus. E isto era demais para Robson.
A criança mendigando um trocado e a aproximação do ônibus que levaria Tomás
interrompeu abruptamente a discussão. Correndo para tomar a condução ele gritou para
Robson. -Semana que vem, logo após a aula de filosofia, retomamos nossa conversa.
Além disso, ele dizia, já com meio corpo dentro do ônibus. -Gosto muito de conversar
essas coisas com você, um sujeito ponderado e que me escuta. Aliás, tem mais é que ser
ponderado e me ouvir, porque no fundo você está totalmente convencido de que tenho
razão. Tchau. Pense nisto tudo, viu? Vou acabar te convertendo. Gritou ele da janela
enquanto o ônibus entrava no meio do trânsito caótico da cidade grande.
Robson abanou a mão e sorriu meio sem graça, ruminando a raiva de não ter
podido, mais uma vez, dizer os seus argumentos – que com toda certeza, pensava ele –
teriam convencido o amigo e adversário ateu. Isto caso Tomás tivesse dado chance para
que ele também falasse. E o pior de tudo, disse em voz alta: -É que ele acha que sou
ponderado e que não tenho argumentos. No ponto do ônibus, todos olharam para ele.
Deu um sorriso meio sem graça para os desconhecidos e imediatamente após, uma cara
de poucos amigos. E que não pensassem que ele era um louco que ficava falando
sozinho.
Tarde ruim daí por diante. Chegou em casa sem apetite. No jantar comeu pouco.
Não conseguiu ler o jornal. Liga a tv para assistir ao noticiário mas a única coisa que
consegue se lembrar ao final dele é que o mundo e os homens continuam os mesmos.
Muita miséria, muita violência, guerras, corrupção e, perdidas no meio dessa lama toda,
vez ou outra, uma nota rápida sobre alguma coisa boa acontecida naquele dia. A cabeça
estava longe. Estava na discussão iniciada na faculdade após a aula de filosofia do novo
professor existencialista.
1
�Na oração do dia, feita costumeiramente antes de dormir, muita dispersão. O
exame de consciência só tem a cena com as palavras de Tomás retumbando em sua
cabeça: “Esse tal de Jesus é uma invenção de vocês, homens supersticiosos...”. O final
da oração é um pedido de perdão ao Pai pela raiva e vontade que teve o dia todo de ligar
para Tomás para mandá-lo à merda.
Já era meia noite. Havia duas horas que estava deitado rolando de um lado para
o outro da cama. Em sua memória veio muito nítida a cena vista anos antes do
humorista na televisão que chegando em casa do trabalho e, somente estando diante dele
a mulher, começava a vociferar argumentos para uma discussão havida no escritório
horas atrás. A esposa perguntando: -Afinal, o que está acontecendo? E ele lhe
explicando que tinha tido uma conversa dura com o chefe e que na hora, apesar de ter
razão, não lhe vinham à boca os argumentos. Somente conseguia dizer: “ Ah, é, é? Ah
é, é?” e mais nada. E que agora, chegando em casa, com a clareza da água pura do rio,
vinham à sua boca todas as palavras que lhe haviam faltado naquele momento. Cansado,
Robson dormiu. Se lhe tivéssemos perguntado como estava se sentindo, com toda
certeza teria respondido: “Um perfeito e completo idiota”.
Ao acordar tentava se lembrar do sonho. Este era um antigo problema. Por que
os sonhos eram tão vagos? Por que não conseguia lembrar-se da grande maioria deles?
Do sonho da noite ficaram vagas lembranças. Escrevia uma carta. Uma carta imensa
que não acabava nunca. O assunto dela e o destinatário, por maior que fosse o esforço
que fazia enquanto se aprontava para sair, eram incógnitas.
Chegando à rua, descobriu que chovia. O primeiro ônibus que passa não atende
ao seu sinal e vai em frente, direto. Estava lotado. O segundo, parou, mas não havia nele
lugar para a viagem assentado. Robson, mesmo assim embarcou e duas quadras à frente,
uma batida entre um táxi e um caminhão engarrafa totalmente o trânsito. Entre os
dentes, para não pensarem de novo que falava sozinho, Robson murmurou: “só falta
agora eu encontrar o Tomás para acabar de estragar este meu início de dia...”.
A Senhora gorda apertou a campainha e pedia licença para passar pelo corredor
já cheio, enquanto o espremia contra o homem simples já de meia idade que cochilava
sentado com o jornal caído entre as pernas. Robson, naquele grande desconforto,
olhando para a janela do veículo sorri. À sua frente vê numa esquina a agência dos
Correios e bem diante dela, uma igreja muito imponente, meio gótica, com vários
mendigos, bêbados, velhos e crianças pobres em suas ricas escadarias de mármore.
-É isto, isto mesmo que eu tenho que fazer. A senhora gorda passando atrás dele
com muita dificuldade vira-se pra trás e com a cara feia de quem está querendo briga
fala bem alto.
-Por que está reclamando? Quer conforto? Que viaje então de carro. Afinal sou
uma mulher pobre mas educada, viu? Eu lhe pedi licença para passar...
Em menos de 24 horas, pela segunda vez, o rosto de Robson queimava como se
tivesse ido ao fogo. Pela segunda vez, por falar sozinho ele se via em apuros. Ontem, no
ponto do ônibus olhavam para ele como se fosse louco e agora a mulher gorda estava
achando que ele falara algo reclamando por ter sido espremido por ela. Até ia se
justificar, mas a senhora já alcançava o último degrau e abria a sombrinha para
proteger-se da chuva. No ônibus seus olhos procuraram aprovação nas pessoas em volta,
2
�mas os outros olhares lhe devolveram indiferença e alguns até uma certa indignação
talvez por acharem que ele havia destratado a mulher gorda.
E ele pensou, agora com o cuidado do silêncio: Sim. É isto que tenho que fazer.
Como não consigo fazer-me ouvir na discussão, vou escrever cartas para Tomás. Nelas
poderei com toda tranqüilidade, expor meus argumentos e, por que não, conhecer os
dele também de forma escrita, onde deverão estar mais claros nas cartas que com toda
certeza ele enviará respondendo-me. E melhor ainda. Terei tempo para pensar e
amadurecer meus argumentos. Em homenagem à idéia que tive vendo a agência dos
correios ao lado da Igreja, farei a carta à moda antiga. Caneta e papel. Envelope e selo.
Pega o bloco e senta-se à mesa da varanda para escrever a primeira “carta
catequética”. Rira muito com este título. Ele o dissera à Mônica justificando o porquê da
sua recusa em ir com ela ao cinema. -Precisava escrever uma carta catequética, disse.
Pôde sentir do outro lado do fio o espanto da amiga com as suas palavras. -Carta
catequética? O que era isto? Por acaso virara pastor? -Depois explico. Disse ele
gostando do clima de mistério que a expressão causara.
Espera. Esta carta merece uma música de fundo. Levantou-se e meio que
automaticamente puxou um CD na prateleira dos clássicos: A Paixão segundo são
Mateus, de Bach. No dia seguinte, quando levava o envelope para a agência do correio –
tinha que ser aquela ao lado da Igreja gótica – ele caminhava pensando no porquê da
escolha daquele disco e na sua opção pelo envio da correspondência pelo correio
quando poderia enviá-la através do computador ou entregá-la naquele mesmo dia em
mãos ao destinatário. -Não, dizia para si mesmo, -Esta é carta para entrega por carteiro.
A carta catequética vale muito bem o selo que lhe pus.
“Caro Tomás,
a Paz!
Que bom que você gosta de conversar comigo sobre esses assuntos complicados como
religião. Até este momento não posso dizer a você o mesmo. Não gosto de discutir com
você sobre este assunto. Não consigo expor a você meus argumentos e ao final das
nossas discussões fico sempre com o gosto meio amargo na boca de não ter conseguido
falar da minha fé como queria e sei que tenho condições de fazer. Por isto, resolvi lhe
escrever esta carta falando dos meus pontos de vista a respeito da nossa última
conversa desta semana, encerrada quando você pegou o ônibus.
Vamos imaginar que eu tenha tomado a mesma condução e que nela continuamos a
conversa. Só que é a minha vez de falar e você –e isto para mim é inacreditável – está
com muita atenção me ouvindo e não, como sempre acontecia, já preparando novos
argumentos para rebater os meus!
Tomás, esta história de que Jesus não viveu já rolou faz muito tempo. Isto foi papo do
Século XIX. Hoje, qualquer autor mais sério, não importa se religioso ou não, sabe que
esta discussão já se encerrou. Jesus de Nazaré foi um personagem histórico que viveu
na Palestina então dominada pelos romanos há dois mil anos e isto não está apenas
registrado por fontes cristãs, o que lhe daria chance para argumentar colocando-as sob
3
�suspeição. A vida de Jesus de Nazaré também é registrada por historiadores não
cristãos da época, tanto judeus quanto romanos.
Este homem histórico chamado Jesus tem a sua vida, principalmente aquilo que
chamamos de sua vida pública, contada em livros chamados Evangelhos, palavra que
significa boas novas. Durante muito tempo esses relatos da vida e obra de Jesus foram
considerados como livros históricos. Isto é, acreditava-se que tudo que estava escrito
neles havia acontecido da forma exata tal qual estava relatado. Hoje sabemos pelos
estudos críticos realizados que não é bem assim. Eles são livros de fé. Livros que
contam também a história, mas não exatamente como entendemos a história hoje. O
contar a história é um mero apoio à vontade do escritor. O que os autores dos livros
querem nos mostrar é que aquele homem não era somente um homem. Ele era o Filho
de Deus e a forma de eles contarem isto buscava tão somente fazer-nos crer nesta
verdade.
Muito da discussão sobre a realidade histórica de Jesus ganhou força quando o avanço
das ciências começou a mostrar que a ‘história’ de Jesus tinha muitos pontos obscuros.
Pontos que não fechavam quando comparados um evangelho com os outros, ou, pior
ainda, quando colocados diante de fatos históricos conhecidos. Dentre vários, te dou o
exemplo da questão do recenseamento ordenado por Augusto quando Quirino era
governador da Síria (Lc. 2,2) e citado por Lucas. Este é um fato registrado nos
Evangelhos como motivo para a viagem de José e Maria, grávida, até Belém. Sabemos
hoje com bastante certeza que este censo não aconteceu nesta data referida pelo
evangelista.
Não há livros mais estudados no mundo do que esses quatro livrinhos que chamamos
de Evangelhos. Muitas ciências se uniram para estudá-los: a lingüística, a antropologia,
a sociologia, a história, a geografia e muitas outras. Os frutos desses intensos e
profundos estudos, aliados aos avanços científicos e às descobertas arqueológicas
ocorridas principalmente no último século, nos mostram um Jesus de Nazaré muitas
vezes e, em muitos aspectos, diferente daquele que vemos ser pregado em muitas
Igrejas. Por isto, pensando agora mais calmamente, te dou uma parte da razão na
conversa. O Jesus que muitos acreditam: um Jesus mágico, esotérico, guerreiro, guru
filosófico e justificador de injustiças, realmente não teve existência histórica. Foi
criado pela mente humana a partir do Jesus de Nazaré que estou querendo lhe
apresentar.
Durante este tempo em que se julgava serem os Evangelhos livros também históricos,
muitos homens tentaram escrever a vida de Jesus. É claro que não conseguiram. Não há
nos livros bíblicos elementos suficientes para tal feito. Hoje já se tem muito claro que
com os dados que temos à disposição tal tarefa é impossível, mas isto não quer dizer
que não possamos ter acesso a Jesus, como muitos chegaram a pensar tempos atrás.
Lendo os Evangelhos sem o cuidado crítico para o qual lhe estou pedindo a atenção,
podemos até ter a impressão de se tratar de relatos biográficos e históricos. Lá se
contam a gravidez de Maria, o nascimento, muito pouco da infância, a vida pública, a
morte e a ressurreição de Jesus. Mas, como já vimos, não é bem assim. Esses relatos,
que são muito mais testemunhos de fé, foram escritos vários anos após terem
acontecido os fatos narrados. O primeiro desses relatos, o de Marcos, foi escrito em
torno dos anos 60, portanto, mais de 20 anos depois dos acontecimentos.
4
�Repare então, e isto é uma das coisas mais importantes que quero te contar nesta carta,
que os livros sobre Jesus foram escritos a partir da sua ressurreição. A partir dela os
seguidores de Jesus de Nazaré, que com a sua paixão e morte haviam se dispersado,
voltam a se reunir e a fazer uma nova leitura da vida daquele homem que eles seguiam.
Um homem assim, tão especial, tão servidor, tão misericordioso, tão amante, só podia
ser Deus. Ou em outras palavras: ‘Um homem tão humano assim, só podia ser Deus’,
como dizia o teólogo Leonardo Boff repercutindo outro grande teólogo do Século XX,
Karl Rahner.
O cuidado que devemos tomar na caminhada rumo ao conhecimento de Jesus é de não
nos desviarmos nos atalhos que possam nos levar a falsos ‘jesuses’, que como já te
disse mais acima, foram inventados, não tendo tido portanto existência no tempo e no
espaço e de entendermos de forma distinta o Jesus histórico e o Cristo da fé, mantendoos distantes um do outro, como se fossem realidades incompatíveis.
Lembre-se também, caso, como eu espero, você queira conhecê-lo, que não
necessariamente precisará crer nele para ter este acesso. Muitos o estudam sem
acreditarem no que nós, cristãos, acreditamos. Há inclusive ateus que escreveram
livros, fizeram filmes e até poemas maravilhosos sobre ele. Só que eles podem até
conhecê-lo muito, mas será sempre um conhecimento pobre, porque não estarão
saboreando este conhecimento. Não sei se está claro para você o que quero dizer com
isto. É como se você quisesse namorar a sua grande paixão, a Marta, apenas à
distância, estudando o comportamento e as atitudes dela. Amar, você sabe muito bem,
é muito mais que teoria, muito mais que estudo. E é isto que eu quero para você. Que
você ame a partir do amor imenso de Deus que nos chega através do seu filho, Jesus.
Tomás, este é o convite que lhe faço: conheça Jesus, mas conheça-o não somente pelo
estudo, mas, também pela fé. Afinal, os Evangelhos terminam com algo que para o
nosso senso comum é muito louco e extraordinário. Algo que sei que você, na sua
razão, não acredita (ainda – provoco): a ressurreição de Jesus. A esta parte nós só
temos acesso pela fé. Como um homem de fé, termino a carta pedindo a Jesus de
Nazaré - homem e Deus - que lhe dê também a fé para que você possa ir bem além do
entender o homem Jesus.
Um grande abraço do amigo,
Robson”
Certamente Tomás não entendeu o sorriso enigmático no rosto de Robson
quando se encontraram no dia seguinte na faculdade. A carta seguira e ele se pegou
muitas vezes naquele dia tentando imaginar onde estaria naquele momento o envelope.
Como ele a postou na quinta-feira pela manhã e a agente dos Correios lhe disse que
carta para a mesma cidade seria entregue em no máximo dois dias, pelas suas contas,
seria recebida no sábado, o que seria ótimo porque daria a Tomás tempo livre bastante
para refletir e, quem sabe, escrever uma resposta. Como será frustrante se não houver
resposta, pensava Robson com seus botões.
5
�Após as aulas passou pela biblioteca. Queria levar algum livro de Cristologia
para estudar. Precisava rever alguns pontos. Só de pensar em não saber responder a
alguma questão trazida por Tomás, sentia calafrios. Sai da biblioteca folheando o livro
escolhido. –Ei, Robson! É Mônica que o chama. Fecha o livro e lá vem ela com aquele
sorriso largo e cativante que tanto o encantava. Se você acha que vai pra casa sem me
explicar o que é esse negócio de carta catequética, está muito enganado. Vamos à
lanchonete. Recebi ontem meu primeiro salário e apesar de não poder gastar muito, o
café será por minha conta. -Com direito a muito pão de queijo? Se for, serei capaz até
de escrever uma carta catequética também pra você. -Espera lá. Meu salário é muito
pequeno e precisarei muito dele para outras coisas. Vamos combinar o seguinte. Café
com leite e um pão de queijo para cada um. Está legal? –Claro, Mônica. Vamos logo. O
pão de queijo da cantina já está me dando água na boca.
-Sabe o que é, dizia Robson após tomar o primeiro gole do café forte. -Este
nome eu inventei no momento em que conversava com você ao telefone. -Espera lá.
Quer dizer que não existe essa tal de carta catequética? Que foi uma desculpa para não
ir ao cinema comigo? Se foi isto, pode começar a se preparar para pagar o seu café e
pão de queijo... Robson dá uma gargalhada e começa a explicar toda a história.
Com olhos de criança ouvindo história, Mônica é toda atenção e ao final
surpreende o amigo. -Puxa Robson. Que interessante. Eu até acredito em Deus, mas sei
tão pouco dele. Fiz somente a primeira comunhão e depois disso, igreja pra mim só
aconteceu em missa de sétimo dia e casamento de parentes. Vez em quando me pego
como se tivesse uma nostalgia daqueles tempos inocentes quando me preparava para a
primeira comunhão decorando pontos do catecismo. -Mas você não está pensando que
ter fé, seguir a Jesus é decorar textos, não é? -Bem, foi assim que a professora fazia
conosco quando criança. Não é assim mais? -Claro que não, Mônica. Você é adulta e
precisa de uma fé adulta, sem “decorebas”. E não se esqueça. Fé não é saber apenas. Fé
é muito, muito mais do que estudo e conhecimento.
-Vou te fazer um pedido, Robson. Posso? -Claro, Mônica. Agora quem está
curioso sou eu. Quero saber o que você vai me pedir. -É simples. Você tem uma cópia
da carta catequética?
A gargalhada de Robson chama a atenção do casal que namora na mesa ao lado.
-Imaginei vários pedidos, mas acho que nunca seria capaz de pensar neste. Sim, tenho
uma cópia, mas toda riscada. Posso passá-la a limpo para você. -É mesmo? Sabe que
tive receio de que a carta não tivesse tido um rascunho ou, mesmo que tivesse tido, você
o houvesse rasgado? Quero a carta catequética do jeito que ela está. Sem passar a limpo.
Esta é a minha condição para o pedido. -Bem, se você não se incomoda em lê-la assim
mesmo... Segunda feira a trarei para você.
Durante todo o tempo na escola e até a chegada em casa perseguiu-o o medo de
ter jogado o rascunho na lixeira. Se isto tivesse acontecido, adeus cópia da carta
catequética porque com toda certeza o lixo já teria sido recolhido e a esta hora já estaria
passeando no caminhão da limpeza urbana pela cidade. Alívio. O rascunho estava lá.
Intacto. Robson senta-se à escrivaninha e passa a limpo novamente a carta. Várias vezes
teve que se conter para não modificar o texto, acrescentando ou tirando coisas. A carta
catequética e a vontade da Mônica em conhecê-la pediam esta fidelidade.
6
�Na faculdade, segunda-feira, tenta fingir indiferença à chegada de Tomás, mas
não consegue. Ele vem sorrindo. -Cara, que negócio mais retrógrado este de enviar carta
pelo correio!? Robson fica meio desconcertado e Tomás continua. -Gostei de receber
sua carta. Eu a li duas vezes, mas não pense que vou respondê-la no papel. Vou
respondê-la por e-mail. Você não usa computador? -Claro que uso. Pode responder por
e-mail. Será até melhor porque dará mais agilidade à discussão. Além do mais.... deixa
pra lá. -Alem do mais o quê? Perguntou Tomás. -Nada não. Melhor não dizer a Tomás
que a carta catequética também seria enviada à Mônica e a tecnologia facilitaria o envio.
A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi ligar o computador. Alegria. Lá
estava a mensagem de Tomás.
“Olá Robson,
Com a sua carta tive a confirmação de que vocês cristãos são conservadores. Onde já se
viu? Em pleno século XXI você me enviar uma carta pelo correio? Mas vou lhe
confessar uma coisa: eu gostei. Ela lembrou-me as cartas que o meu pai, homem muito
religioso, escrevia para os seus amigos.
Quer dizer que esta história de que Jesus não existiu historicamente é café requentado?
É coisa antiga já superada? Espera lá amigo. Posso até aceitar, mas quero estudar mais
isto. Você não tem uma bibliografia para me indicar?
Agora, o Jesus que vejo falar dele, pregado pelas Igrejas e exposto nas mídias é
totalmente diferente desse Jesus do qual você fala. Tem horas que vejo dizer de um
Jesus distante, rei, poderoso e inacessível, ao meu modo de ver, aos homens. Em outros
momentos e lugares o Jesus do qual se fala já é um homem, muitas vezes guerreiro,
revolucionário. Em outros ambientes, um professor de moral, um guru enfim com seus
seguidores. Parece que há muitos ‘jesuses’. Isto me deixa confuso. Você me explica?
Queria que você me explicasse também este negócio de fé. O que significa mesmo a fé
para vocês? Para mim soa como algo meio mágico, meio infantil.
Outra coisa, a Bíblia e os evangelhos não são livros históricos? Se não são, como vejo
muita gente interpretando-os ao pé da letra?
Você diz na sua carta que o primeiro evangelho, o mais antigo deles, foi escrito
somente 20 anos depois da morte de Jesus. Por que não foi escrito antes? Por que
demoraram tanto tempo para fazê-lo?
Uma última coisa, nunca será possível você me provar que esse Jesus ressuscitou.
Túmulo vazio, como eu ouvi um cristão dizer, não é sinônimo de ressurreição e além
do mais, esse negócio de morto ressuscitar vai contra toda a minha ciência. Já imaginou
morto sair andando? Menos, Robson, menos.
Bem, agora você não pode reclamar que eu não o escuto. Além de ler e reler sua carta,
a estou respondendo com essa série de perguntas.
Outro abraço,
Tomás.”
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�-Ele respondeu! Ele respondeu, repetia Robson a Mônica ao encontrá-la na
portaria.
-Chegou o email dele em resposta à minha carta. Aliás, respondendo não,
perguntando.
-Não estou entendendo. Como assim perguntando? -É que o correio eletrônico
dele veio com algumas perguntas e sabe o que isto significa? Significa que ele mordeu a
isca. Consegui mudar o formato das nossas discussões. O campo agora é outro e nesse
campo eu tenho muito mais chances de fazê-lo enxergar uma série de coisas que ele
teima em não ver. -Além disto, neste território você tem a minha torcida, falou Mônica
com aquele sorriso que fazia o coração de Robson ficar batendo meio descompassado.
-Mas, espera lá, Robson. Você vai me falar desse email do Tomás depois.
Primeiro ainda precisamos conversar sobre a primeira carta catequética. Robson sorriu
sem graça. A ansiedade gerada enquanto aguardava a resposta de Tomás e a chegada do
seu email, fez com que se esquecesse totalmente da cópia que fizera para Mônica. Vamos à lanchonete. Acho que vou pagar pra você dois pães de queijo. Sabe, Robson,
cheguei à conclusão que você merece muito mais.
-Pô, Mônica. Esse café com pão de queijo me dá água na boca .... Mas agora eu
não posso. Tenho prova. Você me espera às nove pra gente ir? Aí teremos uma hora pra
conversarmos. -Combinado. Te espero lá na lanchonete, boa prova.. -Obrigado, até as
nove, então.
Não estudei o bastante e não estou me sentindo preparado, mas quem sabe,
mesmo sem ter estudado muito, o estado de espírito conte ponto para se fazer prova. Se
contar, estou feito. Já entro com dois pontos de vantagem. Robson foi pensando assim e
sorrindo muito enquanto caminhava a passos largos para a sala de aulas.
-E aí? Como foi o teste? -Facílimo. Com certeza gabaritei, respondeu Robson
enquanto puxava a cadeira para sentar-se à mesa com a amiga. -Mas me diga, Mônica.
Seus olhos não me enganam. Você não está bem, vejo que está triste. O que está
acontecendo? Nem preciso lhe dizer que aqui você tem um amigo.
-Pois é, Robson, desde que o vi tentei esconder a minha tristeza. Afinal, você
estava tão feliz e eu não queria estragar a sua alegria. -Nada a ver, Mônica. Afinal, os
amigos são para todos os momentos. Os bons e também os ruins. O que está fazendo
com que você fique triste?
-É o meu pai. Não sei mais o que fazer. Ele está em depressão e só pensa em
morrer. Há dois anos, depois de 25 anos de trabalho, ele foi demitido do banco. A
agência onde trabalhava foi toda informatizada. Dos 20 funcionários, só permaneceram
5, coincidentemente aqueles que não são sindicalizados. A demissão foi um choque
muito pesado, mas pior ainda foi alguns meses depois, quando papai descobriu que por
causa da sua idade, 50 anos, não tinha mais chances no mercado de trabalho. Você nem
pode imaginar o drama que estamos vivendo. Se não fosse mamãe estar vendendo
produtos de beleza de porta em porta e eu ter conseguido um emprego temporário à
noite numa loja do shopping, não sei como estaríamos sobrevivendo. Graças a Deus a
escola é pública e por isto gratuita. Imagine, caso não fosse assim, eu não estaria
conversando com você aqui neste lugar agora.
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�-Puxa, Mônica. Estou totalmente surpreso. Nunca seria capaz de imaginar uma
coisa dessas. Pra mim, você tinha uma vida totalmente tranqüila e resolvida. Que coisa
mais terrível isto que aconteceu com o seu pai e, conseqüentemente, com todos vocês na
família! Sabe, isto é mais um dos frutos dessa sociedade em que vivemos. Um mundo
baseado no individualismo e no lucro. Esta é uma sociedade perversa que faz com que
uma minoria tenha cada vez mais enquanto a grande maioria vai ficando com as sobras.
E o que mais me deixa incomodado e com raiva nessa história é que esse modelo já está
mais do que caduco. Ele já provou pelos seus frutos ruins que não presta. Pois é,
Mônica, estamos cada dia mais distantes daquele Reino pregado por Jesus....
-Que Reino é este, Robson? Fico até envergonhada de perguntar, mas, apesar de
vir de uma família com uma mãe extremamente religiosa e ter um pai que até poucos
anos atrás também tinha muita fé em Deus, sou totalmente crua nessas coisas de
religião.
-Caramba, Mônica, já se foi o tempo que dispúnhamos para conversar. Estamos
atrasados. Nossas aulas já devem ter começado e a gente nem falou da carta catequética
que era o grande motivo do nosso encontro.
-Tem problema nenhum não, fez muito bem poder falar com você dos meus
problemas familiares. Há muito tempo precisava de um ombro amigo disposto a
escutar-me. A carta catequética fica pra outro momento. Quem sabe ela não fica
também para uma carta? Vou fazer de contas que ela era endereçada pra mim. Acho
que nem preciso fazer de contas. Ela era também pra mim porque me fez pensar e
repensar coisas em mim e na minha vida. Aguarde no seu computador a minha resposta
à carta catequética inicialmente do Tomás e agora também minha.
-Excelente, assim terei tempo para pensar e amadurecer o que devo responder,
falou Robson já se levantando e pensando na sua tradicional dificuldade em elaborar e
ordenar os pensamentos no calor das conversas e discussões.
Na volta pra casa duas coisas não lhe saiam da cabeça. Os problemas
enfrentados pela família de Mônica e que diabos teria escrito que a fizera repensar
coisas na sua vida? Repassava toda a carta na cabeça e não conseguia atinar com o que
poderia ter sido. Afinal, não escrevera nada de especial ou profundo...
Na oração da noite rezou pela família de Mônica e também para que sempre
estivesse aberto a acolher e escutar as pessoas que o procurassem. Até a hora de dormir
ainda tentava descobrir o que foi que havia feito Mônica repensar coisas. Lembrou
então dum fato contado por Dom Helder Câmara. Dizia o santo bispo que quando jovem
era muito orgulhoso da sua capacidade oratória. Seus sermões eram muito elogiados e
até outros padres acorriam às suas celebrações para ouvi-lo falar. Um dia, após a
celebração, já na sacristia, vê chegar um homem que entre lágrimas vai lhe agradecendo
pelas palavras da homilia que com certeza iriam fazê-lo mudar radicalmente de vida.
Todo orgulhoso, Dom Helder, pergunta ao homem agradecido quais foram exatamente
as palavras que lhe tocaram. Qual não foi sua surpresa ao ouvir do homem: “Ah, Dom
Helder, foi quando o Senhor parou um instante de falar e disse: passemos agora à
segunda parte. Nessa hora, senhor bispo, eu vi o quanto tinha sido vazia a primeira parte
da minha vida e quão importante e necessária seria a minha passagem para uma segunda
parte, com mais amor e doação para os outros. Eu que até agora fui extremamente
9
�fechado e egoísta.” Abraçado ao homem, agora era Dom Helder quem chorava
agradecendo a Deus pela lição de humildade recebida. Tantas palavras edificantes,
profundas e ricas ele tinha pregado, mas Deus havia se valido duma expressão que
teológica ou pastoralmente não queria dizer nada para mover o coração daquele homem.
Dormiu saboreando a história do bispo que ele tanto admirava e tentando
imaginar o que lhe escreveria Mônica na segunda resposta da sua carta catequética.
Lembrava ter tido receios de não haver uma manifestação de Tomás e agora já se via às
vésperas de receber a segunda resposta à mesma carta enviada.
Ao abrir a janela notou que caia uma chuva fina. Aliada ao frio que fazia no
início da manhã, ela era um atraente convite para continuar na cama. Mas havia muita
coisa a fazer naquele dia. A entrevista para o estágio estava marcada para as oito horas.
Era o tempo do banho, café rápido e da viagem até o centro da cidade. Queria muito
esta oportunidade de praticar os seus conhecimentos até este momento adquiridos na
escola. Estava chegando ao final do curso e não havia ainda conseguido um estágio.
Além disto, havia também a questão da bolsa. Precisava do dinheiro para se manter sem
precisar contar com o orçamento familiar, já bastante comprometido com os gastos
normais da casa.
Gostou do entrevistador e tinha sérias dúvidas se a recíproca nesse caso era
verdadeira. Achava que o psicólogo da área de recursos humanos não havia gostado da
sua indecisão ao responder a pergunta: “Como você se vê daqui a 5 anos?” O consolo é
que havia sido sincero. Afinal, não tinha nenhuma clareza no caminho a seguir daí por
diante. Via-se numa encruzilhada. Dum lado o namoro, a busca de alguém muito
especial – e nesse caminho só havia lugar para Mônica e seu sorriso tão doce. Do outro
lado o chamado a uma intimidade maior com Deus, quem sabe através da vida religiosa.
Ficou pensando como Jesus, jovem com a sua idade, teria respondido a essa pergunta do
entrevistador. Teria ficado também indeciso ou já tinha clareza do caminho a seguir?
Muito bem ele constatou. Nada mais havia a se fazer a não ser esperar o resultado da
entrevista. Ele disse que em até uma semana já teria a escolha feita dos dois estagiários
para a empresa. Imaginou como se numa ação maravilhosa de Deus, já houvesse
passado aquele tempo e a resposta estava chegando, positiva obviamente, pelas mãos de
um anjo. Balança a cabeça negativamente, rindo da sua imaginação. Acontecera com
ele o que tanto já criticara em muitos. Querer que Deus interviesse na natureza para
mudar o caminho natural da vida. Deus nunca faria isto, ele sabia. A ação de Deus se dá
a partir da nossa inteligência, vontade e braços.
Já no ônibus a caminho da faculdade, vê, dois bancos à frente, o senhor mais
velho, roupa bem gasta, lendo os anúncios de emprego do jornal já todo amarrotado.
Lembra do pai de Mônica. Na sua cabeça passam os milhões de “pais de Mônica”
também desempregados em todo o mundo. Fica imaginando as crises econômicas que
podem ter havido na Palestina na época de Jesus. Vê na sua imaginação Jesus
desempregado, andando pela cidade procurando trabalho para sustentar-se e também a
Maria e a José, já idoso.
Ao descer do ônibus abriu seu melhor sorriso para o senhor idoso com o jornal
de empregos amarrotado. Ele retribuiu parecendo meio assustado com aquele rosto
jovem lhe sorrindo à sua frente. Já caminhando vê que da janela o homem idoso bate
timidamente a mão para ele num até logo que Robson interpreta como uma bênção que
10
�o velho lhe dava. Sentindo-se abençoado, caminhava pensando nas duas coisas que
tinha por propósito fazer naquele dia, além das aulas a serem assistidas, é claro: a carta
em resposta a Tomás e uma visita à casa de Mônica.
“Meu caro Tomás,
A Paz!
Que sensação boa eu tive quando recebi sua carta. Muito obrigado por me ter escrito.
Ri muito com a sua constatação do meu conservadorismo (e também de todos os
cristãos, você diz na carta). Mas será que somos nós que somos conservadores mesmo?
Penso no meu caso. Você nem imagina o quanto mudei no meu conceito de ser cristão
a partir do momento em que comecei a estudar de forma mais séria esse tal de Jesus
Cristo que hoje tanto me apaixona e que tento seguir no meu dia a dia. Se eu fosse tão
conservador assim, teria ficado com aqueles conceitos velhos de café requentado
(gostei da expressão. Faz todo sentido, afinal, ninguém agüenta café velho e
requentado) que havia recebido da minha catequista quando criança. Não a culpo por
isto. Havia todo um contexto e da mesma forma que a roupa que usei na minha
primeira comunhão não poderia servir-me hoje, os conceitos infantis aprendidos então
também não me têm valia na vida presente. Como eu te disse na primeira carta não há
no mundo livros tão estudados como os Evangelhos e a ciência nesses últimos tempos
avançou muito trazendo à tona muita riqueza escondida no conhecimento de Jesus.
Você sabia que há autores sérios que até chegam a dizer que nós, homens de hoje,
podemos conhecer mais coisas a respeito de Jesus de Nazaré do que São Paulo
conheceu ao seu tempo?
Tomás, sua carta deixou-me feliz, como já disse, mas ao mesmo tempo preocupado. É
que ela aumentou em muito minha responsabilidade. Suas indagações são profundas e
acho que precisarei escrever um livro daqueles bem grossos para poder respondê-las
todas. Com toda certeza, não será apenas em uma carta que terei condições de explicarlhe tudo. Nesse aumento da responsabilidade, devo confessar-lhe uma coisa. Tomei a
liberdade de passar para a Mônica uma cópia da carta que lhe enviei. Conversava com
ela sobre as nossas discussões e da solução encontrada por mim de responder-lhe
através de uma carta. Ela pediu-me então para lê-la. Espero que você não fique
incomodado por eu ter feito isto. Só que ela se interessou também pelo assunto e quer
continuar participando da história, o que aumenta ainda mais a minha responsabilidade,
não é? Pediu-me inclusive pra ler a sua resposta. Caso me autorize, passarei a ela a sua
carta. Estou autorizado?
Vou lhe indicar uma bibliografia básica. Aguarde. Estou revendo alguns livros para
saber onde estão mais bem explicados os pontos que estamos discutindo. Vamos lá
então ao início das respostas.
Não só os Evangelhos, mas também toda a Bíblia é entendida e interpretada por muitos
cristãos como livros históricos. Tem gente até que ainda sai por aqueles montes do
Oriente procurando os resquícios da arca de Noé. Esses cristãos são chamados
fundamentalistas e acreditam em maior ou menor grau (alguns grupos acreditam
piamente) nos textos bíblicos tal qual estão relatados. Como eles não são livros
históricos, esse tipo de interpretação gera muitos problemas. Ao ler estes textos, nunca
11
�podemos deixar de levar em conta que foram escritos para homens de outras épocas,
com ciência totalmente rudimentar e inseridos em outras culturas, bem diversas das que
temos hoje em dia. Trazendo o texto literalmente para os nossos tempos, haverá sempre
o risco de estarmos tratando de coisas totalmente diferentes daquelas que o autor do
texto quis tratar.
Por isto, quando formos ler alguma coisa muito antiga, como é o caso da Bíblia,
devemos estar atentos ao que é dito pelo autor e também ao que ele quer afirmar com o
que está dizendo. Quando se faz uma leitura fundamentalista, se fica somente no que é
dito. Vou te dar dois exemplos. No primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, que por sinal
não foi o primeiro a ser escrito, está dito que Deus formou a mulher da costela de
Adão. Isto é o que está dito. O que com toda certeza o autor do livro do Gênesis quis
afirmar foi que a mulher tem tanta dignidade quanto o homem. Por isto ela é feita da
matéria mais nobre no ser humano, aquela situada ao lado do coração. Não se pode
esquecer que este foi um texto redigido, a partir de relatos orais mais antigos, para uma
sociedade que definitivamente não valorizava o papel feminino.
O segundo exemplo está no Novo Testamento, no livro chamado Atos dos Apóstolos.
Nele, Lucas, que é o seu autor, diz três vezes que Pedro entrou na casa de um homem
que curtia couro. O que ele quer afirmar com este dito é que com o cristianismo não
havia mais discriminação e que todos os homens têm a mesma dignidade perante Deus.
Repare que os trabalhadores de curtume eram desprezados pelos judeus daquela época.
Esta era considerada uma profissão muito impura e os judeus não podiam freqüentar as
casas das pessoas que não estivessem nem fossem puras.
Viu como é complicada esta questão de interpretação literal de textos Bíblicos? Espero
ter ficado bem claro pra você que eles não são definitivamente livros históricos. A este
respeito, vai aqui uma última consideração. Apesar de não ser histórica, há dentro da
Bíblia também história, como tem também poesia, literatura, lendas, épicos e outros
tipos de textos.
Muito interessante esta questão que você coloca do porquê não foram escritos antes os
evangelhos. A resposta é bem simples. Eles foram escritos quando as comunidades
cristãs sentiram necessidade deles. Quer dizer. Eles não foram escritos nem antes nem
depois do tempo. Foram escritos na hora exata. Os registros se deram quando as
primeiras comunidades nas quais viviam os evangelistas sentiram necessidade de terem
firmado de forma escrita os fatos a respeito da vida de Jesus e principalmente da sua
morte e ressurreição. Aliás, é interessante notar que a palavra evangelho, que como já
te escrevi, significa boa nova, não denota em princípio um relato escrito, originalmente
evangelho tem o significado de boa nova narrada oralmente.
Os estudos históricos e críticos dos evangelhos mostram muito claramente que nas
suas construções existem três camadas como que superpostas. Da primeira camada
fazem parte as palavras e feitos acontecidos antes da ressurreição de Jesus (prépascais). A camada seguinte já é uma camada onde se faz teologia. Nela a comunidade
faz a interpretação, explicação e eventualmente até a redução dos fatos e feitos de
Jesus. A terceira camada é a escolha do material a ser copiado, sua preparação dentro
dos critérios definidos pelo evangelista para melhor atender a seu objetivo específico e
suas redações até chegar ao texto que temos hoje. As segunda e terceira camadas são
pós-pascais, quer dizer, foram redigidas depois da Ressurreição, quando as
12
�comunidades, fazendo teologia, iam interpretando os fatos acontecidos durante a vida
de serviço de Jesus de Nazaré.
Além dos quatro evangelhos aceitos pela Igreja como canônicos, há vários outros
chamados evangelhos apócrifos, o que quer dizer ocultos. Esses textos foram todos
escritos já no século II e não têm, a não ser em algumas palavras que, com alto grau de
certeza, são originárias de Jesus, nenhuma novidade importante. Muitos desses
apócrifos são já influenciados, por estarem temporalmente bem distantes dos fatos, por
alguma fantasia a respeito da vida de Jesus.
Você ouviu dizer e a partir daí passou a acreditar que o túmulo vazio é prova da
ressurreição de Jesus. Está enganado. Nós cristãos não consideramos este fato como
uma prova de que Jesus tenha realmente ressuscitado. Várias coisas podem ter
acontecido para que o túmulo estivesse sem o sepultado e a mais plausível delas é que
alguém por algum interesse – e havia muitos interesses em jogo – pudesse ter ocultado
o corpo.
Para compreendermos a questão da ressurreição de Jesus, temos primeiro que definir o
que entendemos por fato histórico. Para nós, um fato histórico é aquele que podemos
datar, observar e registrar pelos nossos sentidos. Absolutamente, não era assim que
aquele povo e conseqüentemente os evangelistas entendiam este conceito. Fato
histórico para eles era simplesmente algo que tivesse impressionado as suas
sensibilidades, independente da questão de poder ou não ser observado pelos cinco
sentidos humanos, um sonho por exemplo. Toda vez que eles queriam, por exemplo,
mostrar a ação de Deus entre os homens, diziam da vinda de um anjo ou que os céus se
abriram. Para eles isso era fato histórico. Para nós, não passa de metáforas para
demonstrar um sentimento interno que não pode ser observado nem captado por meios
aceitos cientificamente.
O mesmo se dá com a ressurreição. No nosso sentido moderno ela nunca poderá ser um
fato histórico porque vai muito mais além dele. Nunca poderemos provar a ressurreição
por algum teste científico. Ao mesmo tempo, observando com os olhos da fé, podemos
dizer que nunca também poderemos provar que Jesus não ressuscitou.
A partir do que acabo de dizer, imagino que você deve estar se perguntando: O que é
então a ressurreição? A resposta é bem curta e ao mesmo tempo muito profunda: A
ressurreição é um ato de fé. Nenhuma ciência tem condições de prová-la. E por falar
em fé, está na hora de tentarmos dar uma resposta à sua indagação.
A fé cristã é uma opção pessoal que pressupõe sempre o risco de crer em algo que não
posso provar. É uma concordância ampla e irrestrita, no nível pessoal, com todas as
forças que tivermos em nosso corpo e espírito, na mensagem cristã e naquele que ela
anuncia. É ao mesmo tempo, ato de conhecimento, ato de vontade e de sentimento.
Uma confiança que inclui a aceitação como verdade. A partir dessa aceitação, começa a
acontecer de fato a experiência pessoal da fé. A experiência que a princípio tem que ser
pessoal deve ir se ampliando até que se viva de forma comunitária esta realidade de fé.
Ela não é só um ato de inteligência porque não é conhecimento teórico, não bastando
eu aceitar textos muito bem elaborados ou dogmas. A fé não é também só o esforço da
vontade. Conheço bastante gente, muito bem intencionada e que gostaria muito de crer.
13
�Gente que se esforça bastante para isto mas que por não ter a abertura interna
necessária para a ação de Deus em seu coração, não consegue acreditar. Nós todos
temos a graça de Deus para isto. O problema é o querer, o dispor-se, o abrir-se a ela.
A fé é um salto no escuro, um caminho que sigo apesar de não ter claras evidências,
mas que fique claro, vou repetir, ela não depende da minha vontade apenas. Posso ter
toda vontade do mundo, mas se não tiver a abertura interna para aceitar a graça de
Deus em mim, não significa que terei a fé. Muitos pensam também que a fé é só um
ato emotivo. Vão a uma celebração com muitos cantos, encenações, jogos de luzes, se
emocionam e saem dizendo, ah, eu agora tenho fé. Triste engano. A fé pode pressupor
até a emoção, mas vai também muito além disto. A noite escura de muitos santos
mostra esta evidência. Na aridez, sem nenhuma emoção eles mantêm viva a fé.
Veja só, Tomás, como não são simples muitas vezes as respostas que temos que dar às
dúvidas que temos em relação à Jesus, o Cristo. Para melhor entendermos a
ressurreição, tivemos que gastar um bom pedaço da carta para tratarmos da sua outra
dificuldade. A questão da fé cristã.
E por falar em ressurreição, só mais uma coisa. Muitos têm a idéia de que ressurreição
é a revivificação de um cadáver. Nada disto. Revivificação foi o que ocorreu, por
exemplo com Lázaro. Ele reviveu, mas depois morreu novamente, como todos nós um
dia morreremos. A ressurreição está num outro plano. Ressuscitados, nunca mais
morreremos.
Bem, você já deve estar cansado. Só agora reparo como está longa a carta. Dos seus
questionamentos ainda falta um ao qual quero dar uma atenção maior. Trata-se da
questão dos vários “jesuses” que vemos pregar nas Igrejas e que você muito bem
lembrou, são até muitas vezes conflitantes entre si. Pregam-se “jesuses” que em alguns
momentos estão bem próximos dos homens e em outros se colocam lá no horizonte,
longínquos, indecifráveis e impossíveis de serem modelos para serem seguidos por nós,
homens. O problema é que nós, os cristãos, acabamos criando um distanciamento entre
o Jesus histórico, aquele Jesus que andava pela Palestina e o Cristo da fé, o Jesus
glorificado a partir da ressurreição. Você nem imagina o quanto de confusão esse
distanciamento vem causando desde o início do cristianismo. Hoje mesmo na Igreja
podemos identificar várias dificuldades e conflitos gerados por este afastamento.
Iremos falar mais sobre essa distância entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, mas este
é assunto grave e grande. Por isto, considerando que se continuarmos com a resposta a
este outro tema nesta carta ela se tornará um livro, vou parando por aqui. Quem sabe
essa parada não seja até interessante para que você possa refletir com mais calma sobre
essas coisas que tento lhe explicar.
Um grande abraço e que O Pai de Jesus, a partir da sua abertura para o acolhimento,
lhe conceda a fé para que você creia que Ele, o Filho, é o nosso salvador.
Seu amigo,
Robson”
14
�Relida a carta no computador, Robson se dera conta do quanto estava cansado.
Escrever a segunda carta catequética o deixara esgotado. Mas estava feliz. Além do
cansaço veio uma fome imensa e imediatamente após ter enviado o email e desligado o
computador, a geladeira foi assaltada sem nenhuma dó nem piedade.
Após a oração da noite, ao fazer seu exame de consciência, colocou nas mãos do
Pai os amigos, Tomás e Mônica, as duas pessoas que receberiam aquela carta. Que elas
tivessem o coração bem aberto para aceitar as palavras que ele estava enviando a elas.
Dormiu refletindo no fato de que Jesus não nos deixou nenhuma palavra escrita. Além
de não ter escrito nada, Ele também não deixou para os seus discípulos nenhuma
orientação, que nos tivesse chegado, sobre como deveriam proceder para redigir os
evangelhos. Agradeceu ao Pai pela inspiração dada aos evangelistas para que
registrassem a vida de Jesus e reclamou também com Ele por não terem tido os quatro
escritores um maior cuidado em deixar registradas mais coisas a respeito dele. Ah,
como seria fantástico se eles nos tivessem deixado, nos moldes que temos hoje, a
“biografia autorizada de Jesus de Nazaré”, murmurou Robson já meio dormindo.
Ao fazer a barba pela manhã, tentava imaginar um método para deixar
registrados os sonhos. Tinha certeza, até pelo seu não muito comum bom humor ao
acordar, que tivera sonhos muito bonitos àquela noite, mas quem disse que era capaz de
lembrar-se pelo menos do assunto sonhado.
Teve vontade de ligar o computador para enviar cópia da segunda carta
catequética para Mônica e, por que não, verificar se já havia resposta de Tomás. Sorriu
do quão louco tinha sido esse seu pensamento. Não tinham se passado nem dez horas do
envio do correio e é claro que o Tomás não havia varado a noite lendo e respondendo o
seu email. Ponderou também com seus botões que não seria legal enviar a cópia de
Mônica sem a permissão do destinatário primeiro, Tomás, da carta. Vez em quando lhe
vinham dúvidas se tinha feito bem em ter dado cópia da primeira carta para a amiga.
Calçando os sapatos, guardados atrás da geladeira para que secassem durante a
noite, repara que ainda estão bem úmidos. Franze o rosto na constatação ao sair de casa
que continua chovendo. Hoje mais forte do que ontem. Pensa nos problemas que esta
chuva já de dois dias pode estar trazendo para tantas e tantas famílias que moram nas
encostas dos morros em volta da cidade. Pensa também na falta que aquela chuva está
fazendo em grande parte do país onde há seis meses não cai uma gota de água. Pensa
em pedir a Deus para que desvie a chuva da cidade para os campos, mas resolve mudar
o pedido.
Reza suplicando ao Pai para que dê sensibilidade aos cientistas e aos dirigentes
dos países desenvolvidos para que mudem seus planos de pesquisa, para que ao invés de
tecnologias de guerra e destruição eles apóiem e trabalhem em projetos voltados para o
aumento da capacidade humana de resistência às
intempéries do tempo e,
principalmente, para que estas tecnologias, na medida em que forem desenvolvidas,
sejam colocadas à disposição de todos. Principalmente daqueles mais pobres. Que as
novas tecnologias não acabem se tornando novas reservas de mercado e maior suporte à
opressão dos mais ricos sobre os excluídos da terra.
15
�Sai do ônibus correndo para não se molhar muito. Parece um dilúvio a chuva que
cai quando chega à universidade. Chega à portaria do prédio já bem molhado e
levantando a cabeça repara que há um bolo de gente à porta impedindo a entrada.
A faixa estendida enche-o de raiva e impotência: “Servidores da educação e
professores unidos na defesa dos seus salários. Estamos em greve”. Logo hoje, logo no
final do semestre. Seus planos de viajar nas férias vão por água abaixo. Com toda a
certeza a greve não terminaria em poucos dias. O governo já anunciara que não havia
dinheiro para se pagarem os salários atrasados do funcionalismo. No piquete repara nas
pessoas simples que o compõem e se sente envergonhado pela sua reação de raiva ao
perceber o movimento grevista. Vem à sua cabeça os direitos dos trabalhadores na
educação. No quanto têm sido explorados, no quão ridículos são os seus salários. Tem
vontade de pedir desculpas à mulher que com rosto indignado lhe passa um panfleto
explicativo do movimento, onde os grevistas afirmavam que estariam em vigília naquele
lugar até que houvesse uma solução para a greve.
-Bem, não há nada a fazer aqui. Todos os prédios estão fechados. Não há nem
um lugar para me proteger desse dilúvio, fala pra si mesmo entre os dentes. Corre então
em direção ao ponto do ônibus. O melhor que havia a fazer era voltar pra casa. -Robson!
Robson, lhe chama Mônica protegida sob a marquise da loja de brinquedos. Muda a
direção da corrida e vai até ela.
O sorriso que tem em seu rosto ao encontrar-se com a amiga não combina em
nada com os olhos inchados e aspecto cansado de Mônica. -O que houve com você?
Esta sua expressão de tristeza é pela greve? Pergunta Robson de supetão.
Mônica sorri sem graça e ali mesmo, em meio às pessoas que se escondem da
chuva, começa a lhe contar o quanto havia sido triste a sua noite. Ficara estudando até
bem tarde. Acordara em meio à madrugada parecendo ouvir alguém que chorava entre
soluços abafados. Pensou estar sonhando e até virou-se para o outro lado na cama, mas
o choro continuava e agora tinha certeza que era algo real e que também não era em
algum apartamento vizinho.
Levanta-se e chorando no sofá da sala ela encontra seu pai, o rosto escondido
pelas mãos. Mônica o abraça e pergunta o porquê de tudo aquilo. O pai então lhe fala do
desespero que sentia, da impotência e indignação que tinha por se sentir inútil, incapaz
de sustentar a família por não conseguir um emprego. Diz à filha que havia decidido dar
cabo a este sofrimento dando fim à sua vida, mas que ao chegar à sala, pensara muito
nos filhos e não tinha tido coragem de cometer o ato insano.
Abraçada, Mônica chora também com ele e em silencio agradece a Deus pela
vida do seu pai. Por ele não ter concretizado o suicídio. Lembra-se de Robson, da
conversa sobre Deus e das discussões com Tomás que tinham gerado a tal da carta
catequética. Tenta então lhe falar de Deus, do seu amor e do seu projeto de um mundo
mais justo, mais humano e onde todos pudessem se sentir irmãos uns dos outros e
tivessem condições para se realizarem, enfim, um mundo onde todos fossem felizes.
O pai que a princípio parecia não estar lhe ouvindo, balança fortemente a cabeça
e tentando conter o choro, lhe diz: -Minha filha, que Deus é este que permite tanta
injustiça? Que faz com que eu, um homem de 50 anos, em plena força e com muita
16
�competência e experiência, me sinta totalmente inútil e excluído da vida produtiva do
país, porque ninguém me dá um emprego? E você, minha filha, ainda vem me falar de
justiça e de amor desse Deus? Ah, minha querida Mônica, me sinto totalmente descrente
desse Deus. E veja que sempre acreditei nele. Fiz parte da Congregação Mariana, depois
integrei a Ação Católica e, já casado com a sua mãe, participamos da comunidade
católica do nosso bairro. Só que depois de tudo que estamos vivendo, me vejo
totalmente descrente e não quero saber mais de Deus. Ele é mau e injusto. Só olha e
cuida da felicidade dos ricos e poderosos. Deus não me ama. Acho que ele nem me
conhece.
Mônica, engasgada, não tinha argumentos para retrucar-lhe. Como lamentava
não ter permanecido na catequese após a primeira comunhão. Se tivesse feito isto, ela
não tinha dúvidas que teria agora os argumentos necessários para fazer ver o quão
enganado estava seu pai. Não conseguiu dormir o resto da noite e, na manhã, em meio à
chuva, ia pra faculdade, ansiando e torcendo por um encontro com Robson.
–Robson, que bom encontrá-lo. Você precisa me ajudar. Sei que com certeza
você me dará fatos e dados para que eu possa ajudar papai.Quero mostrar a ele que
Deus não o abandonou. Sabe, Robson. Eu sei que Deus ama muito papai. Ele não pode
tê-lo abandonado.
Depois de ouvir tudo isto, Robson sentia a cabeça rodar. Nunca se dera conta de
que esses problemas de falta de emprego pudessem estar tão próximos. Sempre lia e até
havia participado de discussões na escola a respeito do desemprego. Mas esta era
sempre uma realidade mais distante. Algo assim como uma coisa que só acontecia bem
longe, com gente desconhecida. Assunto de aula e de noticiário da televisão, mas nunca
assunto concreto, realidade viva e bem perto da sua tranqüila vida.
-Mônica, desde que você me contara esse problema que estava vivendo, estive
pensando em lhe fazer uma visita. Gostaria de ir até a sua casa e conversar com o seu
pai. O que você acha disso? Os olhos da moça brilhavam e aquele sorriso que
desconcertava Robson saltou no rosto de Mônica. -Você irá mesmo? Puxa. Que ótimo.
Acho que só você tem condições de ajudar o papai. Mamãe tem até tentado levar
algumas senhoras do grupo carismático que freqüenta para rezar lá em casa, mas sinto
que isto, além de constranger o velho, aumenta ainda mais a raiva de Deus que ele tem
alimentado. Olha, Robson, acabo de ter uma idéia. Como você estava vindo para a aula
e temos uma greve, posso imaginar que você não tenha nenhum outro programa agora.
Que tal então irmos lá pra casa? Não posso garantir que papai vá querer conversar com
você, mas acho que devemos tentar. O que acha da minha idéia? Vamos?
-Sim, Mônica. Excelente a sua idéia. Convite mais do que aceito. Vamos sim.
Tentarei conversar com seu pai. Ainda no ponto do ônibus, Mônica eleva seu olhar para
o alto e repara um sol ainda tímido querendo vencer as nuvens depois de três dias de
muita chuva na cidade. -Vê, Robson, até o tempo está mudando. Vê, está saindo
timidamente o sol. Acho que posso considerar isto como um milagre por você ter
aceitado o convite para ir à minha casa para conversar com meu pai. Robson sorri e fica
pensando no sentido do milagre na Bíblia. -Sim. Mônica pode pensar que este é um
milagre de Deus, ele fala baixinho. -O que foi que você disse? Mônica pergunta. De
novo fora pego falando sozinho. Encabulado, diz para ela que achava que sim, que ela
poderia pensar ter sido a mudança do tempo um milagre.
17
�-Pois é, ela continuava. -Nunca concordei com as pessoas que vêem os milagres
apenas como eventos extraordinários e até, ela diz, - cinematográficos. Para mim, os
milagres são essas coisas pequenas que vão acontecendo em nossas vidas nos mostrando
que Deus está caminhando ao nosso lado. Na concepção da minha mãe os milagres são
como que passes de mágica. Que tal você ir me falando, enquanto vamos até minha
casa, no conceito de milagre para você e também no que as pessoas no tempo de Jesus
entendiam por fato milagroso? Não tenho a menor dúvida de que esta vai ser uma
conversa tremendamente interessante.
-Mas Mônica, este não é um assunto simples. Ele exige uma preparação. Um
estudo que eu definitivamente não tive. -Robson, mas você nunca estudou este tema?
Duvido. -É claro que já o estudei, mas faz tempo isto e tenho medo de falar bobagem. Você fala como se eu estivesse lhe exigindo que você fizesse aqui e agora pra mim um
ensaio ou um tratado cientifico sobre os milagres. Deixa de ser bobo, Robson. Não
busco nada disto. Quero apenas que você me fale um pouco, livremente, sobre o tema.
A ‘tese de doutorado’ nós vamos deixar para outra ocasião. Disse rindo Mônica. -Está
bom. Falarei então do que me lembro, responde também com um sorriso nos lábios,
Robson, feliz por Mônica já não estar triste como estava quando a encontrou.
-Para falar sobre milagres nos tempos bíblicos nós temos que tentar primeiro
entender a mentalidade daquele povo. Ao contrário de nós que temos a concepção de
que os céus estão sempre fechados e que quando se abrem aí temos um momento
excepcional e extraordinário ao qual damos o nome de milagre, o povo judeu julgava
que os céus estavam sempre abertos ao homem. Lembre-se sempre, Mônica, que
estamos falando de um povo que vivia há mais de dois mil anos. Um povo que não tinha
nem um por cento da ciência que possuímos hoje. Para este povo, qualquer
manifestação da natureza que não pudesse ser explicada era considerada milagre.
-Veja que há no mínimo dois grandes riscos nesse tipo de interpretação. O
primeiro é que tudo que acontecesse e que as pessoas não soubessem explicar seria
necessariamente um fato milagroso. O segundo risco e muito mais importante, é que,
considerando como milagre tudo que não soubermos explicar, estaremos sempre
reduzindo o tamanho de Deus. -Como assim? Não entendi. Reduzindo o tamanho de
Deus? Explique-me isto, Robson.
-Vamos imaginar, Mônica, uma tribo indígena que não tivesse tido ainda acesso
aos avanços da ciência. Façamos de conta que esta tribo estivesse hospedada aqui na
cidade ontem à noite naquela hora dos raios e trovões. Se os tivéssemos perguntado o
que estava acontecendo, com toda certeza eles teriam nos dito que aquela era uma
manifestação de Tupã, ou seja, de Deus. Continuando com os índios, imaginemos agora
que eles estão tendo aulas de ciências. A partir dessas aulas eles aprendem o porquê dos
raios e trovões. Vêem então que não tem nada a ver com o divino. O que acontece então
é que o Deus deles foi diminuído. Isto acontece com muito cristão também. Muita gente
tem um tipo de Deus “tapa buraco” que não entendo.
-Estou entendendo, Robson. O que era antes um ato de Deus passa então a ser
um fato normal da natureza, plenamente explicado pela ciência. Estou envergonhada.
Acho que o meu Deus foi muitas vezes assim meio “tapa buracos”.
18
�-Pois é, Mônica. Este segundo risco é muito sério e é o que mais acontece para
muitos cristãos que jogam nas costas de Deus tudo aquilo que lhes é incompreensível. O
que vai acontecer então é que cada vez que conseguirem entender algum fato ou
fenômeno que antes consideravam como ato divino, terão diminuído o tamanho do seu
Deus. Essas pessoas correm o risco de terem um deus anão em suas vidas. Um deus
pequenino e que nunca vai preencher os corações dos que o buscarem.
-Quer dizer então, Robson, que para os homens do tempo da Bíblia os céus
estavam sempre abertos e que para nós, homens de ciência do século XXI os céus estão
sempre fechados? ---Bem, Mônica, como homens de fé, não podemos dizer que os céus
estão sempre fechados para nós. Ao dizer isto estaríamos negando a nossa fé, a
encarnação e a ação de Deus no mundo. Digamos que os céus continuam abertos, mas
num sentido mais sutil. No sentido em que você entendeu o milagre da saída do sol
como sinal da manifestação de Deus por eu ter aceitado o convite para ir até a sua casa.
-Robson, muito legal. Quer dizer então que o que eu entendia por milagre estava
certo?
-Sim, Mônica, mas vale ressaltar mais uma coisa. Isto não significa que Deus
não possa também realizar atos extraordinários e até, como você mesmo disse,
cinematográficos... Só que eles são muito raros, e sabe duma coisa que é muito
interessante nesses casos? É que os milagres de maneira geral só são vistos por quem já
tem pelo menos um pouco de fé. As pessoas que não acreditam irão sempre encontrar
uma desculpa, uma justificativa, uma explicação para o milagre para continuarem não
acreditando. Jesus sabia disto. Tanto que nos Evangelhos temos relatos dele se
recusando a fazer milagres porque sentia que seriam apenas para espetáculo.
-Lendo os relatos de milagres nos Evangelhos, Mônica, nós poderemos ver que
todos eles, sem exceção, foram realizados no sentido do serviço, do amor e da
misericórdia. Nenhum deles foi executado por Jesus apenas para demonstrar o seu poder
extraordinário. E isto é o que deve continuar importando para nós, hoje. Muito do
afastamento que vemos de muitas igrejas e conseqüentemente seus fieis de Jesus, se
deve com toda certeza, à questão de se tratarem os milagres de forma mágica e
alienante. Não é somente você, Mônica, mas também todo o povo de Deus que precisa
saber mais sobre o sentido dos milagres.
Mônica levanta-se rapidamente do ônibus e toca a campainha. -Vamos, Robson,
a conversa estava tão cativante que nem me dei conta de que já estávamos chegando.
Este é o nosso ponto. Vê aquele prédio azul na esquina? É lá que moramos. Ao sair do
ônibus andando rápido atrás de Mônica para não perder o ponto, ele reza pedindo ao Pai
o milagre de se fazer ouvido pelo pai da sua amiga. Ri pensando que ele, como filho,
pedia ao Pai por um outro pai. Por um pai em sofrimento.
Subindo as escadas – o elevador estava estragado mais uma vez, explicara
Mônica – ela lhe dizia que haveria ainda uma segunda missão a ser cumprida pelo
amigo em sua casa no futuro. Seria ter com uma, segundo ela lhe diz rindo,
representante do povo de Deus: a sua mãe, a conversa que acabaram de ter sobre a
questão dos milagres. -Nada disto, Mônica. Com esse nosso papo e o aprofundamento
que você fará sobre o tema, será você mesma quem deverá conversar com sua mãe a
este respeito. Sorriu pra si mesmo, pensando em duas coisas: no quanto achava correta a
atitude que acabara de ter, afinal era da amiga a responsabilidade de conversar sobre
19
�milagres com a mãe e, também, como teria sido bom ter assumido com ela o
compromisso de voltar à sua casa...
O pai está sentado exatamente como Mônica o deixara naquela manhã ao ir para
a faculdade. Os olhos dele, inchados e muito vermelhos, miram um ponto inexistente na
parede branca à sua frente.
-Olá pai. Este é o Robson, um grande amigo. A escola está em greve e como não
tínhamos nada para fazer, o trouxe para cá. -Prazer em conhecê-lo, disse sem que
houvesse alguma mudança em sua expressão. -O prazer é todo meu. Gosto muito da sua
filha e é realmente um prazer estar aqui agora em sua casa. O pai murmurou algo
ininteligível. -Esta manhã, à porta da faculdade, Mônica me contava sobre o senhor.
Lamento profundamente o que o senhor está passando. Já se vão dois mil anos da vinda
de Jesus propondo aos homens um mundo de mais justiça, paz e felicidade, mas,
infelizmente, continuamos cegos e surdos à sua proposta.
-Que mundo de paz e justiça que nada, rosnou o pai entre os dentes, ainda sem
manifestar qualquer mudança de expressão no rosto. -Esse Deus e o seu filho, Jesus, são
uns incompetentes. São uns fracos. Não quero ficar mais ouvindo isto. Já chega a sua
mãe, minha filha, pra ficar aqui no meu ouvido o dia todo cantando que “Cristo tem
poder, Cristo tem poder, aleluia tem poder...” Se Ele tivesse mesmo este poder que
vocês dizem que ele tem, eu e milhões de outros desempregados, não estaríamos na
situação em que nos encontramos.
Mais uma vez Robson se dava conta de que os problemas iam e viam tendo
como um dos seus pontos cruciais a questão do distanciamento entre o Jesus histórico e
o Cristo da fé. Os homens pregavam muitas vezes um homem mágico que com seus
superpoderes iria resolver com intervenções divinas todos os nossos problemas.
Com a voz bem firme e olhando dentro dos seus olhos, para que ficasse um tanto
chocado e saísse daquela letargia, Robson lhe disse: -Eu também não acredito nesse
Jesus super-homem do qual o senhor me falava.
Foi grande o susto do pai ao ouvir aquelas palavras fortes de Robson. Falara algo
que imaginara fosse chocar o amigo cristão da filha e recebera uma resposta que lhe
causara um tremendo impacto. -Como assim não acredita? Você não é cristão? Não é o
amigo católico de Mônica?
-Sim, sou cristão, o amigo católico da sua filha e, também como o senhor, não
acredito nesse tipo de intervenção divina em que Jesus Cristo usaria de superpoderes
para resolver os problemas que nós homens criamos. Acredito sim em Jesus Cristo, mas
definitivamente não acredito nesse Jesus “quebra galhos”. O Jesus Cristo em quem
acredito é aquele que nos deixou as pistas, o mapa para resolvermos os nossos
problemas. Mas ele deixou bem claro também que somos nós, os homens, quem
devemos trabalhar para resolvê-los.
-Há no Novo Testamento duas passagens que nos mostram com clareza isto.
Depois, valerá a pena o senhor procurá-las e lê-las bem devagar. A primeira está no
Evangelho de Marcos (Mc. 4, 1-11) e trata das tentações de Jesus. Ele está no deserto e
20
�nele é tentado três vezes. Apesar de serem três as tentações, podemos resumi-las em
uma só. No poder.
O que o demônio queria era que Jesus abrisse mão do caminho mais difícil, o caminho
do serviço aos homens, principalmente aos mais pobres e excluídos e partisse para a
estrada mais curta e fácil. O caminho do poder. No Evangelho fica muito clara qual é a
opção de Jesus. Ele opta pelo amor-serviço abrindo mão de poderes mágicos que
poderiam até nos livrar da dor e de problemas, mas não estaria levando em conta a
nossa liberdade e responsabilidade.
-A segunda passagem está nos Atos dos Apóstolos (At. 1,9-11) e trata da
ascensão de Jesus aos céus. Neste texto, Jesus, após a sua ressurreição, sobe aos céus e
os seus discípulos ficam olhando para o alto tentando ainda vê-lo. Aparece então um
anjo. É interessante lembrar que na Bíblia os anjos são sempre mensageiros de Deus.
São aqueles que trazem alguma mensagem importante para a qual devemos estar atentos
e lhes diz: “-Por que vocês estão aí olhando para o alto, homens da Galiléia? Ele não
está mais aqui.” O anjo queria dizer a eles que agora o jogo era outro. Que a partir
daquele momento – e conseqüentemente, até hoje – os braços e as mãos de Jesus somos
nós, os seus seguidores.
-É este o Jesus em quem eu acredito. É um Jesus que não aliena. Um Jesus que
me mostra a responsabilidade e o trabalho a ser feito.
Os olhos do pai de Mônica estão ágeis. Seu rosto agora está expressivo. Ele
estava gostando daquele amigo da filha. O que aquele rapaz lhe dizia fazia todo sentido.
Era muito bom ouvir isto. Mônica, olhando seu pai animado, tão diferente daquele
homem cabisbaixo e derrotado dos últimos tempos, pensava. Meu Deus, que alegria.
Para o meu pai o Robson está sendo um anjo no sentido bíblico que ele explicara a
pouco. Robson, um anjo do Senhor. Em um único dia era o segundo milagre que ela
vivia...
E Robson continuava. -Eu não creio num Jesus que vem para acabar com a nossa
dor. Ele não veio acabar com ela, mas dar um sentido maior a toda dor humana. Quem
têm que acabar com a dor somos nós. Ouvindo isto, o pai de Mônica pensava como
estaria diferente o mundo de hoje caso os homens, ao invés de buscar guerras e poder,
tivessem investido na paz e na cura das dores. Aliás, ele continuava pensando, é muito
interessante, apesar de que trágico e triste, constatar que em relação às dores e doenças
humanas, os grandes investimentos feitos pelos cientistas e grandes laboratórios,
contemplam principalmente aquelas dores e doenças que acometem os mais ricos. Nesse
mundo capitalista, doença que só dá em pobre fica para segundo plano, para escanteio.
Conversaram por muito tempo. Conversaram não. Robson falava e Mônica e seu
pai ouviam atentos. Ele lhes falava de um Jesus mais humano, mais solidário, muito
mais misericórdia. Um Jesus que era amor absoluto e que se colocava preferencialmente
ao lado do pobre e excluído. Por ter sentido na pele nesses dois últimos anos a exclusão
social, o pai de Mônica se sentia muito próximo a esse Jesus. Era como se o estivesse
reconhecendo nas palavras que lhe vinham de Robson.
Hora de ir embora e Robson ao despedir-se do pai, ainda tem tempo para um
último recado, ou, pensando melhor, uma última mensagem. Falou-lhe então que ele
não podia perder nunca a esperança. Já saindo do apartamento, Robson volta-se e
21
�conserta. -Esta não é uma última mensagem minha. Este recado é de Jesus de Nazaré.
Este Jesus que lhe apresentei, aliás lhe reapresentei, porque tenho certeza de que já o
conhecia. O senhor estava apenas um pouco esquecido dele.
Ao se despedir, Mônica o abraça forte. Suas lágrimas molham o seu rosto. -Sabe,
Mônica, o que de melhor podemos fazer agora por seu pai é rezar. A gente nem imagina
a força que tem a oração. Foi Jesus mesmo quem nos ensinou isto. – é mesmo Robson?
O que dizia Jesus a respeito da oração? Ele dizia que devemos pedir. Que o Pai sempre
escuta e atende ao pedido dos seus filhos. Ele até nos ensinou uma oração. Você vai ter
uma surpresa, porque na sua vida já ouviu e rezou muito esta oração que o próprio Jesus
nos ensinou. Procure em Lucas, capítulo onze, versículos de um a treze. Lá você vai
encontrar, nas palavras de Jesus, ditas através do evangelista, isto que estou lhe dizendo.
Dia bonito na sua volta à casa. O sol forte já secara das ruas as poças d’água. A
cabeça gira a mil por hora. Como fora bom ter ido à casa de Mônica. Não só por ter
podido ajudar ao seu pai dando-lhe força e ânimo, mas também por ter podido ficar ao
lado da amiga. Como era bom estar com Mônica ele ia pensando.
Chega em casa mais cedo do que de costume. O cheiro gostoso de carne assada
que vem da cozinha lhe traz a lembrança da fome no mundo. A notícia de que só na
África mais de quinze milhões de pessoas iriam morrer durante o ano caso as nações
ricas não fizessem nada o chocara tremendamente. Como nos tornamos insensíveis a
este tipo de notícia. Ficamos sensibilizados com a morte de uma, duas, algumas poucas
pessoas, mas quando falamos em números absurdos como este, parece que há uma
mudança de figura. É como se esquecêssemos do homem por trás da notícia e
passássemos a dar valor apenas ao dado estatístico.
Ao ligar o computador salta aos olhos o ícone piscando incessantemente do lado
esquerdo da tela, com o aviso de que há nova mensagem na caixa de entrada. É visível a
ansiedade de Robson ao tentar abrir o correio eletrônico. Por duas vezes ele digita a
senha de forma incorreta.
Além de uma falsa mensagem pedindo ajuda para uma criança venezuelana com
câncer no cérebro - Lembra ser esta a terceira mensagem com este mesmo teor recebida.
Nelas só são diferentes as nacionalidades das crianças. A primeira vez era uma criança
brasileira. Na segunda mensagem recebida a criança já era Argentina. Agora vinha a
mesma mensagem com a garotinha venezuelana. Sorri da constatação que faz através
dessas três mensagens que circulam pelo mundo através da Internet. Não é que esse tipo
de câncer cerebral que circula pela grande rede eletrônica tem uma visível predileção
por atacar as nossas pobres crianças latino-americanas?
“Meu caro amigo Robson,
Imprimi a sua carta e tenho ido bem além da sua leitura. Elas (não só essa, mas também
a primeira) têm sido alvo de um estudo sistemático de minha parte.
Tem sido para mim uma grande alegria essas descobertas (e também redescobertas)
que você tem me proporcionado.
22
�Tivemos outro dia, a Marta e eu, uma conversa muito interessante sobre as suas cartas.
Ela não conseguia acreditar que houvesse alguém jovem e que não fosse padre, que
pensasse e seguisse Jesus nesse mundo de hoje, mais ainda, que O seguisse de forma
não alienada. Mostrei então as cartas pra ela e não é que a Marta quer também
conversar com você a respeito de Jesus?
Não sei se você sabe, mas ela, a minha namorada e paixão, é comunista de carteirinha.
Segundo a Marta, Jesus foi o primeiro grande revolucionário socialista do planeta. Só
não obteve sucesso em suas pretensões de subverter o regime porque as massas não
estavam preparadas para recebê-lo. Ela diz que o grande erro de Jesus foi ter vivido
alguns séculos antes do povo estar conscientizado da sua força para fazer a mudança.
O que virá nessa nova carta? Estou, aliás, estamos porque como já escrevi aí em cima,
a Marta também já participa desse nosso estudo comunitário. Esperamos ansiosamente
pelo que você nos dirá sobre a questão do distanciamento entre o Jesus histórico e o
Cristo da Fé. Cada vez que leio as suas cartas maior fica a minha curiosidade em saber
o que pode ter causado este distanciamento entre os seguidores de Jesus e que
conseqüências causou essa separação. Por falar na Marta, ela manda lhe dizer que
gostou de ter sido citada, principalmente porque você escreveu o nome dela dentro
duma explicação sobre o amor. Ela diz que concorda totalmente com você. É
totalmente impossível amar alguém de forma somente teórica.
Nenhum problema, Robson, quanto à disseminação das cartas para outros interessados.
Afinal, as cartas são suas, além disso, sou também da opinião de que quanto mais
pessoas estiverem participando dessa conversa epistolar, bem maior será a riqueza
gerada pela discussão. Pelo que estou notando, já temos além de mim, a Marta e a
Mônica também participando das leituras. Daqui a pouco não serão mais cartas, mas
circulares... Quem sabe já não seria a hora de você pensar em formar um grupo de
estudo. Eu sei que você gosta muito de escrever cartas, mas será muito proveitoso
também para nós quatro estarmos conversando, ao vivo e a cores, sobre estes temas.
Pense nisto com muito carinho.
Um grande abraço,
Do Tomás.”
Meu Deus! Exclamou Robson. Estas cartas catequéticas estão aumentando a
minha responsabilidade. Será que estou à altura para estar tratando dessas coisas tão
sérias e sublimes? Na sua oração diária, ele coloca nas mãos da Trindade as três pessoas
que participam do círculo das cartas catequéticas. Procura rezar para cada uma delas.
Cada qual com seus problemas, suas angústias, suas crenças e também as suas
descrenças. Deu graças ao Pai por ter-nos feito tão diferentes uns dos outros. Terminada
a oração permaneceu em seu pensamento a questão da humanidade de Jesus. Nesse dia,
como também nos últimos tempos, estava rezando trechos do Evangelho de Marcos.
Como o teólogo, ele escrevia no caderno de orações: ‘tão humano assim, só podia ser
Deus’.
23
�Como será escrever esta terceira carta catequética para pessoas tão diferentes?
Robson pensava nessa dificuldade enquanto preparava o envio da segunda carta para
Mônica. Agora já tinha a autorização de Tomás para fazê-lo. Como sabia que o
computador da casa de Mônica estava quebrado, ela só teria acesso à carta, caso ele a
mandasse por meio eletrônico, quando acessasse o computador da escola, o que não iria
acontecer em curto prazo, devido haver sempre grandes filas para uso dos computadores
escolares. -Nada mal entregar a carta em mãos, falou para si mesmo, em voz alta,
enquanto imprimia o texto. Na margem da primeira página escreveu um pequeno bilhete
para a amiga. Ao reler o bilhete, reparou ter escrito um: “querida Mônica” no
endereçamento. Sorriu novamente balançando positivamente a cabeça...
O foco da terceira carta continuará sendo Tomás e a questão Jesus histórico e o
Cristo da fé, definiu consigo mesmo. Eventuais questões trazidas pelos demais
recebedores das cartas catequéticas poderão ser acrescentadas - Principalmente se
vierem de Mônica, se pegou refletindo. -Está decidido. Falou pra si mesmo, em voz alta,
novamente. Achou também que para escrever a terceira carta não seria preciso esperar a
resposta de Mônica, já que só agora ela teria acesso à carta que Tomás e Marta já
tinham lhe respondido.
“Meus caros irmãos, Tomás, Marta e Mônica”,
A Paz de Jesus esteja com vocês!
Peço permissão para iniciar esta carta com uma oração. Faço isto apesar de saber que
vocês não têm por hábito estar fazendo orações. Entre vocês há gente que nem acredita
nelas. Ainda mais, fazer uma oração quando se está escrevendo uma carta. Mas é
exatamente pelo motivo de lhes estar escrevendo – e também pelo tema da nossa carta que quero fazer com vocês esta oração.
‘Senhor Jesus, somos quatro jovens que pretendem conhecê-lo mais e melhor. De
formas bem diferentes, todos nós nos vemos atraídos por seus ensinamentos, sua
história, seu comportamento, enfim sua vida e morte. Que ao final dessa caminhada
rumo a um conhecimento mais profundo da sua pessoa, todos nós quatro possamos
responder com os olhos da fé que você, Jesus, é o Messias, o Ungido, o Cristo, o
Senhor, o Filho de Deus enviado ao mundo. Que possamos responder enfim que você é
o nosso Salvador. Amém.’
Meus grandes amigos, como havia lhes falado, nesta carta quero lhes trazer um pouco
da questão do Jesus histórico e do Cristo da fé até chegarmos aos problemas gerados
pelo distanciamento que, nós os homens, provocamos entre um e outro. Para iniciarmos
esta conversa, vale voltar à primeira carta. Lembram-se quando eu lhes dizia que os
Evangelhos foram escritos bem depois da morte e ressurreição de Jesus? Este fato,
como já veremos, tem grandes e interessantes conseqüências sobre o que quero lhes
contar. Vamos então a eles.
Nesses últimos dias eu assisti na televisão a um grande documentário feito sobre a vida
de um famoso astro do rock falecido há alguns anos. Neste filme fico sabendo de
24
�muitos fatos sobre a sua infância, adolescência e juventude. As cenas me mostravam o
astro quando ainda era criança cantando na sua escola infantil, seu primeiro grupo
musical ensaiando na garagem da família, o primeiro show... As imagens são muito
claras e não mentem. Vendo-o nas fitas daquele tempo constato um fato banal mas
interessante: ele não tinha uma voz ou uma musicalidade especial. Cantava com os
acertos e erros – principalmente os erros - de qualquer criança ou adolescente normal.
Se não soubesse de antemão de quem se tratava, nada naquelas fitas me faria imaginar
que aquele adolescente iria se transformar no grande astro de alguns anos depois.
Imaginemos agora que o nosso astro do rock tivesse permanecido incógnito e não
tivesse feito sucesso e se transformado no ídolo de milhões de jovens em todo o
mundo. Não houvesse se profissionalizado, tendo buscado até outra profissão para
sobreviver. É claro que nesse caso nada do que vi no documentário sobre a sua vida
teria sido mostrado. Afinal, o filme foi feito porque havia um grande interesse de todos
os fãs em conhecer a vida, toda a vida, do seu famoso cantor preferido. Uma cena desse
filme que muito me chamou a atenção mostrava a entrevista feita com o casal de velhos
que era vizinho do nosso herói. Nessa entrevista, eles eram só elogios para a música
feita pelo rapazinho em sua garagem, anos atrás.
Guardadas as devidas proporções e com o cuidado que temos que tomar por estarmos
tratando de fatos acontecidos há dois mil anos e que foram narrados em outra cultura
totalmente diversa da nossa, foi um fato semelhante a este que aconteceu com as
narrações da vida de Jesus. Elas foram construídas como o foi a vida do cantor de rock.
De trás para frente. Explico como se deu isto.
Já sabemos que o evangelho mais antigo foi o de Marcos. Ele o escreveu em torno do
ano sessenta. Portanto uns vinte a vinte e cinco anos depois dos últimos acontecimentos
narrados. Marcos inicia o relato já nos contando da pregação de João Batista, nos
prenúncios da vida pública de Jesus. Em seu evangelho não há a menor menção à
encarnação, nascimento e infância de Jesus. Nessa época, as comunidades para as quais
Marcos escrevia (e tentava atender seus anseios) não demonstravam interesse em nada
além do que fosse a vida pública de Jesus, sua paixão, morte e ressurreição.
Aos poucos e à medida que caminha o tempo, vai acontecendo esta necessidade devido
ao interesse das comunidades. Vejam que o segundo evangelho escrito, o de Mateus, já
vem nos contar também da concepção, nascimento de Jesus e fuga para o Egito da
Sagrada Família. Há então, em relação a Marcos, um aumento da curiosidade, podemos
chamar assim, em relação a um conhecimento maior de quem havia sido afinal esse
Jesus que nós seguimos. Isto apenas alguns poucos anos depois do primeiro evangelho.
Enquanto Marcos nada nos conta a respeito de fatos ocorridos antes da vida pública,
Mateus já faz um recuo no tempo ao começar a fazer o seu relato.
Neste recuo é interessante vocês notarem a genealogia de Jesus colocada logo no início
da sua narrativa. Na genealogia, Mateus leva a ascendência de Jesus até Abraão. Isto
porque ele era judeu e escrevia principalmente para comunidades constituídas por seu
povo, o que vem mostrar o cuidado dos evangelistas em atender às necessidades das
comunidades para as quais escreviam. Não tenho dúvidas que se houvessem sido feitas,
com insistência, para Marcos, perguntas a respeito da infância e concepção de Jesus,
com toda certeza, ele teria procurado informar-se para colocar esses fatos no seu relato.
25
�Vamos reparar agora o terceiro evangelista: Lucas. Ele recua ainda mais no tempo.
Além de nos fazer um relato maior do que Mateus sobre a infância de Jesus, vai mais
além e para provar que Jesus não era só dos judeus – Lucas escrevia para cristãos de
origem helênica - ele leva a genealogia de Jesus até Adão, provando-nos assim que Ele
veio não somente para o povo judeu, mas para toda a humanidade.
Como o interesse sobre a vida de Jesus continuasse crescendo e já fosse ainda maior,
João, o quarto evangelista, que escreveu seu evangelho em torno do ano cem, faz um
mergulho ainda mais profundo rumo às origens de Jesus. Ele vai até a eternidade para
localizar lá as raízes de Jesus, afinal, como Ele é também Deus, já tinha existência
desde o princípio. Isto é o que João quer nos dizer quando no início do seu evangelho
nos diz que “no princípio era o verbo...”.
Notaram que interessante? Na medida em que foi passando o tempo e crescia o
interesse sobre aquele homem que as comunidades aos poucos iam descobrindo que era
também Deus, os evangelistas foram aprofundando seus relatos para nos mostrar –
lembrem o que já dissemos: Os evangelhos não são relatos históricos no sentido que
temos de história hoje – que “verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (Mc
15,39). Voltando ao vídeo contando a vida do artista famoso, cá comigo mesmo, fico
pensando se os vizinhos idosos do roqueiro, mostrados em entrevistas altamente
elogiosas à música que ele produzia quando adolescente na garagem da sua casa com
seus amigos, teriam a mesma avaliação positiva caso ele não tivesse obtido sucesso
posteriormente.
Pois é. Quanto mais distante do tempo em que Jesus vivia, mais os homens foram
buscando conhecê-lo. Isto gerava um problema, porque as pessoas que haviam
convivido com ele iam morrendo e os relatos, passando de boca em boca, iam sendo
interpretados pelas primeiras comunidades. Essas interpretações iam modificando os
textos, sem, é claro, fazer com que perdessem seu espírito. Eles, os participantes das
comunidades, se sentiam plenamente autorizados a fazer isto pelo Espírito do
Ressuscitado que agia neles. Podemos dizer que esses homens de fé, juntamente com
os evangelistas e demais autores do Novo Testamento, foram com toda certeza nossos
primeiros teólogos. O que passou a acontecer então foi que os aspectos gloriosos, quer
dizer, tudo que acontecera após a ressurreição, foram se tornando tão grandes que
passamos a deixar de lado os aspectos reais do seguimento de Jesus de Nazaré.
À medida então que se ia ficando distante no tempo do Jesus histórico, foi-se saindo
dos aspectos concretos da sua vida para aqueles mais abstratos, mais teologais.
Aspectos estes interpretados, como vimos, pelos primeiros teólogos do Novo
Testamento, à luz da sua ressurreição. Acontece isto por exemplo com o próprio nome
de Jesus. Antes conhecido como Jesus, um nome próprio, que designa uma pessoa
concreta, que descreve uma vida e uma morte concreta, passa a ter acrescentado ao seu
nome um predicado: Cristo, que em si mesmo possui um significado genérico.
Significa o ungido. Vão então surgindo os títulos para Jesus como que para nos dizer
que ele não havia sido um homem a mais. Era um homem especial. Tão especial que
ressuscitara. Tão especial que só podia ser o Filho de Deus.
O que temos então é que o Jesus concreto, o Jesus de corpo e sangue, vai sendo
transformado apenas no Cristo glorificado pela sua ressurreição. Esta transformação é
que fará com que muitos nas Igrejas percam pouco a pouco o sentido tão escandaloso e
26
�louco da cruz. Muitos irão até se esquecer dele, ou tratá-lo como um fato comum, algo
corriqueiro que não assusta nem causa impacto, como as estatísticas da fome no mundo
que estamos acostumados a ler.
Tanto ou mais importante que esse esquecimento do escândalo da cruz é que esse
aumento da distancia do Jesus histórico fará também com que haja uma separação da
vida de Jesus do seu tempo de glória pós-ressurreição. Essa separação é, como já
veremos, tremendamente empobrecedora e maléfica para o seguimento de Jesus de
Nazaré, homem em tudo igual a nós, com exceção do pecado, como nos ensina a carta
aos Hebreus.
Não quero que pensem que com o que acabo de lhes dizer estou querendo apenas
valorizar a vida de Jesus até a sua morte e ressurreição. Nada disso. O que quero passar
para vocês é que não dá para separar o Jesus histórico do Cristo da fé. O Jesus é o
Cristo. Para chegar até a sua glorificação, ele passou pela etapa humana, quando foi o
servidor por excelência do povo, principalmente dos mais simples e excluídos.
Só podemos realmente conhecer o Cristo se tivermos antes caminhado com Jesus.
Como homens ainda vivos, conseqüentemente ainda fora da glória de Deus, só
podemos seguir no nosso dia a dia o Jesus de Nazaré. O Cristo, só poderemos segui-lo
de fato quando, também como Ele, tivermos passado pela morte e também, como Ele,
tivermos ressuscitado. Não são duas pessoas, ou um homem e um Deus separado. O
crucificado é o ressuscitado. Jesus é homem e Deus, como nos ensina o Credo.
Com essas coisas que estou lhes escrevendo, chegamos finalmente ao ponto principal
daquela discussão inicial que tive há dias com Tomás e que de forma diferente
continuamos aqui neste espaço. Você ainda se lembra, amigo? A questão é que Tomás
dizia que nós, os cristãos, havíamos criado dois mitos. O mito de um homem e o mito
de um ressuscitado. Nas palavras quentes da discussão, Tomás dizia serem esses dois
mitos o mito do guru e o do fantasma. Bem, amigo Tomás, até pela sua resposta à
minha primeira carta e sua participação nessa nossa caminhada rumo ao conhecimento
– e seguimento, creio que posso completar agora – de Jesus, tenho certeza que você já
reformulou os termos que, para mim, soaram bem duros, ditos por você naquela hora.
Poderíamos dizer, Tomás, que você atirou no que viu e acertou no que não viu. Duma
forma não muito elegante, e pela qual eu lhe perdôo, você nos trouxe um problema que
muito tem incomodado os cristãos desde há muito tempo, desde os primórdios do
cristianismo. Uma questão que, também como cristão, me preocupa muito e da qual,
algumas vezes, tenho tratado nessas nossas conversas. Estou falando novamente dos
problemas que acontecem na Igreja sempre que há um distanciamento entre o Jesus
histórico e o Cristo da fé.
Caramba, já são duas horas da madrugada. Esta carta já está muito grande e amanhã
pretendo acordar bem cedo. Quero aproveitar que não teremos aula para fazer minha
caminhada matinal. Havia me proposto a fazê-la pelo menos três vezes por semana e
não tenho sido nem um pouco fiel a esse compromisso assumido comigo mesmo. Além
do vasto assunto que há para vocês lerem nesta carta, tem também a necessidade de
vocês procurarem dar uma lida nos inícios dos quatro evangelhos. Vejam neles os
aspectos que procurei observar com vocês aqui na carta.
27
�Antes de terminar, um recado para a Marta: Não sei, amiga, se você tem os Evangelhos
em casa. Caso não tenha, me mande um email que terei prazer em lhe enviar um
exemplar emprestado. Estou achando muito legal ter uma comunista interessada
também em conhecer Jesus. Você sabia, Marta, que há, principalmente na Europa,
grupos marxistas que estudam o Jesus histórico? Eles buscam encontrar em Jesus uma
das raízes do marxismo atual. Segundo disse um deles, ‘ser radical é ir até as raízes e
Jesus de Nazaré é uma dessas raízes que têm que ser estudadas e conhecidas’. Espero
que você vá mais além ainda das raízes. Que você consiga ir ao espírito dEle. Eu
espero, amiga.
Meus caros. É isto. Se vocês acham que vão se ver livres de mim, estão enganados.
Dentro de três dias estarei enviando nova carta continuando esta nossa conversa.
Vou dormir. Fiquem em paz e um grande abraço a todos,
Robson.”
Acorda tarde. Ninguém em casa. Todos já saíram para seus afazeres normais.
Resolve ligar para a empresa. Quem sabe já não teriam uma resposta para a seleção dos
dois estagiários. Quem sabe ele não seria um dos escolhidos. O telefone da área de
recursos humanos toca três vezes e a ligação cai automaticamente na caixa postal. Faz
uma careta. -Odeio caixas postais. Odeio falar com máquinas, diz em voz alta. Pega o
jornal. A manchete não é nada animadora. As ameaças dos americanos - o império
romano do Século XX - aumentaram. A possibilidade de que haja uma nova guerra no
Oriente avança em velocidade ainda maior do que a inflação. Liga de novo e a voz da
secretária lhe dizendo bom dia soa mecânica em seu ouvido.
-Quer dizer que fui escolhido para o estágio? Que notícia boa você me dá nesta
manhã! Muito obrigado. Ah, ainda tenho que fazer exames médicos? Sem problemas.
Estarei aí às onze horas para o exame.
Ao desligar o telefone está cantando. Pensa em ligar para Mônica e lhe contar a
excelente notícia que acabara de ter. Contém-se. Lembra que há mais de um ano ela
procura por um estágio sem consegui-lo. Só há pouco conseguiu um emprego noturno e
temporário. Pensa também no seu pai. Reza por eles enquanto caminha para o quarto
para aprontar-se para ir aos exames médicos na empresa.
Mas ainda é cedo quando sai de casa e como faz um tempo bom, resolve ir
caminhando. Ao passar pela praça repara que há um grupo de adolescentes e crianças
em volta do banco sob a amendoeira. Chegando mais perto vê que estão cheirando cola
e fumando pedras de crack. Sente um aperto no coração. São crianças ainda e já
envolvidas com as drogas. Em seus exames de consciência diários tem se cobrado algo
mais concreto em relação a algum trabalho com crianças e jovens. Sente-se alienado,
incapaz e pequeno frente à realidade dura do mundo.
Continua o caminho, mas a cena da praça caminha com ele, presa em suas
retinas. Quantas vezes, para nos desculparmos, nós os julgamos e os tratamos como
28
�marginais, como se houvessem feito uma opção pela vida que vão levando. Não. Eles
não têm toda a responsabilidade pelo que fazem e vivem . Balança a cabeça. Não
podemos culpá-los. Afinal, que perspectiva de uma vida digna nós lhes oferecemos? Há
alguma possibilidade de mudança posta pela sociedade à disposição para que eles a
possam abraçar? Tem vergonha por ser da classe média. Dessa parte da sociedade que
devia ter algo a lhes oferecer. Um jovem privilegiado a caminho do seu estágio. E isto
num país onde tanta gente não consegue nem imaginar ou mesmo sonhar com um futuro
digno.
Pensa em Jesus. Tenta imaginá-lo na idade dos drogados da praça. Reza pedindo
a Maria e José por eles e pelos seus pais que não tiveram como educá-los, abandonandoos. Com toda certeza, os pais de Jesus tinham sido muito especiais na educação dele.
Disto não havia dúvidas. Era só observar a sua vida. Jesus, um homem equilibrado,
amoroso, amigo, sempre servindo, justo, alegre, pacificador... Vem à cabeça mais uma
vez, a frase do teólogo: ‘tão humano assim, só podia ser Deus’. Maria e José deviam ter
muito orgulho dele. Afinal, foram eles que o educaram. Será que aqueles meninos já
ouviram falar de Jesus? Perguntou quando já chegava ao portão principal da empresa.
Tomou um susto ao ouvir a pergunta do médico: “Você consome drogas?” O
médico deve ter notado seu susto. Será que ele está pensando que sou usuário? Pensa no
pai de Mônica. Sem emprego e desesperançado. Como ele está hoje? Recorda que ele
cheirava a álcool quando se despediu dele. Sorri pensando no mau exemplo de Jesus ao
ter transformado água em vinho em Caná da Galiléia. Mas este não deve ter sido um
milagre histórico de Jesus, lembra de que havia lido, como que para justificar. Mesmo
que tenha sido, não tem nada a ver. Nós é que não sabemos nos controlar. A bebida não
é má em si... Sorri mais ainda achando um grande absurdo o que estava pensando
enquanto aguardava o laudo médico. A secretária da voz mecânica avisa-o com voz
humana e um sorriso automático que estava tudo certo e ele deverá iniciar o estágio na
próxima semana.
Resolve ir à faculdade mesmo sabendo que a greve ainda continuava.Havia
sentido vergonha por nem ter pensado em prestar solidariedade aos grevistas. Era
mesmo um alienado. Ia até lá para perguntar a eles se precisavam de alguma ajuda. Para
saber se estavam precisando do seu apoio. Depois iria pra casa. Semana que vem seria
vida nova. Por isto, pretendia não deixar compromisso para adiante e queria escrever a
nova carta catequética nessa tarde. Essa deve ser a última. Creio que com ela terminarei
a conversa com o Tomás, foi pensando. Não há ninguém na porta da faculdade. Parece
feriado e não que há uma greve na qual todos têm que estar mobilizados. Chega em casa
pensando na inconstância humana. Na incapacidade que temos em mantermos os
objetivos, ideais e os seus conseqüentes compromissos.
Lembra que aconteceu coisa semelhante com Jesus. Os apóstolos afirmaram
muitas vezes que nunca o deixariam. Como os grevistas que diziam em seu panfleto que
estariam em vigília vinte quatro horas por dia até o final do movimento, os discípulos
também traíram seu compromisso. A chamada crise da Galiléia havia sido a
desmobilização dos seguidores do Nazareno por não verem os resultados que queriam e
esperavam – talvez a libertação do jugo romano – da ação de Jesus.
Vai rezando pela rua pedindo perdão a Jesus pela sua infidelidade ao amor de
Deus. Chega em casa e vai direto ao computador.
29
�“Meus caros Mônica, Marta e Tomás,
A paz e alegria de Jesus Ressuscitado estejam com vocês!
Terminei a última carta no ponto em que iria começar a mostrar para vocês o que
costuma acontecer na Igreja e conseqüentemente em nossas vidas de seguidores de
Jesus, todas as vezes que há um distanciamento entre o Jesus histórico e o Cristo da fé.
Nessas horas o que há é que valorizamos unilateralmente o Cristo da fé ou do Jesus
histórico.
Vejamos primeiramente o que acontece quando nos distanciamos do Jesus histórico e
valorizando apenas o Cristo da fé:
1.
Em nossos cultos a liturgia passa a acontecer desvinculada do caminho concreto
percorrido por Jesus de Nazaré na etapa terrestre da sua vida. É o que acontece, por
exemplo nas liturgias das quais muitas vezes participamos e que se encontram
totalmente alienadas da vida que estamos vivendo. Lembro-me de ter participado de
uma missa em que todos que estávamos lá presentes tivéramos muita dificuldade em
chegar à Igreja devido a uma manifestação do povo por maior liberdade e justiça
social. Havia uma forte repressão policial na região e todos que conseguiram chegar ao
templo estavam com os olhos irritados e marejados de lágrimas por causa da fumaça
das bombas de gás lacrimogêneo. A fumaça havia inclusive invadido o templo. O
incrível foi que o celebrante agiu como se nada estivesse acontecendo. Conduziu toda a
Eucaristia como se estivéssemos em Marte. Totalmente distantes e alheios ao que
acontecia à nossa volta. Lembro ter ficado pensando se os olhos do padre não tinham
sido afetados, como os nossos, pelo gás lacrimogêneo que nos envolvia a todos.
2 – Um outro ponto que costuma acontecer no distanciamento do Jesus histórico é a
exaltação religiosa. Começa a acontecer uma Igreja de massas e não de comunidades.
Focada em grandes celebrações com um intuito subjetivo: de mostrar força e poder
humanos. Há um esquecimento da sabedoria da cruz e do fermento que se produz nas
pequenas comunidades. Quando ficamos somente nas massas, reduzimos a
responsabilidade individual na opção pelo Cristo. Esta opção tem que ser pessoal. Não
é nunca uma decisão coletiva. Nesse distanciamento costuma acontecer de se formar
uma igreja apenas de festa. Uma igreja que se esquece de que para que haja a
ressurreição precisamos primeiro ter passado pela paixão e morte. Cuidado, meus
amigos, não quero dizer com isto que as grandes celebrações não sejam importantes
nem necessárias. São sim. O que estou alertando é para que haja um equilíbrio. Que
tenhamos também tempos e espaços para que possamos realizar uma igreja mais
doméstica, mais simples e aberta para viver completamente o mistério de Jesus Cristo,
ou seja a sua encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição.
3 – Sempre também que há esta valorização unilateral do Cristo da fé, temos o
desencadear do processo de afastamento da sua figura da nossa vida cotidiana. Cristo é
visto como algo sublime, abstrato e perdido na distância. Vira o Cristo lá do alto do
altar, ou o Cristo prisioneiro (literalmente encarcerado à chave) preso dentro do
Sacrário. Parece que entre esse Cristo e aquele Jesus com os pés empoeirados do chão
da Palestina há uma distancia que nós, os cristãos, nunca conseguiremos percorrer. É
como se estivéssemos participando de uma corrida vendo vir chegando o vencedor
30
�quando ainda estamos apenas começando a correr estando ainda muito próximos da
linha de largada. É natural que sejamos acometidos por um desânimo. Como continuar
a correr de forma motivada se o vencedor já terminou a corrida e nós mal a
começamos? Elaboramos então argumentos em nossas cabeças mais ou menos como
esses: como vou poder seguir este Cristo tão distante e perfeito? Como poderei eu, um
ser totalmente pecador e limitado, aproximar-me desse Cristo tão sublime e colocado
pelos responsáveis pela Igreja – ou seja, por nós – de forma tão inacessível. É,
realmente não dá para segui-lo. Esta é uma tarefa para os padres e para os santos. Ser
cristão não é mesmo para mim, leigo e tão limitado. E muitos de nós, por nos sentirmos
indignos e totalmente distantes daquele que seguimos vamos nos tornando cristãos sem
seguimento, cristãos pela metade.
4 – Jesus de Nazaré em sua vida concreta, foi um homem especial. Um homem que
apesar das muitas restrições da sociedade da época, tinha contatos com os pobres, as
prostitutas, os cobradores de impostos e demais excluídos. Não termos estes aspectos
da sua vida concreta em conta, pode nos levar a fazer interpretações ideológicas do
Cristo glorificado que vão acabar justificando os mais diferentes interesses e atos em
seu nome. Os exemplos são inúmeros. Nós sabemos quantas guerras foram feitas em
nome de Cristo, quantas perseguições, quanta intolerância, quanto racismo, quanta
injustiça enfim em nome dele. Outro exemplo diz respeito à riqueza. Muitos cristãos,
considerando a sua riqueza como uma benção (bendição) de Deus, passam a ver a
pobreza como o contrário, ou seja, como uma maldição.
5 – Acontece também de invocarmos o Espírito de Cristo em muitas coisas que, depois
de conhecermos sua vida, temos dúvida de que se trata do mesmo Espírito que
impulsionou Jesus em sua vocação de Messias-servidor entre nós. Quando se esquece a
dimensão do serviço passamos a desenvolver com facilidade um espiritualismo
desencarnado, que não leva em conta nosso corpo. Um espiritualismo pobre do tipo
que separa o corpo do espírito, como se pudéssemos separar os dois. Um dos exemplos
desse caso é o dos cristãos que renegam seu corpo entregando-o aos vícios. Nesse não
cuidar de si, fica explícito o esquecimento de que os nossos corpos são templos vivos
do Espírito Santo.
6 – A justificação de poderes do mundo acontece também de forma muito comum a
partir dessa separação entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Os poderosos tendem
então a sacralizar o seu mando dizendo coisas do tipo: “-estou cumprindo a vontade do
Cristo”. Nesses últimos tempos vimos isto de forma muito clara com a atitude do
presidente americano em relação ao ataque que ele estava pretendendo realizar contra o
Iraque. Ao emissário do Papa ele teria dito, conforme os relatos da imprensa, que se
sentia enviado por Deus para cumprir o papel de consertar o mundo. Ouvindo do
emissário que se quisesse mesmo fazer a guerra, que não a fizesse em nome de Deus, o
líder americano replicou:
“-cuide o Papa da sua Igreja que eu cuido do mundo.” A Igreja, ao longo dos séculos
tem usado também o nome de Jesus Cristo como justificação para muitos dos seus atos
de poder, esquecendo-se que Jesus de Nazaré só nos deixou exemplos de misericórdia,
amor, compaixão e aceitação das pessoas. Faltando a conexão com a vida, as opções e
as atitudes de Jesus de Nazaré, deixam abertas as portas para a deturpação do
significado e do tipo e qualidade de poder que Jesus certamente possuía.
7 – Acontece também muitas vezes a alienação frente aos problemas do mundo quando
31
�nos colocamos apenas diante do Cristo glorificado. Esta alienação faz com que muitos
cristãos fiquem apenas no louvor e fechamento na instituição, evitando o contato e o
compromisso diante das injustiças e conflitos atuais. Estando somente ligados ao Cristo
glorificado, é fácil esquecer que Jesus de Nazaré não se manteve neutro frente aos
conflitos de seu tempo e de sua sociedade. Ele fez claras opções pelos marginalizados e
enfrentou decididamente os poderes opressores do povo. Quando se está diante de um
conflito entre os poderosos e os pequenos, ficar quieto se dizendo neutro é o mesmo
que tomar partido do forte. Nosso silêncio, que consente, é a justificativa para o
opressor dos atos agressivos contra os fracos e excluídos.
8 – A preocupação com a glorificação do Cristo deixando de lado o Jesus de Nazaré
histórico pode levar também, em ambientes religiosos, a uma exacerbação da pureza
dos ritos e excessivo cuidado com os detalhes. Este excesso faz com que nos afastemos
de Jesus Cristo por nos considerarmos indignos de nos aproximar dele. Cria-se uma
mentalidade policialesca e alguns, que talvez, como os fariseus, se considerem mais
puros, costumam ficar vigiando os fiéis para ver se estão todos cumprindo os
excessivos ritos e preceitos. Este é um problema que ocorre em muitas comunidades
principalmente no que diz respeito ao Sacramento da Eucaristia. Não quero dizer com
isto que não tenha que haver uma preparação, um cuidado para se receber o
Sacramento. Só que é importante lembrar que a Eucaristia tem também o sentido de
remédio para os doentes e que as regras são feitas para nos libertarem e não para nos
prenderem. Aliás, foi para os doentes que Jesus veio. Há poucos dias, ao comungar
numa outra comunidade o ministro não queria dar-me a comunhão por ter estendido
para recebê-la a mão esquerda em concha, tendo por baixo desta a mão direita. Ele
queria que eu invertesse as mãos. Tive que lhe explicar que a minha mão esquerda, por
ser canhoto, é a mão onde normalmente e com toda dignidade recebo o Corpo e o
Sangue de Cristo.
Esta lista ainda poderia ir longe, meus amigos. Há muitos outros aspectos desse
distanciamento criado por nós entre o Jesus histórico e o Cristo da fé que poderia expor
aqui para nossa reflexão. Vou ficar nestes. Reflitam com seus botões que, tenho
certeza, vocês encontrarão outros tão graves quanto esses que nós, os cristãos,
costumamos cometer nas nossas vidas.
Paro por aqui. Pensem com muito carinho nesses aspectos listados acima. Enriqueçam
a lista com seus exemplos. Creio que já está mais que claro para vocês o grande mal
que nós homens fazemos ao tratar de forma distanciada estas duas realidades do
mesmo Jesus Cristo. Pelo tamanho que tomou a carta e também pelo meu tempo livre
que já se encerra, não dará para lhes expor nesta carta os aspectos decorrentes do outro
lado da questão, ou seja, da valorização unilateral do Jesus histórico em detrimento do
Cristo da fé. Farei isto em nova carta nesse próximo final de semana.
Espero estar sendo didático e que os pontos que tenho colocado para o conhecimento e
reflexão de vocês, estejam realmente servindo para um conhecimento e seguimento de
Jesus Cristo, homem e Deus.
Um grande abraço e que a paz do Ressuscitado esteja com vocês,
Robson.”
Envia a carta para Tomás e Marta pelo computador e imprime uma cópia para
Mônica. Já são três horas da tarde e ainda não havia almoçado. Na mesa a comida
32
�esfriara aguardando que terminasse a carta. Prepara o prato e leva-o ao forno de
microondas. Almoça decidindo voltar ao computador imediatamente para escrever a
continuidade da carta. Assusta-se por verificar que esta já será a quinta carta
catequética. Quer planejar algo para que haja um embrião de grupo de estudo ao final
dessa quinta carta, com a qual imagina estará terminada a conversa com Tomás.
Ao levar o prato à cozinha vê o bilhete deixado por sua mãe, antes de sair pela
manhã, avisando a família que a faxineira não viria trabalhar hoje. Tenta imaginar por
que ela estaria faltando. A última vez em que conversaram, ela lhe contava do problema
que estavam tendo em casa com os traficantes de drogas na favela. Tinha muito receio
da violência dos traficantes e também da outra violência. Aquela causada pela polícia
nas suas incursões pelo morro. Dizia não saber quais eram os mais violentos e
despreparados: se os traficantes geralmente muito jovens e inconseqüentes, ou os
policiais, não tão jovens como os traficantes mas também inconseqüentes, porque
chegavam já atirando para todo lado sem levar em conta os moradores. Esses sofriam
em dobro, pois era comum ficarem presos em meio ao fogo cruzado dos bandidos e da
polícia. -Meu Deus, como continua distante o Reino! disse em voz alta enquanto lavava
o prato.
Na lembrança passa a primeira vez em que fora ao morro. Era o batizado da filha
da faxineira. Como estaria ela agora? Já tem uns dezesseis anos. Ainda estuda? Ou
parou para buscar algum emprego? Vem forte a vergonha por nunca ter perguntado pela
filha – e afilhada de batismo dos seus pais - da mulher que há tanto tempo trabalhava
para a sua família. Tenta imaginar agora a cena do próprio batismo. Sorri ao passarem
pela sua cabeça os vários amigos felizes e emocionados na cerimônia de renovação
batismal vivida de forma intensa faz pouco tempo e que encerrava aquele curso do
padre paraguaio sobre o Sacramento do Batismo.
Pergunta a si mesmo o que será realmente o Reino de Deus. Falando de Reino de
Deus, estamos falando de uma situação onde Deus governa, ele é rei, começa a
responder. Só que nós, os seres humanos, no Reino de Deus não somos súditos
obedientes, mas somos filhos. A proposta de Jesus é a do estabelecimento da
fraternidade e da solidariedade humana desde aqui e agora, neste mundo, para que nós
construamos uma nova maneira de viver, uma nova maneira de nos relacionarmos
conosco mesmos e com Deus. Como será difícil chegarmos lá, pensa por fim, enquanto
liga o computador.
“Meus irmãos Mônica, Marta e Tomás,
A paz!
Retomo com vocês a nossa conversa sobre Jesus. Nesta carta tentarei passar-lhes o que
costuma acontecer quando ocorre o inverso daquilo de que falávamos na carta anterior,
ou seja, quando valorizamos unilateralmente o Jesus histórico, mantendo-nos distantes
do Cristo da fé proclamado pela Igreja.
As conseqüências da valorização somente do Jesus histórico deixando-se de lado o
Cristo da fé são também muito graves e causam muitos problemas. Nunca é demais
repetirmos que nessa questão há que se buscar sempre o equilíbrio. Da mesma forma
33
�que fiz na nossa última carta, irei também listar alguns desses sérios problemas que
costumam ser causados por esta atitude:
1- A redução do papel de Jesus ao papel de um simples revolucionário. Este é o
primeiro aspecto que gostaria de salientar com vocês nessa carta. É um
problema bastante comum nos nossos tempos. Sabemos que Jesus foi um
revolucionário. Afinal ele, com as suas atitudes e ações, revolucionou a cultura,
política e comportamento social à sua volta em seu tempo. Só que nunca
deveremos dizer que Ele foi somente um revolucionário. Dizer isto é cair na
redução do papel de Jesus. No auge da repressão política causada pela dita
Revolução de 1964 no Brasil, havia um grande número de jovens que
militavam nas pastorais sociais da Igreja através da Ação Católica. Fruto duma
valorização equivocada apenas do aspecto revolucionário de Jesus, alguns
desses jovens passaram a não considerá-lo mais na sua dimensão divina. Daí a
perderem a fé foi somente mais um passo. Afinal, o encantamento e seguimento
que encontraram Nele era pautado apenas num homem. Um homem especial,
mas somente um homem. Esse lamentável fenômeno tem uma contrapartida
também muito triste na história da nossa Igreja. Uma parte da culpa por terem
se afastado do Cristo, e conseqüentemente da fé, deveu-se ao radicalismo da
hierarquia que somente valorizava o outro lado, ou seja, o Cristo da fé.
Instalado o conflito, sem terem apoio na Igreja, esses jovens foram facilmente
levados a trabalharem apenas na construção de um reino sem nenhuma
transcendência. Um reino puramente humano.
2- Outro tipo de redução de Jesus muito encontrada, principalmente em ambientes
mais intelectualizados, é a de considerá-lo apenas como um sábio. Considerá-lo
apenas a partir deste atributo é também não reconhecê-lo como Filho de Deus,
como o Cristo. Notem como os movimentos da chamada Nova Era (New Age)
tendem a este reducionismo. Há não muito tempo eu lia um artigo de revista de
um desses movimentos que tinha esse viés. No meio do artigo havia uma
listagem dos homens sábios que haviam modificado o mundo. Para meu grande
espanto, encontrei lá em meio a muitos outros, como Confúcio, Buda, Moisés,
Maomé, Francisco de Assis, Alan Kardek, etc. o nome de Jesus.
3- Uma redução mais religiosa de Jesus ao aspecto somente humano da sua
realidade tem lugar em ambientes mais religiosos. Trata-se da supervalorização
apenas de Jesus de Nazaré, somente levando em consideração tudo que tenha
acontecido até a sexta-feira da Paixão. Nessa redução do papel de Jesus não se
levam em conta os aspectos gerados a partir da sua ressurreição. Fica-se apenas
no serviço, no atendimento social, na filantropia, esquecendo-se da novidade
radical e absoluta que aconteceu a partir da ressurreição. A novidade de que o
Reino não é somente deste mundo e que, como Ele, também ressuscitaremos.
Reparem, por exemplo, como muitas comunidades valorizam muito mais a
paixão e morte de Jesus do que a Ressurreição. Parece que para esses só se deve
viver a paixão e a dor da morte de Jesus, criando uma religião onde só conta a
tristeza e o sacrifício. Esquecem-se essas comunidades que depois da Paixão
vem a Ressurreição. A glorificação do Cristo através da Ressurreição é o ponto
fundamental da nossa fé. Aí reside e não na Paixão, o ápice, o ponto culminante
da nossa fé e conseqüentemente da nossa celebração de Igreja.
34
�4- A valorização do Jesus histórico em detrimento do Cristo da fé pode levar
também a um conceito de religião deturpado. Uma religião de iniciados
preocupados apenas no conhecimento e estudo de Jesus. Esta postura tende a
fazer com que haja um esquecimento da novidade radical que Jesus nos trouxe,
ou seja a sua ressurreição e a partir dela a certeza da transcendência. A certeza
de que não fomos feitos para morrer, mas também para ressuscitar com Ele.
Deixo por conta de vocês a tarefa de aumentarem também esta lista, acrescentando
outros problemas que podem advir do afastamento do Jesus histórico do Cristo da Fé.
Meus caros amigos, creio que tenha ficado bem claro para vocês os problemas que
geramos quando nossa referência torna-se exclusivamente o Cristo da fé ou o Jesus
histórico. Este exclusivismo gera manipulações e deturpa a nossa fé e seguimento de
Jesus Cristo. Sempre na vida de vocês, procurem estar atentos para que sejam
valorizados tanto o Cristo da fé quanto o Jesus histórico. Afinal, trata-se do mesmo e
único sujeito. Não podemos separar um do outro. Conforme a fé professada pela Igreja
do Novo Testamento, aceitamos o único Senhor Jesus Cristo vivendo duas etapas, dois
modos de existência distintos: a etapa de serviço e a etapa de glorificação. Nas duas
etapas e nos dois modos de existência, trata-se sempre de um único sujeito: Jesus
Cristo.
Unindo o Jesus da história com o Cristo glorificado, constatamos algo maravilhoso e
fundamental para o nosso seguimento de Jesus: no homem Jesus de Nazaré, em sua
etapa de serviço, e nesse mesmo homem glorificado pela ressurreição, encontramos a
revelação plena de Deus. A fé cristã confessa a encarnação real de Deus no homem
Jesus de Nazaré!!!
Hora de parar. Há muita matéria para a reflexão de vocês no que já escrevi nessa carta.
Com ela também vamos chegando ao final da nossa caminhada iniciada pela ‘primeira
carta catequética’. Meu Deus, esta já é a quinta! Espero ter ajudado vocês no
conhecimento e um início do seguimento de Jesus Cristo. Apesar de que gosto de
escrever cartas, estou aberto, caso vocês queiram, a iniciar um grupo de estudo de Jesus
Cristo. Entendo e sei, por tudo que lhes escrevi nessas cartas e escutei e li de vocês, que
concordam comigo, que este grupo deve estar aberto não só ao conhecimento, mas
também ao seguimento. A um aprofundamento da Fé.
Vocês topam? Quem concordar, é só levantar o mouse para podermos definir uma data
para nosso primeiro encontro.
Não me esqueci da bibliografia que havia prometido na primeira carta. Na folha anexa
eis alguns livros que poderão ajudar a vocês na caminhada rumo a Jesus Cristo. Quem
sabe no nosso grupo não elejamos um deles para irmos nos aprofundando no
conhecimento e no amor de Jesus? O que acham?
A paz e a alegria de Jesus Cristo, homem e Deus, esteja com vocês, meus amigos,
Robson.”
Muita alegria no coração ao terminar de reler a carta e apertar o botão no teclado
enviando-a. Ao desligar o computador se dá conta de não ter imprimido a cópia para
35
�Mônica. Liga de novo a máquina e imprime a cópia. Aproveita para relê-la. Lembra o
final da carta e sorri. Por que havia escrito que estava disposto a formar um grupo com
seus amigos leitores? Conclui ter sido inspiração de Deus o ter-se colocado disponível e
mais ainda, registrado isto para eles. Sim, porque muitas vezes nos colocamos a serviço
mas esquecemos de dizer que estamos abertos ao trabalho. Jesus fazia diferente, pensa,
Ele para se mostrar disponível, estava sempre servindo ao outro. Ele havia sido
totalmente fiel à sua vocação de servidor. Ele havia sido o ‘Servo Servidor’. Fala em
voz alta: -Servo Servidor! Gosta deste título de Jesus. Além de tudo que significa, ainda
é poético. Reza então: ‘Senhor, quero ser servo servidor como seu filho o foi.’ Ri da sua
pretensão. Estaria sendo pretensioso? Chega à conclusão que não. Se queria seguir a
Jesus, teria que fazer como Ele, ser servidor. Se queria estar com o Cristo, estaria
considerando-o Senhor e aí estaria sendo Servo. Resolve então repetir a oração:
‘Senhor, quero ser servo servidor como o seu filho o foi.’. Decide não fazer a oração
prevista para hoje nos Exercícios de Santo Inácio de Loyola na vida diária que está
fazendo. Sim. Esta é hoje a minha oração. Rezo sobre o Servo Servidor e coloco-me
disponível para sê-lo também.
Leva na mão as folhas com as duas últimas cartas catequéticas para Mônica.
Resolve ir até o shopping. Quer esperá-la ao final do seu trabalho. Pensa no quanto é
dura a realidade da amiga. A loja fecha à meia noite e as empregadas, antes de poderem
ir embora ainda têm que arrumar todas as prateleiras para o dia seguinte. Geralmente só
saem meia hora depois.
Ainda falta uma hora quando chega ao shopping. Senta-se na lanchonete e,
enquanto toma o suco de laranja, repara nas pessoas que saem da última sessão do
cinema. Deve ter sido uma comédia, pensa. Saem todos rindo. São em sua maioria
casais. Pensa em Mônica e no quanto ela ficará surpresa ao encontrá-lo ao sair da loja.
Ela ficou de me escrever a resposta à carta catequética e não o fez, relembra.
Custa a passar o tempo. Ufa, até que enfim chegou a hora. Mônica sai e seu rosto
é um sorriso só quando o vê. –Robson! Você aqui? Que surpresa mais agradável. Adorei
que tivesse vindo! Sabe, falava de você para as colegas nesse final de expediente na
loja. Uma das minhas novas amigas vendedoras faz parte de uma comunidade católica e
também estuda bastante a sua fé. Disse-lhe das suas cartas catequéticas e do quanto elas
estão me ajudando a entender melhor a minha fé tão infantil e adormecida faz tanto
tempo e do como pretendo, a partir delas, aprofundar-me mais no estudo de Jesus Cristo
para poder ajudar mais ao papai que está vivendo tão grandes problemas. Por falar em
papai, eu dei pra ele ler as suas cartas catequéticas. Ele adorou. Disse-me que tem
algumas dúvidas e que quer conversar com você a respeito. Pediu que eu lhe dissesse
para que não demore a visitá-lo novamente. -Sabe, Mônica, não resisti. Queria lhe trazer
as duas últimas cartas. Acabei de fazê-las e vim aqui para lhe entregar. Quanto ao seu
pai, diga a ele que mais breve do que ele possa esperar, estarei lá na sua casa para visitálo.
Saem do imenso templo de consumo, o shopping center e vão caminhando até o
ponto do ônibus. As ruas muito vazias contrastam enormemente com o estado dos seus
corações, tão plenos de alegria. Noite bonita. Sopra um vento gostoso e refrescante.
Ficam em silêncio um tempo enquanto caminham. Robson então fala:
36
�-Mônica, tenho uma coisa para lhe pedir mas não sei como fazê-lo. -Ah, Robson,
você e a sua mania de me deixar curiosa. Diga logo o que quer me pedir... –É que nesses
últimos dias a tenho conhecido mais e mais ainda tenho lhe admirado. Quero estar bem
junto de você. Acho que trazer as cartas foi uma desculpa. Sabe, Mônica, o que quero
mesmo é pedir pra gente namorar...
O rosto de Mônica fica vermelho. Ela parece não ter entendido. Robson não sabe
como repetir o pedido. Tão difícil foi ter-lhe falado aquilo. Não conseguiria repeti-lo.
Coração faz tumtumtum, fortíssimo, dentro do peito. Silêncio imenso e absoluto que
grita na madrugada da cidade grande
-Eu quero, é claro que eu quero, lhe diz por fim Mônica, depois dum silêncio
que parecera durar séculos. -Você não imagina o quanto está me fazendo bem este
convívio com você. Que bom que você quer me namorar. Eu também quero namorar
você, Robson.
Somente aquelas teimosas e poucas estrelas que foram capazes de vencer a
quantidade imensa de prédios da cidade e aparecem brilhando sobre a rua em que eles
caminhavam, foram as testemunhas daquele momento tão sublime. Daquele instante em
que, de mãos dadas, eles sentiram um vislumbre da imensa maravilha do que o nosso
Deus lhes prepara para a eternidade.
37
�
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Programa Magis
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Trabalhos (monografias, sínteses) apresentados no Magis por participantes do programa. Também inclui referências para o curso.<br /><br /><em>El Programa de Formación Magis se realiza en la CVX América Latina desde 1997 (el primer encuentro intensiva se realizó en Lima-Perú desde el 1 de enero hasta el 15 de 1998). Más que un curso es un proceso de formación integral de 3 años y medio, que desarrolla 1 etapa preparatoria y 3 Módulos: Cristología, Eclesiología y Espiritualidad Laical. Cada módulo cuenta además con temas especializados en ética cristiana, discernimiento socio-político, discernimiento para la misión, espiritualidad, sexualidad en tiempos presentes, análisis de la realidad, y otros más.</em>
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Um recurso composto principalmente de palavras para leitura. Exemplos incluem livros, cartas, dissertações, poemas, jornais, artigos, arquivos de listas de discussão. Note-se que facsímiles ou imagens de textos ainda são do gênero Texto.
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As Cartas Catequéticas
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Cyrino, Fernando
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30/05/2010
Subject
The topic of the resource
Cristologia
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Conto com reflexões de um jovem a respeito da sua fé e vida.
Language
A language of the resource
pt-BR
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Programa de Formação Magis - Magis II
Contributor
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Magis II
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Conto
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Programa de Formação Teológica CVX Latinoamérica<br />Magis II
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Magis 2
Magis II
-
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Teimosos, somos muito teimosos. Até aqui nos colocamos divididos. As alas com
os componentes pobres ficam de um lado, as dos ricos e poderosos do outro, refletia
Rogério admirando a perfeição do grande vitral com Maria tendo no colo seu filho morto. –
Que bonita esta Mater Dolorosa. Falou Padre Heli.
Depois de dez minutos de caminhada, o grupo de religiosos passava pela parte
nobre do Cemitério. Imensas construções esbanjando o mais caro mármore enquanto
embelezam o mundo e ajudam o mercado cultural ao gerar empregos para os artistas da
pintura e da arquitetura.
Assentindo de forma quase imperceptível com a cabeça, Rogério deu um passo
maior para não dar chance a que o Padre, seu superior no Seminário, ficasse ao seu lado, o
que o obrigaria a alimentar a tentativa de diálogo e o conseqüente impasse, porque para ele
aquela era a Pietá e não a Mater Dolorosa. Melhor ele pensar que eu estou rezando. Queria
estar sozinho e como isto era impossível àquela hora, que ao menos lhe fosse dada a
oportunidade de estar relembrando tantas coisas que aconteceram e o marcaram nos últimos
meses.
Os pés, pesados do muito barro do chão em volta da cova, iam deixando muitas
marcas no cimento e não combinavam com os corredores estreitos e muito limpos por onde
iam cortando caminho rumo ao estacionamento à saída do campo santo. Lá os aguardavam
a Kombi do seminário e os demais carros aonde vieram os três cardeais, os mais de trinta
bispos e a centena de padres. Os únicos além do grupo de seminaristas e dos coveiros que
assistiram ao sepultamento. Dom Cristiano enfim descansara. Sem dúvida, se tivesse
podido opinar, teria sido da opinião de que o povo tão amado por ele também pudesse ter
estado junto neste último momento. Uma pena ele não ter podido participar dessa decisão,
ia ruminando Rogério. Nosso Bispo estava na paz do Senhor e num movimento automático
olhou para o céu todo cinza, sem nem uma risca de azul. Ele lá já estaria, após ter
preenchido a ficha de entrada, obviamente, de imediato abonada por Pedro, em grandes
papos com o Santo, agora que já podia se expressar de novo sem nenhuma restrição. De
certo, estariam olhando para baixo. Cristiano dedo apontado, mostrando para o primeiro
papa o cortejo, agora meio destrambelhado, dos religiosos que tinham vindo ao Cemitério
da Paz para semeá-lo na terra boa molhada pela chuva. Estaria dizendo ter gostado muito da
cerimônia toda e que somente tinha sentido falta da gente simples do seu rebanho. No seu
jeito bonachão, fazia Pedro dar gargalhada dizendo que sobraram batinas e que faltaram
chinelos no seu enterro.
O bom Arcebispo no caixão mais simples, despido de todos os símbolos de
dignidade dos homens e coberto apenas pelo linhão do hábito franciscano, como o mais
pobre dos pobres, agora dormia na terra roxa como seu solidéu e até muito pouco tempo,
virgem de corpos humanos. Na área nova do Cemitério, aberta para receber os pobres e
indigentes, muitos deles vítimas da violência da megalópole, já sem espaço até para os
mortos que ia gerando a toda hora.
Rogério, apesar de tudo, sorria. Passava diante do mausoléu da família Larjanarino.
Imensidão de sepultura. A capela seria até maior do que a da Comunidade do Rato
Molhado, onde ainda deveria estar nesta noite, dia de Celebração da Palavra no morro.
1
�Sorria da peça pregada pelo seu bispo em sua tão amada Igreja. Quis porque quis e não
houve santo, cardeal ou bispo que o demovesse da idéia, ser enterrado na parte nova do “Da
Paz”, área abençoada por ele mesmo no dia de São Pedro, há menos de um ano, quando a
doença já mostrava sinais de aceleração em seu corpo cansado, trazendo-lhe muitas dores e
desconforto na cerimônia. Aspergindo a água benta naquele lugar ainda cheio de muito
mato, o bom Bispo decidira:
-É aqui que eu quero que o meu corpo fique.
Da primeira vez, a manifestação dessa vontade não foi levada a sério.
-Está brincando, dizia Monsenhor João.
-Acho que é pior, ele já delira, retrucava Padre Ademar.
Foram os dois que, numa visita, ouviram dos seus lábios pela primeira vez tal disparate.
-Onde já se viu? Nos 176 anos, 8 meses e cinco dias, desde que o Papa Leão XII
autor da bula Praeclara Portugaliae sobre o padroado brasileiro, criara a Diocese, todos os
nossos Pastores descansaram no altar e quando lá já não cabia mais ninguém, na nave da
catedral. E tem mais. Veja, Padre. Nela ainda há lugar para Dom Cristiano e muitos outros
seus sucessores.
Com a cara espantada, Padre Ademar ouvia o Monsenhor, dedo em riste, como se
tivesse sido ele o responsável por colocar tal pensamento absurdo na cabeça do bispo.
Custaram a entender que não era brincadeira. Não era nenhum delírio. A imponente
Catedral gótica de Nossa Senhora de Bom Sucesso seria apenas um lugar de passagem do
féretro. Local apenas para se velar e encomendar na missa solene o corpo, agora já total e
definitivamente inerte de Cristiano.
II
-Mas são apenas quatro os voluntários? Perguntou Padre Heli ao grupo de
seminaristas do primeiro ano de Teologia do Seminário Arquidiocesano Dom Pascoal.
A reunião semanal do superior da casa com a turma de estudantes estava quase se
encerrando. O convite a ser feito era o último ponto da pauta. O silêncio do grupo fez com
que todo seu corpo, escorregando ainda mais na cadeira, demonstrasse desconforto e
decepção. Esperava que todos eles, ou ao menos a maioria, tivessem se colocado
disponíveis para estar por uma ou duas horas semanais com o Arcebispo doente, fazendolhe companhia e, eventualmente, escrevendo as cartas que ditasse, impossibilitado que já
estava para usar os braços e as mãos.
-Vou ter que dar comida na boca do Bispo? Rogério havia perguntado em meio ao
riso solto de alguns e abafado da maior parte.
-Negativo, disse o Padre, tentando mostrar naturalidade, a alimentação dele é feita
com a ajuda de pessoal especializado do hospital. O que pode acontecer é que ele queira
beber água. Aí é simples. Na mesa ao lado da cabeceira da cama há, já preparada, garrafa
de água fresca adaptada para se beber deitado. O bico comprido evitará o derramamento do
líquido no seu pijama.
-Pode contar também comigo. Rogério disse, levantando sem muita convicção a
mão direita. Mal sabia o quão seriam importantes para a sua formação, enquanto pessoa e
como futuro sacerdote, as horas que iria passar ao lado do Arcebispo. O quanto ansiaria
pela chegada dos momentos de estar lá com o seu amigo.
2
�-Vamos fazer a oração para encerrarmos a reunião. Vocês, os disponíveis, fiquem
por mais uns minutos para que façamos uma agenda com os dias e horários de cada um
com o nosso doente. Como vocês são cinco, vamos nos programar para que fiquemos
responsáveis de segunda a sexta-feira por este serviço. Nos finais de semana, como ele
geralmente recebe muitas visitas, não precisaremos cumprir essa tarefa.
Montado o calendário, Padre Heli explicou para o pequeno grupo a doença que acometia
Cristiano.
-Chama-se esclerose lateral amiotrófica, afeta o sistema nervoso e faz com que os
nossos músculos voluntários, de forma progressiva, parem de atender aos comandos
gerados pelo cérebro. Por isto ele já não consegue andar nem escrever, mas continua mais
lúcido do que nunca.
-Padre, eu não entendi o que quer dizer ‘músculos voluntários’?
-Ah, tudo bem, são aqueles que obedecem aos comandos gerados pela cabeça. São
chamados de voluntários porque temos muitos outros músculos que agem sem que nem
percebamos ou atuemos sobre eles, como os cardíacos, por exemplo.
-Tem cura, Padre?
-Tem não. Daqui em diante ele só irá piorando. O médico que o acompanha estava
nos dizendo que há casos em que o paciente acometido dessa doença só pode se comunicar
com o mundo a partir do piscar de olhos. Triste, não? Temos que rezar muito por ele. Seu
final de existência não será nada fácil. Será bem pesado. Já mais no final da sua vida ele
não estará conseguindo nem falar mais. Quando chegar essa hora, teremos que estar atentos
para encontrar formas de mantermos a comunicação com ele.
III
-Sabiam que Dom Cristiano está muito doente?
Rogério puxava assunto no almoço da família no sábado.
-Sei sim, responde Alice, sua avó paterna.
Era a única ciente do fato.
-Ouvi na Rádio Europa, a emissora da Arquidiocese. Vocês todos como católicos
deviam ser ouvintes também.
Alice não perdia o programa de Padre Luiz, nem deixava escapar a oportunidade de fazer
sua propagandazinha da rádio de sua preferência.
-Padre Luiz ontem mesmo pedia para a gente rezar pela saúde do Arcebispo.
-Tem jeito não, Rogério continuou, a doença é séria e incurável. Ataca os músculos
do corpo e vai fazendo com que o doente fique a cada dia mais incapacitado para se
movimentar. Daqui a um tempo, ele já não estará mais aqui conosco, contou-nos Padre
Heli.
O silêncio na sala como que confirmava a impropriedade do tema doença grave para a mesa
de almoço familiar.
-E por falar no bispo Dom Cristiano, vocês conhecem a história do batizado de
Atanásio? Sabiam que ele teve batizado importante? Foi realizado por bispo.
Alice, sempre sábia, delicadamente muda o assunto.
-Que história papai ter tido batizado de bispo é esta vovó?
O movimento dos corpos chegando para frente nas cadeiras, dava a entender que todos
iriam falar ao mesmo tempo mas Anita foi quem sacou primeiro e fez a pergunta.
3
�-É mãe, esta história do meu batizado até pra mim foi sempre meio confusa, meio
nebulosa. Entra na conversa Atanásio.
-Ô Pai, tem mais é que ser assim mesmo, afinal você devia ser muito novo quando
este fato aconteceu, replica Anete, a irmã gêmea de Anita. Atanásio ri meio sem jeito e
continua.
-Lembro da senhora contar que papai até brigou com o bispo por causa da escolha
do meu nome.
-Não, filho. Ele não brigou não. Discutiu só. O meu finado Júlio era ranzinza e
cabeça dura, mas respeitava autoridade. Ainda mais autoridade do clero. Ele bem que
tentou manter o nome que escolhera, mas argumento de bispo naquela época não era coisa
pra ficar se ponderando ou discutindo. Ouvia-se e cumpria-se. Ponto final. Sucede que o
meu marido queria para o filho nome bem curto e que começasse pela letra A. Naqueles
tempos havia passado lá pelas bandas da fazenda um homem que fez negócios com o seu
avô, ela falava agora olhando para Rogério. Júlio errou as contas da compra feio. Pagou o
dobro do que deveria ao comerciante desconhecido até então. Gente, não é que o homem,
depois de dois dias de viagem em tempo de chuva e a cavalo, dando-se conta do engano do
meu falecido Júlio não voltou no outro pé para devolver a quantia sobrante?
Meu filho, como seu pai ficou agradecido. Sabem o nome do homem? Era Ário, disso não
me esqueço nunca. Naquela mesma noite, eu já prenha de uns seis meses, Júlio sentenciou.
-Já era do meu querer um nome curto e começando pela letra A e me aparece na
vida homem tão justo e honesto chamado Ário. Mulher, o nome da criança se for menino
será Ário. Se nascer moça será Ária.
-Isto ele pronunciou.
Fazendo idêntica careta, as duas irmãs já tão parecidas, disseram praticamente juntas.
-Graças a Deus que veio um menino.
Alice corta o pedaço de bife e ato contínuo, se dá conta do quão interessante para
aquele público estava sendo a sua narrativa. Uníssonas, as vozes todas à mesa disseram
alto: -e aí?
-Calma, gente. Comida fria é ruim, também tenho que ir me alimentando. Dizia
gostando da atenção que lhe era dada. Não mastigado o tanto que deveria ter sido, o naco
de carne já havia sido engolido, quando Anete já ponderava.
-Esta história não está fazendo sentido. O nome do nosso pai é Atanásio.
Começando com a letra A, mas com quatro sílabas. Não é um nome curto como vovô havia
querido.
-Aí é que entra a questão da discussão do Júlio com o bispo que Atanásio até achava
ter sido uma briga. O bispo não aceitou de jeito nenhum colocar o nome escolhido por seu
avô no menino.
-Vó, tem mais uma coisa. Também não faz sentido na minha cabeça um bispo ter
ido batizar o papai. O que um bispo fazia lá naquele fim de mundo?
-Vamos colocar as coisas nos seus devidos lugares. Primeiro que lá é longe, mas
não é o fim do mundo. Segundo que lá também, como todos os lugares da terra, faz parte de
uma diocese e vocês todos sabem que toda diocese têm um bispo. Mas com isto, prestem
bem atenção, eu não estou querendo dizer que tenha sido o bispo da nossa diocese o tal
bispo batizador. O homem de Deus que batizou Atanásio nem era o nosso bispo. A diocese
dele era pra outros cantos no nem sei aonde que é. O bispo de lá, como eu falei, era outro.
Esse, que eu me lembre, nunca passou por aquelas bandas.
4
�-É, este fato aumenta ainda mais a solenidade e importância do seu batizado, papai,
falou Rogério, achando interessante a circunstância em que havia ocorrido o tal batizado.
-O que ocorreu de verdade foi que o bispo estava indo para Lajeado Liso de
Santana, cidade também bem pequena, uns 50 km depois do nosso povoado. O carro dele
não agüentou a serrinha. Deu na breca. Quebrou. Naquele tempo, ainda mais por lá...
-Fim de mundo. Alfinetou Anita, rindo.
-Recurso era escasso. O motorista veio então pedir para que hospedássemos o
homem enquanto ele iria, a cavalo, porque lá não tinha carro disponível, buscar um
mecânico. No vupvup e olhem que eu não podia correr daquele jeito, pois estava ainda de
resguardo de Atanásio, arrumei o quarto de hóspedes para receber o bispo.
O pai de vocês nasceu de oito meses. Fraco e mirradinho. Chorava muito, mas chorava
baixo parecendo o mimimi de ninhada de gatinhos e isto era mau sinal. O hóspede, um
alemão dos seus dois metros de altura, tinha ouvido bom e escutou o choro. Pediu para ver
o neném. Eu trouxe. Olhou e foi logo dizendo num português meio estrangeirento.
-Melhor batizar logo. Esse parece que não escapa e vai para o céu anjinho.
-Daí que se fizeram as arrumações todas de chamar os padrinhos, arrumar vela
branca e virgem, veste alva e outras coisas da precisão para a cerimônia e lá estávamos nós
na porta da capela de São Sebastião no aguardo da chegada de Rita preta, a zeladora e que
tinha sido também a parteira que havia ajudado a vir ao mundo o meu Atanásio que deveria
ter sido Ário.
-Qual nome vai se chamar a criança? Perguntou com seu vozeirão difícil de
entender o bispo que era de nome Dom Karl.
-Vai se chamar não, seu Dom. Já chama. Todo mundo nas redondezas sabe que o
pagãozinho se chama Ário, respostou Rita Preta, toda orgulhosa de estar recebendo um
bispo na sua capela.
-O porquê da Rita Preta não ter se contido permanecendo calada para que a família
respondesse, devia-se também a terem sido delas as mãos que ajudaram na vinda daquele
inocente a este mundo de meu Deus. Foi aí, exato nessa hora, que teve início a contenda.
-Herege, inimigo de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Madre Igreja, não pode
nomear cristão. Católico romano com nome de herege já basta eu, que me chamo Karl por
homenagem dos meus pais, que eram do Partido Comunista, ao inimigo de Deus, Karl
Marx.
-Vossa Eminência está redondamente enganado, falou Júlio não entendendo
patavina de nada e já com o rosto corado.
-Este não é nome de herege nenhum. O meu filho se chama Ário por causa de um
homem muito bom e honesto, que pelo que fez comigo só pode ser um cristão, que passou
por aqui.
-Seu Júlio, eu já disse. Este é nome de apóstata. Eu não batizo. O menino vai se
chamar de agora em diante Atanásio, Eusébio ou Eustázio. Estes sim foram homens fiéis.
Soldados de Nosso Senhor. Combateram as porcarias de espinhos que este Ário queria
trazer para machucar a Igreja. O senhor e a senhora dona Alice, façam o favor de escolher.
Estou dando três opções: Atanásio, Eusébio e Eustázio.
-Graças a Deus que não era batizado anunciado e só a gente mesmo, nós os de casa,
estávamos na capela em volta da Pia Batismal. A situação ia ficando meio delicada. Mão
direita de Júlio ia do coçar o alto da careca ao puxar dos fios do cavanhaque e eu sabia que
quando isso acontecia era porque o pai e avô de vocês estava encumbucado. Dando nos
nervos.
5
�-Rita Preta não ia nunca permitir que uma simples mudança de nome, dum menino
que nem era ainda cristão, pudesse manchar a presença de tão grande autoridade na capela
de São Sebastião.
-Sô Júlio, que diferença que faz? O senhor escolhe Atanásio e o nome continua
começando com a letra A, como o senhor bem tinha estipulado. Ainda por riba, o menino
ganha mais duas coisas. Uma desimportante que são as novas letras que compõem este
novo nome. A outra é da mais grande valia. Seu filho agora além de deixar de ser pagão,
ganha nome de santo. Aceite homem de Deus. Tome tenência.
-Júlio olhou direto pra mim e eu não baixei a cabeça. Ele baixou a sua e a balançou,
bem devagar, por três vezes. Daí que a cerimônia começou e acabou de forma bem rápida,
mas tudo feito com muita contrição.
-Meu filho, - falou Francisca, bem baixo e delicadamente, como era do seu feitio agora nós já sabemos o porquê do nome do seu pai. Só que eu nunca ouvi falar desse Santo
Atanásio. Nunca nem vi nem uma imagem dele. Vê lá no seminário quem foi este santo que
deu nome ao meu marido e nos conta.
-Pode deixar, mãe. Eu também estou curioso por conhecê-lo e confesso a minha
ignorância para vocês, nunca ouvi falar nesses três que o bispo deu como opções de nomes
para o papai. Na minha próxima vinda aqui em casa todos ficarão sabendo quem foi
Atanásio e esses outros dois homens.
IV
O ônibus nem bem acabara de sair da rodoviária, dando início às duas horas de
viagem até o seminário na capital e já tinha entrado na cabeça de Rogério a cena da velha
Alice contando para a família no almoço do dia anterior, o todo suceder do batismo do seu
pai. De tudo que ouvira e que tanto o impressionara, duas coisas ressaltavam, indo e vindo
intermitentemente. A liderança de Rita Preta e a postura de excessiva autoridade daquele
bispo estrangeiro. Coisa bonita, refletia ele sobre a parteira. Como aquela mulher havia se
colocado de forma bastante líder e livre perante o bispo e à sua família. Mulher, pobre e
negra. Um ser humano por estes três atributos discriminado e que se coloca perante uma
grande autoridade desconhecida de forma tão assertiva e porque não dizer, cristã. Como
teriam sido as mulheres das primeiras comunidades? Certamente como Rita Preta. Apesar
da discriminação, fortes e lideres. Bastante esquecidas por séculos, há hoje um resgate do
papel das primeiras mulheres do cristianismo dentro da Igreja. Hoje sabemos o quão
importantes elas foram na formação e manutenção das comunidades dos primórdios da
nossa Igreja. Que pena ter havido depois, pouco a pouco, um retrocesso do papel feminino
no exercício dos carismas mais ligados à liderança na condução da fé cristã. Remando
contra toda corrente, na sociedade extremamente machista do seu tempo, Jesus de Nazaré
elevou a mulher a uma dignidade nunca antes havida. Não deviam ter os nossos primeiros
apóstolos mantido e até mesmo ampliado o espaço feminino na Igreja? Perguntava para si
mesmo o jovem que se prepara para o sacerdócio. As raízes mais fortes e marcantes da
família são femininas. A avó Alice, a mãe Francisca, as irmãs Anete e Anita, são todas
grandes pilares de sustentação na sua vida. Colunas de apoio no encaminhamento da
vocação de maior serviço aos irmãos na Igreja, por amor a Jesus Cristo.
6
�A pergunta veio de chofre, imediata, como que batendo em sua testa: como teria
agido Jesus, tivesse sido ele e não Dom Karl o pastor daquele batizado na capela de São
Sebastião? Disso Rogério tinha certeza: teria sido bem diferente. Jesus de Nazaré tinha
autoridade e por ter total consciência dela, Ele não precisava ser autoritário. Pensou no seu
avô. Como teria sido ele fisicamente? Júlio faleceu quando Rogério nem era ainda nascido.
Agora já sabe, pela história do batizado do pai Atanásio, homem que poderia ter tido outro
nome, que o avô era careca. Seria igual a careca do seu filho? Seriam parecidos, sendo a
maior diferença somente o uso do cavanhaque por Júlio? Admirou o avô por ter querido
homenagear aquele homem honesto que passou de forma fugaz pela sua existência. Será
que Júlio reviu aquele comerciante, o Ário? Não, com certeza não, concluiu, como se
pudesse afiançar isto. Ário nunca mais passou por aquelas rotas. Teve pena de Júlio por ele
ter cedido ao capricho de Dom Karl, mas ao mesmo tempo admirou a sua obediência e
humildade ao aceitar a imposição feita. Sim, estava aí, diante dele, um bom exemplo do
sentir com a Igreja. Vovô Júlio nem concordava com o que lhe estava sendo imposto, mas
aceitou a ordem. Baixou a cabeça, permaneceu fiel à Igreja, mesmo com o ônus de não ter
podido homenagear o comerciante honesto e acolher no seu filho um nome diferente
daquele que havia escolhido.
Ser da família, pensa... Sentir com a igreja...
O “sentir com a Igreja” preconizado por Inácio de Loyola, tem como condição
básica, a pertença à Igreja, ser um dos de casa, ser da família. Sentir com a Igreja é o
mesmo que se alegrar e sofrer com ela. Dentro dessa ótica há o que é mutável e o que deve
permanecer sempre. São diferentes e, portanto, é necessário que mudem, os costumes e as
formas de piedade de cada época e lhe vem ao pensamento o contexto da Igreja Medieval
com seus louvores e todos os seus ritos. Pensa também na Igreja defensiva, atacante e
ressentida de tantos e tantos séculos. Relembra o contexto muitas vezes vivido de um
grande paternalismo da Igreja ao ocultar ao povo a realidade, talvez julgando que não
fossem os fiéis inteligentes o bastante para apreender e avaliar a situação. Fecha o cenho ao
pensar no respeito religioso às varias autoridades civis totalmente indignas de receber tal
reverência. O que não pode mudar, o que tem valor permanente é a Eclesiologia de
Comunhão e participação. Afinal, a Igreja não é algo exterior, mas é uma vivência do
Ressuscitado, do seu Espírito. Sentir com a Igreja é obedecer nas duas dimensões. Na
vertical e na horizontal. Só que não são poucas as situações em que a submissão se dá de
uma forma pobre, ocorrendo somente em relação à hierarquia. Sentir com a Igreja, constata,
é submeter-se não só diante da hierarquia, mas também em frente à comunidade. É ter
atitude de louvor, agradecendo ao Pai pelas coisas boas que há nela. É acolher com muito
respeito e carinho o pluralismo eclesial. Os vários modelos de Igreja existentes. Até aqueles
que não são nem um pouco simpáticos ao seu modo de viver a fé. Sentir com a Igreja, vai
refletindo Rogério, é dar um tratamento discreto aos defeitos. É criticar em clima de
compreensão, buscando solucionar os problemas e não somente identificá-los.
Chegou no seu coração uma pena muito grande de Dom Karl. Entendeu as suas
razões, ele era fruto de mais de mil anos de uma instituição de poder, acostumada desde há
muito tempo a uma relação muito forte e íntima do altar com o trono. Quantas vezes
alguém, situado numa posição inferior, havia tido coragem de questionar ou, mais ainda,
dizer não a Dom Karl? Certamente muito poucas. Talvez umas duas ou três vezes. Quem
sabe nunca tenha havido situação desse tipo desde o dia da sua sagração episcopal. Como
então ele poderia fazer diferente? Humanamente era impossível esperarmos dele postura
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�oposta àquela tomada. Refletindo agora no campo da fé, teria que ter havido uma ação do
Espírito para que, numa estrutura de Igreja anterior ao Concílio Vaticano Segundo, Dom
Karl ousasse agir de forma a gerar comunhão e participação. De forma libertadora,
poderíamos dizer hoje. Teria então sido profeta. Teria sido santo. No melhor sentido bíblico
do termo, teria sido rei.
O povo de Deus de lá era capacitado para entender o bispo Karl caso ele tivesse
profetizado, agindo de forma oposta àquela que desempenhou no batismo de papai? Rita
Preta, sim. Vovô Júlio, também. Estes pareciam estar preparados para o porvir da Igreja
nova gestada com o Concílio. Mas teria havido problemas. Muitos. Rogério ri para si
mesmo balançando negativamente a cabeça. Mas isto era óbvio, não pode haver santidade
sem problemas. Nunca vai acontecer santidade na Igreja sem que coexista com ela a dor e o
sofrimento. Caso Dom Karl tivesse agido de forma profética, nesse caso teria atraído para si
problemas. Jesus de Nazaré nos apresenta um Deus que não promete acabar com as
confusões e dores da vida. O Deus de Jesus é aquele que vem ao mundo para dar um
sentido maior a eles. Resolvê-los e extingui-los é tarefa nossa. Humana.
“Senhor, envia o Seu Espírito e tudo será criado, e será renovada a face da terra”,
reza. A força do Espírito. O Deus desconhecido, principalmente de nós, que fazemos parte
da Igreja do Ocidente. Espírito que o Senhor Jesus nos prometeu que ficaria conosco até os
confins dos tempos e que veio pleno, veio todo em Pentecostes. Manda um novo
Pentecostes Senhor, e renova a face da terra, nos faz um no seu Amor.
Nunca aquela viagem, tantas vezes acontecida, durara tão pouco. Ao abrir os olhos
saindo da reflexão feita, Rogério se dá conta de que já estão chegando no centro da cidade
e conseqüentemente à rodoviária da metrópole. Corre os olhos pelos passageiros e repara
serem bem poucos aqueles que haviam embarcado com ele no terminal de sua cidade natal.
Tinha ocorrido uma grande troca, muitos daqueles que lá subiram haviam ficado pelo
caminho. Deste mesmo caminho, vários outros homens, mulheres e crianças surgiram.
Filhos das zonas rurais eles pareciam estar vindo à cidade maior neste domingo à noite,
para praticamente fazer duas coisas: os primeiros para entrar na fila, que a esta hora já
deveria estar bem comprida, na esperança de conseguir uma consulta médica no sistema
público de saúde, os demais haviam deixado a família em casa e vinham para o trabalho
nos lares e na construção civil.
Fecha de novo os olhos. O ônibus bem próximo da rodoviária e preso no
engarrafamento. São todos homens do caminho. Escrito com letra maiúscula: Caminho. A
lembrança da palavra como sinônimo da sua fé deixa consolado o coração. Sem ter
levantado os braços, faz conchas com as mãos e aproveitando a penumbra no coletivo – não
era bom que reparassem. Eles não entenderiam seu gesto – abençoa, olhos fechados aquele
povo de Deus. Povo do Caminho. Povo todo dia peregrinando no caminho.
A mulher à sua frente parecia estar presa no corredor. Lembrou-se de Rita Preta.
-Deixe que eu ajude a senhora, me dê esta bolsa mais pesada.
A senhora gorda e negra, já lá com os seus sessenta anos, tem muita dificuldade em
desembarcar com as três sacolas. Rogério que vinha atrás se oferece, já tomando das mãos
dela a maleta mais pesada. A velha sorri agradecida.
-Deus te abençoe, meu filho. Muito obrigada.
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�Abençoada por ele minutos antes, a dona retribuíra a bênção recebida.
V
Como seria estar com o Arcebispo doente? Apesar das várias tentativas, Rogério
não havia conseguido imaginar-se nessa situação. Nos momentos em que o vira,
solenidades, missas e nas visitas mensais ao Seminário, Dom Cristiano dava a impressão de
ser um homem muito forte. E era. Padre Heli comentara que nem gripe ele tivera nesses
últimos anos. A situação de agora do bispo, um homem tão saudável até faz pouco tempo,
era um convite à reflexão sobre a fragilidade humana. Como somos pequenos e
vulneráveis. ‘Vigiem e rezem porque vocês não sabem a hora’. ‘Quando parecemos ser
fortes, aí é que descobrimos o quanto somos fracos’. Aproveitava o convite e meditava.
A quarta-feira vai ser o dia em que estará por duas horas no serviço ao bispo doente.
Na segunda irá Vitor e na terça será o Mário. Havia combinado para aquela noite uma
conversa com Vitor. Estava curioso. Como teria sido a experiência do colega?
-Nem cheguei a ir lá no Palácio Episcopal. Hoje e amanhã são dias em que ele está
realizando exames o dia todo no hospital. Se vocês esperavam pela minha experiência para
saber como melhor se conduzir, dançaram. Rogério, você será o primeiro a cuidar de Dom
Cristiano. Será você quem nos dará as dicas sobre o como deveremos proceder com o nosso
pastor acamado.
Apesar de também rir com os amigos, Rogério não conseguia disfarçar deles a preocupação
que o serviço ao bispo lhe causava. Ainda mais agora, já que seria ele o primeiro dos cinco
jovens a exercer o papel de ajudante do arcebispo na sua moléstia.
Chegou à bela casa em estilo neocolonial, onde se situava a Cúria, quinze minutos
antes da hora marcada. Pensou ficar dando voltas no quarteirão, não só para que chegasse a
hora agendada, mas principalmente para que se dissipasse a estranha sensação de temor
frente ao desconhecido, que lhe acometia desde o momento em que acordara na manhã. O
raio perfurando a serra como uma lança em zigzag, seguido momentos após do ribombar do
trovão, fez com que tomasse consciência da temeridade em não tocar imediatamente a
campainha do Palácio.
Teve a impressão de que a religiosa que lhe abriu a porta estava aguardando-o com
a mão já na maçaneta, tal foi a rapidez com que o toque de campainha foi atendido. Nunca
vira daquele hábito. Qual seria a congregação da freira já idosa, muito magra e
empertigada, que o levava casa adentro?
-Seminarista, seu nome é...?
-Rogério, respondeu ele.
-Sente aqui e fique à vontade. Vou anunciar a sua chegada a Dom Cristiano.
Os móveis de madeira muito escura, as cortinas de veludo pesadas, azuis quase
negras e as imagens barrocas em tamanho natural da Sagrada Família e de Nossa Senhora
de Bom Sucesso, davam ao ambiente um tom de sobriedade e imponência bem maiores do
que a imaginação fértil de Rogério teria sido capaz de supor. A freira desapareceu pela
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�porta meio escondida entre duas estantes tão altas quanto largas, cheias de livros que
pareciam ter sido arrumados por tamanho e pela cor da lombada.
Rogério não conseguiu ficar sentado naquela vetusta e macia poltrona que lhe havia
sido indicada pela irmã. Rato assumido de biblioteca, lá já estava ele pesquisando que
livros eram aqueles. Rápido reparou que eram documentos da Igreja, Encíclicas, Código de
Direito Canônico, Bulas Papais, textos oriundos do Concílio Primeiro do Vaticano e obras
de alguns teólogos dos séculos XVI ao XIX sobre o papel da Igreja no mundo moderno.
Em meio a eles, naqueles poucos minutos em que pôde realizar sua pesquisa nessa
biblioteca, Rogério descobriu alguns livros e documentos que pareciam meio perdidos
naquela multidão de textos focados na Igreja instituição, fortaleza e depósito da fé no
último milênio. Escondidos e humildes frente a encadernações luxuosas, muitas delas de
couro, daqueles volumes, repousavam, como se esperassem um dia serem descobertos, os
documentos das Conferências Episcopais Latino-americanas de Medelin e de Puebla, bem
como livros dos teólogos brasileiros Frei Betto, Leonardo e Clodovis Boff, sobre as
comunidades eclesiais de base e a Igreja. Com a palma da mão direita aberta enquanto
segurava o livro com a esquerda, bate carinhosamente no texto daquele que tinha sido seu
professor no rápido curso de Eclesiologia que havia feito pouco antes de se decidir pelo
seminário. O livro do Padre Vitor Codina trazia o título de Eclesiologia a partir da
realidade Latino-americana. A edição era em língua portuguesa e Rogério intentou pedi-lo
emprestado, quando já tivesse maior intimidade com a freira de hábito estranho, mulher que
parecia ter chegado direto, pensou ele, sem ter feito nenhuma escala antes, de algum
castelo medieval.
-Pode vir, meu filho, Dom Cristiano já te espera. Meu nome é Sóror Maria da Igreja
Triunfante. Qualquer coisa é só me chamar com um toque somente na sineta que se
encontra à cabeceira do nosso Arcebispo.
Enfiou rapidamente o volume do Padre Vitor entre dois grandes livros pretos encadernados
e que tratavam dos pontos a serem defendidos mediante os ataques dos iluministas.
Assustado como se tivesse sido pego num flagrante delito, Rogério só conseguiu balbuciar
algo não inteligível, fazendo com que a religiosa mostrasse uma cara de poucos amigos.
Seguiu–a. Agora passavam por um longo corredor. Nas paredes pinturas dos primeiros
bispos e depois fotografias de seus paramentados seguidores, mãos direitas à frente, como
que para mostrar a quem os estivesse admirando a autoridade que lhes era conferida por
aqueles grossos anéis. Devem ser os antigos bispos da Arquidiocese, ia pensando o jovem
seminarista naquele interminável corredor com as suas muitas portas cerradas, fazendo
aguçar a curiosidade de saber o que haveria atrás delas. Ao contrário do que sentira desde a
segunda-feira, tinha uma calma muito grande. Ouvindo os seus próprios passos e os da
freira de nome e hábito tão estranhos, Rogério ia trazendo para a consciência esta nova – e
bem agradável – sensação de tranqüilidade.
VI
-Dom Cristiano, este é o...
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�-Rogério, fora ele a completar a frase novamente tirando a freira da dificuldade com
o esquecimento do seu nome.
-O seminarista que ficará com o senhor até às 16h para ajudá-lo naquilo que o
senhor necessitar.
O sorriso franco e aberto e o olhar de paz, apesar da tentativa do gesto de saudação não ter
conseguido se concretizar, o tranqüilizaram ainda mais.
-Deus te abençoe, meu filho. Ele, com toda certeza saberá retribuir a você o carinho
de estar aqui com este velho bispo. Preso que estou neste quarto de um Palácio tão grande.
Após ter se curvado para beijar o anel do bispo, repara estarem os dois sozinhos naquele
ambiente. A freira discretamente já havia saído e ele, definitivamente, não sabia o que
devia responder à bondosa saudação do seu pastor. Desta vez não grunhiu nada. De jeito
mais simples e lógico, sorriu apenas em retribuição.
-Você conhecia o Palácio Episcopal, Rogério?
Falando baixo, longe dos microfones e dos púlpitos onde das outras vezes o ouvira e talvez
também devido à doença, a voz de Cristiano soava bem diferente. Paternal até. Lembrou-se,
num repente, do avô Júlio. Teria sido assim a sua voz?
-Não, Senhor Arcebispo, esta é a primeira vez que venho à sua casa,
-Só agora estamos nos conhecendo, preciso então lhe dizer duas pequenas coisas,
meu seminarista: você não precisa me chamar de Senhor Arcebispo. Pode me chamar de
Cristiano, ou se você não conseguir ficar à vontade, de Dom Cristiano. Caso me chame de
Senhor Arcebispo, eu serei obrigado a chamá-lo de Senhor Seminarista.
Dom Cristiano, bem relaxado, falava agora sorrindo.
-O senhor disse que eram duas coisas...
-Ah, pois sim. Você tem razão. A segunda coisa é que esta não é a minha casa. Ela é
a nossa casa. Infelizmente, apesar de estar há trinta anos como pastor da Arquidiocese, eu
não consegui, não tive a competência – e esta é uma grande falta da qual deverei estar
brevemente prestando contas ao Nosso Senhor Jesus Cristo - em fazer dela uma casa aberta
para todo o povo. Por não ter alcançado isto, nos últimos quinze anos eu não residi mais
aqui.
Notando a expressão de surpresa do seminarista, ele continuou.
-Trouxeram-me para cá à força. Depois que a doença de forma mais ampla e
definitiva tomou conta de mim, eu que já não era dono das minhas vontades, pois se o fosse
este Palácio não seria assim, perdi-a mais ainda. Reuniram-se e foram comunicar-me que
estavam me trazendo para cá, onde seria bem mais fácil o cuidado comigo até a minha
recuperação. Sutis eles são, não acha? Tenho plena consciência de que a minha recuperação
se dará no céu. Aqui na terra já sou fogueira em final de fogo.
Aquelas duas coisas que agora sabia do seu bispo, fizeram com que gostasse muito
mais dele. Que o admirasse e respeitasse não apenas por ele ser o seu Arcebispo, mas
porque começava a ver aquele ser humano sob uma nova dimensão. A de um grande
homem. Um grande homem de Deus.
-Meu filho, uma das primeiras coisas que eu aprendi aqui no seu país, logo que nele
eu tinha chegado ainda padre novo, recém ordenado, foi que as visitas são mais importantes
do que o visitado, portanto a hora não é para que eu fale, mas para que eu te escute. E eu
quero te ouvir. Conta-me, filho da sua família, do seu povo, do lugar de onde você veio. A
lembrança da minha pátria longínqua, dos meus pais, há tanto falecidos e que permanecem
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�por mim tão amados, tem estado muito viva em mim, neste tempo de fraqueza e limitação
humana que vou vivendo. Conta, filho. A hora é do seu falar...
A princípio timidamente e depois como um jorro de torneira pouco a pouco sendo
aberta até esguichar seu líquido com toda força, Rogério passou as duas horas com o bispo
viajando pelas suas raízes, visitando as suas fontes. Fez-lhe muito bem sentir que não
viajava sozinho. Cristiano ia com ele, vivendo também cada pedacinho da sua história.
Sóror Maria avisando ter terminado o seu tempo e que o Arcebispo precisava descansar,
pegou-o contando a história do batizado de bispo do seu pai Atanásio. A testa franzida não
deixava nenhuma dúvida da decepção de Cristiano com o fim da conversa.
-Eu não te disse que não tenho mais nenhuma vontade?
Beijando o anel do seu Arcebispo, Sóror Maria saiu do quarto passando a impressão de não
ter ouvido as palavras cheias de ironia do doente.
-Deus te abençoe, meu filho. Vou te esperar na próxima semana. Preciso saber deste
batizado até o final.
Antes de abrir a grande porta do Palácio Arquidiocesano, Sóror Maria da Igreja Triunfante,
admoestou-o de que não deveria nas suas estadas conversar muito para não cansar ainda
mais Sua Eminência. Sorrindo para a freira, Rogério parecia dizer-lhe que não seguiria o
conselho. Ao contrário do bispo, ele é de opinião que o mais importante não é a visita, mas
o visitado e que é este quem deve dar a toada a ser observada no encontro. Se Dom
Cristiano quiser conversar o tempo todo, que dialoguemos pois. Ele tem outros muitos
tempos para o descansar. Apesar das muitas poças d´água na rua, fazia um sol forte de meio
de tarde.
VII
Esperavam-no no seminário os demais voluntários. Foi chegar em casa e a chuva de
perguntas dos colegas caiu forte sobre ele.
-O cara é legal? Foi logo indagando Felipe com seu jeito irreverente.
-O cara é dez, ele é dos nossos, respondeu com ênfase Rogério, entrando no clima
proposto por Felipe e fazendo com que todos se soltassem.
-Então ele não fica calado o tempo todo e nem somos obrigados a permanecer de pé
ao seu lado?
-Claro que não, Cândido. Dom Cristiano é pessoa muito simples e simpática.
Imaginem vocês que eu já tive que contar a minha vida toda pra ele...
-Você se confessou com o bispo? Ele quis que você se confessasse? Agora era
Vitor que, assustado, estava perguntando. Sorrindo para ele Rogério emendou:
-Pessoal, não é nada disso que vocês estão pensando. Eu também tive preocupações
quanto à recepção e ao tempo que iria passar com o nosso doente e por isto entendo os
receios de vocês. Fiquem calmos. Não tem nada a ver vocês ficarem temerosos. Ele é muito
legal e vai deixá-los totalmente à vontade. Não me confessou e problema algum teria
havido se tal confissão tivesse acontecido. Contei-lhe a minha vida porque ele queria
conversar e saber mais sobre mim. Simplesmente por isto. Figura estranha por lá só conheci
uma. Sacam o nome da irmã que me recebeu e que cuida do Palácio Episcopal? Ela se
apresentou pra mim como Sóror Maria da Igreja Triunfante. Veste um hábito parecendo
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�medieval. Tomei o maior susto quando ela abriu a porta do Palácio. A estranha mulher
parecia ter viajado em algum túnel do tempo, tendo chegado naquele exato momento de
algum mosteiro escondido em eras imemoriais para atender ao meu toque de campainha.
-Como é Rogério, valeu a experiência do serviço ao bispo?
-Claro, Padre, foi muito bom. Pode continuar contando comigo. Quarta-feira que
vem, lá estarei eu de novo.
-Que bom que você gostou. Dom Cristiano é uma pessoa muito simples e amiga.
Vocês outros todos irão também gostar dele. Tenho que celebrar agora na matriz. Já estou
atrasado. Depois quero saber mais da sua experiência, falou Padre Heli, já abrindo a porta
principal do Seminário.
Tranqüilizados todos pelas palavras de Rogério, a conversa mudou de rumo. O assunto
agora já era futebol. Minutos depois Rogério deixou a discussão já bem acalorada naquele
momento.
-Turma, o papo está bom, mas como não consegui, ainda, convencê-los da
superioridade do meu time, vou procurar fazer algo mais fácil. Estou indo estudar um
pouco da língua grega. Semana que vem teremos prova e, por enquanto, a matéria está,
literalmente, sendo grego para mim...
Ao caminhar para a sala de estudos Rogério pensava no dia tão intenso que tinha
vivido e na obrigação que havia assumido com a sua mãe de levantar maiores dados sobre o
xará do pai, o tal do Atanásio. Que o santo tivesse um pouco de paciência e aguardasse
mais um pouco. A matéria de grego por estudar, apesar de difícil e até um tanto chata na
sua concepção era assunto mais urgente.
VIII
-Esse clima daqui é tão diferente do da capital.
Constatava pela enésima vez.
-Aqui é sempre no mínimo cinco graus mais frio do que lá na cidade. Sabe,
Francisca, é por isto que nunca me adaptei a morar lá.
-Eu também, Alice, caso tivesse sido obrigada a residir na capital, teria sentido
muita dificuldade para permanecer nela. Os de lá quando vêm para cá riem de nós. Das
somente duas ruas com os seus pedacinhos todos transversais, dando a idéia, quando
avistada lá do alto do mirante, de uma escada torta que vai serpenteando seguindo os altos
do morro.
-É por isto - retomava Francisca - que aqui é bem mais fresquinho. Vivemos no alto
da serra. Bem nas alturas e, portanto, mais próximo do céu. Em pleno verão e estamos com
a temperatura tão amena.
-É mesmo. E sabe mais? Adoro dormir sentindo uma pontada de frio. Ter que ficar
toda coberta.
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�Pela Rua Direita, a mais comprida, as duas mulheres vão conversando, caminhando
devagar, observando e cumprimentando a todos que vão cruzando com elas. Estão indo
visitar Rita Preta, a antiga zeladora da Capela de São Sebastião. As conversas do jantar de
sábado reavivaram velhas lembranças. Resolveram ir se encontrar com a velha.
-Cento e três anos! Que mulher mais forte! Rita Preta é a única pessoa centenária
que eu conheço. Mulher forte e lúcida. Com esta idade toda e ainda dá conta de tudo. Tem
lembranças de todos. Quisera eu que Deus me concedesse a graça de chegar até uma idade
tão avançada, admirava-se Francisca.
-E dos quatro filhos que teve só restou Sebastiana. Os outros três morreram faz
tempo.
-Graças a Deus que Tiana está viva. Além de zelar pela mãe, ela também herdou a
zeladoria da Capela da Rita Preta. Sebastiana cuidando da Capela de São Sebastião. Será
que foi por ter o nome do santo que ela, ao contrário dos irmãos, se quedou viva?
-Ô de casa!
Já tinham chegado. A casa bem simples, porta e duas janelas azuis, uma de cada
lado. Pintura das paredes de cal já bem esmaecida pelo tempo. Cor mais para terrosa. Cor
de burro fugido, dizia o povo de lá.
-Ô de fora! Respostou Tiana Preta lá de dentro.
-Mãe, se ajeite que temos visita.
Puderam escutar Tiana avisando a sua mãe da chegada das visitantes. Não ouviram,
porque ela já falava bem baixo, foi a resposta de Rita:
-Sua boba, eu já tinha escutado. E a voz, eu aposto que é da Dona Alice, mulher do
finado Júlio.
-Pois mãe, não é que a senhora acertou de novo?
Dente nenhum na boca, Rita ria da constatação pela filha da sua lucidez e bom ouvido.
Assuntaram de tudo, falaram de todos. Vivos ainda e também daqueles que já
adormeceram na paz de Nosso Senhor. O assunto ficou só esticando parado nele mesmo,
foi quando a lembrança de Alice e Rita pousou naquela visita de bispo acontecida cinqüenta
anos atrás. Sebastiana, apesar de nesta época já ser uma menina quase adolescendo nos seus
dez anos, não esteve presente ao batizado na capela e não se lembrava do fato, que com
certeza foi muito comentado por lá. Francisca ouvia tudo e sempre que sentia alguma
discrepância nas versões da sogra e da zeladora sobre o batizado do seu marido, apontava
logo. Queria ter a história correta do caso e para isto, nada melhor do que conhecer e
confrontar as versões de duas das personagens principais daquele ato.Precisava saber
também quem havia feito o registro do batizado no livro de assentamentos da Capela.
-Mas foi ele mesmo, Dom Karl. Ele até fez uma observação no final explicando
porque havia feito o batizado fora da sua diocese. Que era caso de doença da criança. Sabe,
Dona Francisca, esse bispo podia entender muito do seu bispado e das coisas da Igreja, mas
de criança e suas mazelas, ele não compreendia nada. Disto de doença de neném novo, eu
afianço que ele era desinteligente. Eu que ajudei o menino – como era mesmo o outro nome
que ele devia de ter? – Ah, isto mesmo, Ário. Como estava dizendo, eu que ajudei ele e
mais tantos e tantos inocentes a verem a luz, sei quando a criança vai ou não vai vingar.
Sua criança era mirrada, Dona Alice, mas tinha muita resistência para vencer a dona da
foice se ela passasse ali por perto.
-Se a senhora sabia que ele não ia morrer, por que não falou isto com o bispo?
Questionou Francisca mostrando toda a sua curiosidade.
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�A velha riu forte, mostrando sem pudor a boca banguela e disse:
-Mas eu fiquei calada foi por dois motivos. O primeiro porque eu não podia deixar
perder a oportunidade de ter um bispo visitando a Capela. O segundo é porque o menino, o
finado Júlio e a sua esposa Alice, que está aqui presente conosco hoje, mereciam que
mereciam o batizado importante como foi acontecido.
Assentindo com a cabeça, Francisca mostrava a sua concordância com os argumentos de
Rita Preta. Ao se despedirem, indagaram de Sebastiana se seria possível elas terem acesso
ao batistério de Atanásio. Queriam ver a letra do bispo no assentamento. Conhecer cada
palavra que ele lá deixara registrada naquele momento.
IX
O intenso bocejar já contamina os seminaristas mais próximos durante a oração da
manhã na Capela do Seminário. Na noite anterior, lembrado que estava da promessa feita à
mãe de levar para os de casa quem tinha sido Atanásio, Rogério enfurnara-se na biblioteca.
A pesquisa fora tão interessante que quando se deu conta do tempo, já era alta madrugada.
Inicialmente não tinha a pretensão de viajar para casa em mais este final de semana,
mas o que ele encontrou a respeito dos Padres da Igreja – agora ele já sabia que se tratavam
dos Padres da Igreja – citados pelo bispo que havia batizado seu pai, fizeram com que
mudasse de idéia. Queria porque queria estar junto à família para falar-lhes das descobertas
feitas. Como apreciara as palavras de Rita Preta ao induzir seus avós na escolha de
Atanásio como nome da criança. Nos seus estudos sobre estes bispos. Sim, todos os três
haviam sido bispos, ele se surpreendera ao constatar a quantidade de sucessores dos
apóstolos que nos últimos dias têm rodeado a sua vida: Dom Karl, Dom Cristiano, Dom
Atanásio de Alexandria, Dom Eustázio de Antioquia e o mais polêmico deles, Dom
Eusébio de Cesaréia.
Ao contrário da última vez, a viagem desta feita pareceu-lhe bem maior. Deu a
impressão de que a distância havia aumentado, tamanha era a vontade de chegar para
relatar-lhes imediatamente as novidades pesquisadas. A realidade não costuma ser como
nós a projetamos e foi isto o que aconteceu na sua chegada. Não havia ninguém em casa.
Seus pais tinham ido ao mercado para prover as compras do mês, Alice visitava uma amiga
doente e das filhas, as suas irmãs, notícia nenhuma havia dos seus paradeiros. Dona
Raimunda, sempre atenta a tudo que acontecia nas vizinhanças, rapidamente, tendo visto
Rogério dar com a cara na porta, tinha feito o relatório completo do que observara a
respeito dos moradores da residência diante da sua.
O pior de tudo é que como a casa se encontrava trancada, o mais razoável a
proceder seria a aceitação do convite da vizinha para estar em sua casa até que retornassem.
Pelo menos não precisarei ler o jornal da semana. Até que o meu povo chegue já estarei
ciente de tudo o que tem acontecido na comunidade, foi pensando Rogério enquanto
atravessava a rua. Estava com sorte. Menos de meia hora depois, Alice chegava, cabeça
baixa, deixando entrever nas mãos o terço que rezava todas as vezes que caminhando se
encontrasse sozinha. Nem bem Alice e o neto haviam entrado em casa, ouviu-se o ronco do
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�motor do carro aninhando-se na garagem. Ainda dentro dele Rogério vê seus pais e, no
banco traseiro, Anete e Anita. Sorri. A repórter Dona Raimunda falhara. Suas irmãs tinham
ido também fazer as compras com Francisca e Atanásio.
Tinha todo sentido a ponderação da mãe, convidando todos para o almoço fora.
Além de não ter vontade nenhuma de enfrentar a cozinha. Afinal, estava cansada das
compras feitas, o momento com a presença do filho seminarista passara a ter uma
conotação especial. Ainda mais que ele vinha com novidades interessantes para contar.
Notícias do xará de Atanásio, assunto que estava por demais envolvendo a todos de casa
nos últimos dias.
-No restaurante do Seu Antônio, o bom português, tem uma mesa redonda nos
fundos. Da última vez que estivemos lá, eu até contei as cadeiras. É perfeita para nós.
Longe dos outros ouvidos e o melhor é que é do tamanho exato para a família.
A concordância imediata de todos veio junto ao apressamento de Alice.
-Vamos logo, antes que outra família de seis pessoas, chegando primeiro, resolva
tomar a nossa mesa.
Dona Raimunda não deve ter entendido patavina de nada. Nem bem acabara de ser
guardado, eis que a garagem se abre e lá vai o automóvel de novo rumo à rua. Só que agora,
dentro dele, não havia espaço nem para os anjos da guarda. Estes, com toda certeza, e é
para isto que elas foram feitas, usaram das suas belas asas e rumaram também para o Sô
Antônio, voando na velocidade do veículo e bem em cima dele.
X
Apesar de ter a cabeça sempre baixa, Alice foi a primeira a ver que a mesa redonda
estava vaga. O atraso do garçom em atendê-los serviu de auxílio a Rogério para que desse
início ao seu relato. Quando enfim o empregado se aproximou da mesa, estavam todos tão
entretidos com a história que nem se deram conta da sua presença ao lado da mesa.
Precisou repetir três vezes que estava às ordens. As pausas para que fossem feitos os
pedidos foi usada pelo relator na concatenação dos fatos e idéias. Para que eles
entendessem a história de Atanásio e dos outros dois bispos era necessário que se fizesse
toda uma contextualização do ambiente político e religioso vivenciado por aqueles
personagens e isto não era nada simples. Nossos pastores tinham vivido em tempos de
grande complexidade e turbulência.
-Papai além de ter sido batizado por um, também tem o nome de bispo. Um dos
grandes Padres da Igreja continuou a falar Rogério.
-Afinal, ele era padre ou bispo? Anita, fazendo cara de que as coisas estavam indo
mal porque ela não estava entendendo, perguntou. Rogério, mesmo sem que esperasse este
tipo de questionamento ainda quase no início da sua história, sorriu para a irmã. Num
rápido passar de olhos pela mesa notou que a dúvida de Anita era também a de todos.
-Gente, todo bispo é padre no sentido de presbítero, aquele que recebeu o
sacramento da ordem. É um sacerdote ministerial. Atanásio foi padre neste sentido de ter
sido ordenado Mas foi também bispo no sentido de ter sido sagrado como sucessor dos
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�apóstolos e responsável pelo pastoreio de uma parte do povo de Deus. Mas o significado
que se dá aos Padres da Igreja é mais amplo. Tanto que dentre eles nós vamos encontrar
também leigos.
A expressão Padres da Igreja no seu sentido mais focado nomeia os autores cristãos
da antiguidade, tanto clérigos quanto leigos, como eu lhes disse, que se distinguiram pela
qualidade e profundidade da sua doutrina, pelo caráter exemplar de vida e pela aprovação
da Igreja. Num aspecto mais ampliado e mais usual, são também denominados como
Padres da Igreja outros autores cristãos notáveis dos primeiros séculos, ainda que sua vida
ou doutrina não tenham sido completamente isentas de fraquezas ou erros, alguns até
mesmo graves, como veremos quando eu estiver lhes falando de Eusébio de Cesaréia.
Neste sentido mais aberto são levados em conta o grande valor do conjunto das obras e
também a influência rica e fecunda que eles exerceram no seio do cristianismo antigo.
A época dos Padres da Igreja tem início na segunda metade do primeiro século. Os
primeiros textos “patrísticos” são do mesmo tempo de uma boa parte dos escritos do Novo
Testamento. No Ocidente o tempo dos Padres vai até o Século VI, diferentemente do que
ocorre no Oriente onde este período se estende por mais dois séculos, indo até o Século
VIII.
-Muito interessante – atalhou Atanásio – você está nos dizendo que os primeiros
Padres da Igreja foram contemporâneos dos Apóstolos. Isto significa então que alguns deles
até podiam esta vivos quando da morte e ressurreição de Jesus.
Rogério fica um momento em silêncio enquanto mentalmente faz as suas contas.
-Mais ainda, papai. Quem sabe, alguns deles não tenham até conhecido a família de
Jesus em Nazaré?
-E por que não o próprio Jesus? Encerrou Anita.
-A ciência que estuda esta literatura cristã dos primeiros séculos é chamada pelo
nome de Patrística, ou pelo seu sinônimo, Patrologia. Há hoje na Igreja uma redescoberta
dos Padres. A riqueza dos seus estudos e da sua teologia tem servido para a renovação
teológica e litúrgica ocorrida em torno do Concílio Vaticano II. A assimilação dos escritos
patrísticos é fonte essencial no diálogo ecumênico entre as igrejas separadas, por exemplo.
Com um muxoxo Alice dava a entender que era hora daquela explanação voltar para
o essencial, ou seja, para a figura daquele que dera nome ao seu filho. Bom entendedor que
era, Rogério, com uma rápida justificativa sobre a necessidade que teve de explicar
primeiro o que eram os tais Padres da Igreja, tomou de novo a trilha de Atanásio.
-Nascido por volta do ano 300 da era cristã, nosso bispo viveu num tempo de
grandes turbulências na Igreja e na política. Aliás, é importante observar para vocês que
naquele tempo estas coisas de religião e política andavam bem misturadas, como vão logo
notar. Também na sua cidade natal de Alexandria, tinha por estes tempos um padre muito
persuasivo, dotado de grande capacidade oratória e inteligência, que andava questionando a
divindade de Jesus. Para este padre, somente Deus era o transcendente, aquele donde tudo
derivava.
O nome desse sacerdote era Ário. Para ele, Deus era o princípio sem princípio,
separado de todos os outros seres por um abismo intransponível. Por causa disto, para Ário,
17
�o Verbo não é sem princípio, porque é derivado do Pai e está encarnado no mundo, o que
era uma coisa totalmente absurda e inconcebível para Deus, que era, conforme a sua
teologia, totalmente separado de todos os outros seres de forma, como eu já lhes disse,
intransponível. A conclusão dele então é que se Jesus se encarna ele se põe sujeito ao
tempo, não pertencendo, portanto à ordem do Absoluto, mas à ordem dos seus derivados,
embora, ele ressalva, somente Jesus derive do Pai e seja o autor dos outros seres.
Para o arianismo apenas o Pai é o Deus verdadeiro. O Verbo, ou seja, Jesus Cristo e
mais ainda o Espírito Santo, não podem nem devem ser chamados de Deus, a não ser de
maneira absolutamente relativa.
-Meu Deus! Assusta-se Francisca.
-Jesus e o Espírito Santo não são também Deus para esse Ário?
-Não, mãe. Para ele o os seus seguidores, somente Deus Pai é Deus. Deus Filho e
Deus Espírito Santo, derivam de Deus, não sendo assim absolutos porque teriam tido um
princípio. Filosoficamente falando, podemos dizer que Ário, de uma forma instigante
interrogava a fé fazendo a seguinte pergunta: “Como imaginar Deus-Absoluto vindo ao
mundo relativo? O absoluto é o Todo e não pode caber no relativo”. Era assim que
funcionava a cabeça de Ário.
-Isto é muito profundo. Da minha cabeça já começa a sair fumaça, dizia Anita
balançando forte a cabeça.
-Da minha também. Vocês não sentem o cheiro dos meus cabelos queimados?
Confirmava Anete fazendo todos rirem.
-É profundo sim, meninas. Tão profundo e sério que por causa deste problema foi
convocado pelo Imperador Constantino o Primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia.
-Mas não é o Papa quem deve convocar o Concílio? Que história é esta do
imperador chamar os bispos? Anita agora perguntava.
-Rogério, explica pra mim também o que quer dizer esta palavra ‘ecumênico’?
Ampliou a pergunta Anete.
-Eu não tinha dito pra vocês que naqueles tempos a função política e a religiosa
eram muito misturadas? Está aí uma prova disso. Foi este imperador que no ano de 313,
com o Edito de Milão pôs fim às perseguições aos cristãos. A partir daí, junto com a sua
família, ele se converte à nossa fé e passa a interferir de forma bastante intensa na
Igreja, a ponto de até vir a convocar o Concílio de Nicéia. Ecumênico, Anete, tem o
sentido aqui de universal.
De inimiga a Igreja passar a ser uma instituição sob a influência e até o jugo
algumas vezes do Estado. Há momentos na história da Igreja que se podia questionar o
que seria pior: se a perseguição ou a submissão ao poder temporal.
-Eu não tenho dúvidas que a perseguição tenha sido desejada pelos santos nesses
momentos... Falava agora a sábia Alice.
XII
18
�Atanásio participou do Concílio. Secretário que ele era à época do seu bispo,
chamado Alexandre de Alexandria. Este bispo e santo da nossa Igreja foi quem
primeiro questionou e condenou Ário, que era padre da sua diocese, tratando como
herética a sua doutrina. Com a morte do bispo Alexandre, Atanásio assumiu a diocese
de Alexandria e teve a partir daí uma vida extremamente movimentada. Uma vida que
poderia se transformar num eletrizante filme de suspense e de ação.
A história do seu longo episcopado, do ano 328 até a sua morte em 373, confundese a todo instante com a própria história da heresia de Ário. Foram quarenta e cinco
anos de peripécias incessantes, dos quais, dezoito passados no exílio ou na
clandestinidade. Num desses tempos Atanásio chegou a ficar alguns meses escondido
no cemitério, dentro da sepultura onde estava seu pai. Noutro período de perseguição
dos Arianos, Atanásio fugiu para o deserto, apoiador e entusiasta que era da vida
eremita.
Nesse tempo houve muitas marchas e contramarchas na questão teológica relativa à
Trindade. Naqueles anos, diferentemente de hoje, o povo entrava fundo nessas
discussões, tomando partido ora de um, ora de outro lado.
-Devia ser mais ou menos como acontece conosco hoje em relação ao futebol, não
é, meu filho? Atanásio perguntava.
-Sim, pai. O problema, além de apaixonante, era fundamental, porque dele dependia
a questão básica da nossa fé: a salvação. Simplificando bastante, era assim: se Jesus
Cristo não é Deus, como é que Ele ia poder me salvar? Teria sido impossível. Tem um
teólogo que me ajudou a entender melhor este ponto que era muito confuso para mim.
Vocês se lembram daquelas histórias do Barão de Munschausen, o grande e incorrigível
aventureiro mentiroso que papai nos contava? Perguntou para as irmãs gêmeas.
-Claro, como íamos nos esquecer? O barão que já era muito mentiroso, ainda tinha
as suas lorotas e bravatas aumentadas ainda bem mais por papai quando ele nos
contava. Não era mesmo, papai?
Risada geral na lembrança das ampliações nas já imensas invenções do barão feitas por
Atanásio para aumentar ainda mais a atenção dos filhos quando lhes contava histórias
para que dormissem.
-Recordam-se da forma como o nobre mentiroso se safou quando afundava no
pântano? O barão pegava com força o capote com que estava vestido pela gola e puxava
para cima, conseguindo assim se livrar da lama onde estava se chafurdando. Nós,
humanos, sermos salvos por outro ser humano seria tão impossível quanto o que
aconteceu nesta cena do nosso querido barão. Puxando a sua própria roupa era
impossível ele se livrar da areia movediça que o envolvia. Só Alguém muito maior teria
condições de nos puxar e salvar. Resumindo: só Deus é quem pode salvar o homem.
-Meu Deus – se benzeu Alice – não é que eu até estava achando que este bololô de
arianismo era só futrica de gente sem ter muito que fazer?
-Pois é, vovó. A coisa era muito séria. Daí também podemos depreender da
importância de Atanásio para a Igreja daquele tempo e também para a de todos os
tempos, inclusive a nossa. Vocês bem são capazes de imaginar o que poderia estar
ocorrendo conosco hoje, se não tivesse havido Padres da Igreja como Santo Atanásio
para defender a nossa fé. Por isto, ele é até hoje conhecido como o Santo Coluna da
Igreja. Uma história interessante que se conta do seu xará, papai, diz respeito a um dos
19
�seus retornos do exílio. Como eu lhes tinha dito, a vida dele foi agitadíssima e em
vários momentos ele teve que se exilar. Numa dessas voltas, vejam só o que aconteceu.
Eusébio de Nicomédia, um bispo convertido ao arianismo, convocou um concílio para
condenar o nosso santo. No meio duma sessão condenatória, fizeram entrar uma mulher
com os cabelos desgrenhados, que, em altos brados, acusava Atanásio de ter dela
abusado. Um dos padres amigos de Atanásio, percebendo o ardil, levantou-se e foi até a
mulher, exclamando: “Como? Então é a mim que imputas este crime?!” Ela, que não
conhecia o santo, replicou: “Sim, é a ti. Eu bem te reconheço”. Houve uma gargalhada
geral, como esta aqui na mesa agora e a mulher impostora saiu de fininho e toda sem
graça desmascarada que fora.
-Mas não ficou só nisto. Os inimigos de Atanásio continuaram e numa cena um
tanto quanto mórbida para eu lhes contar aqui neste almoço...
-Começou, agora conta, definiu Anita.
-Então vamos. Os hereges, mostrando, depois da pobre mulher contratada por eles
ter fugido, uma mão ressequida, afirmaram que ela pertencia a um tal Arsênio, que
havia tempo desaparecera e que, certamente, fora esquartejado por Atanásio para efeitos
de magia. O santo, que de antemão sabia da armação contra ele, fez entrar na sala o
Arsênio, que vivia então como monge no deserto. Mostrando-o, disse aos acusadores:
“vejam o Arsênio com as suas duas mãos. Como o Senhor Criador só nos deu duas, que
meus adversários expliquem de onde tiraram esta terceira”. Termina a história com os
hereges confundidos provocando muita confusão para que no tumulto a sessão
malfadada fosse suspensa.
-É verdade, meu filho. A vida deste grande santo podia dar um belo dum filme.
-Eu não tinha lhes falado, mãe? Dentre os seus muitos escritos ele redigiu também
uma vida de santo que fez um imenso sucesso até o final da Idade Média. Um bom
enredo também para o cinema. De forma, hoje se vê, um tanto romanceada, Atanásio
contou-nos a vida do primeiro grande eremita da Igreja, Santo Antão.
-Eremita é a mesma coisa que herege? Perguntou Anete, fazendo rir a todos.
-Claro que não, Anete. Eremitas eram homens que indo para o deserto para uma
vida radical de isolamento e pobreza se tornaram os criadores do primeiro grande e
espontâneo movimento penitencial na Igreja. Um movimento que nasceu no meio do
povo e que era praticado pelos leigos. Eles foram chamados de monges porque viviam
sozinhos e eremitas porque moravam no deserto. Eles, a princípio, não eram hereges e
dentre eles tivemos homens de muita santidade, vários deles reconhecidos pela Igreja e
elevados aos altares. Conta Atanásio que Antão, natural do Egito, morreu em 356 com a
idade centenária de 105 anos.
-Rogério, agora que já sei quem foi o meu grande xará, Santo Atanásio, eu estou me
sentindo na obrigação de conhecer um pouco mais da vida dele. Você me indica algum
livro ou me traz algum artigo sobre a sua vida para eu ler?
-Claro papai. Eu também quero conhecê-lo mais. Eu sei que na grade curricular de
Teologia eu vou ter que estudar Patrística. Agora que já conheço um pouco da matéria,
fiquei com água na boca à espera do semestre em que terei a oportunidade de me
aprofundar nesse estudo.
20
�XIII
As sobremesas já haviam sido escolhidas e pedidas, mas Rogério ainda não havia
terminado.
-Quero falar com vocês, antes de voltarmos para casa, mais algumas coisas.
Apesar das muitas informações já repassadas, o assunto havia como que enfeitiçado a
todos. Ninguém apresentava mostras de cansaço ou enfado, sendo dada assim uma
autorização tácita para que ele prosseguisse.
-Chamados também de símbolos, desde os tempos apostólicos, os cristãos tinham os
seus credos. Neles os nossos irmãos mais velhos deixavam registrados os fundamentos
resumidos da fé cristã. Os catecúmenos dos primórdios da Igreja durante a sua longa e
profunda preparação para o batismo, iam decorando o Símbolo da fé que iriam assumir.
No dia do batizado, tinham que declamá-lo, de cor, para o bispo geralmente em
cerimônias muito bonitas. Não podemos nos esquecer que muitos períodos desse tempo
foram épocas de perseguição religiosa. Nessas situações, os credos funcionavam para os
cristãos como seus passaportes durante as viagens. Ao chegarem numa nova cidade eles
procuravam a comunidade católica e para serem aceitos, recitavam para os irmãos
daquele lugar o credo recebido no batismo, comprovando assim a sua fé e pertença ao
povo de Deus.
O Primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia teve também o seu Símbolo. Através dele
a Igreja fazia mostrar a todos os fiéis a verdadeira fé, livre das heresias que grassavam
nessa época, das quais a mais importante era a Ariana. Trouxe aqui para vocês o
Símbolo da fé que foi elaborado nesse Concílio. É conhecido como o Credo de Nicéia.
Tenho certeza que vocês irão reconhecê-lo, principalmente na sua primeira parte, de
imediato. Nas cópias que fiz lá no Seminário, coloquei em itálico as partes que nele
foram introduzidas nesse Concílio Ecumênico. O Símbolo que vocês vão ter agora em
mãos foi desenvolvido em Nicéia a partir de um outro mais antigo, chamado Símbolo
de Cesaréia.
“Cremos em um só Deus,
Pai todo poderoso,
Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis,
e em um só Senhor Jesus Cristo, Filho único
gerado pelo Pai, isto é, da substância do Pai,
Deus nascido de Deus, luz nascida da luz,
Deus verdadeiro nascido de Deus verdadeiro,
gerado, não criado, consubstancial ao Pai,
Por quem tudo foi feito no céu e na terra.
Por nós, homens, e por nossa salvação, ele desceu,
Ele se fez carne e se fez homem.
Sofreu a paixão,
Ressuscitou ao terceiro dia,
Subiu ao céu de onde voltará para julgar
Os vivos e os mortos.
21
�E no Espírito Santo.”
Depois desta última parte vem ainda a forte sentença contra os hereges:
“Quanto aos que dizem: houve um tempo em que Ele não era, ou: Ele não era antes
de ser gerado, ou então: Ele saiu do nada, ou que o Filho de Deus é de uma outra
substância ou essência, ou que Ele foi criado ou que não é imutável, mas sujeito à
mudança, a Igreja os anatemiza.”
Persignando-se, Alice se mostra assustada com a parte final do Símbolo e
principalmente com o significado da palavra final: anátema, que conforme explicado
por Rogério é o mesmo que expulso, posto fora da Igreja.
-O garçom, já está de olho enviesado para nós, terminamos de almoçar faz tempo e
tem fila de espera no restaurante. Hora de pagar a conta e voltar pra casa. Rogério, em
casa à noite, nos contará sobre os dois outros nomes que foram oferecidos aos seus avós
como opções para nomear o pai de vocês, sentenciou Francisca já fazendo uso do seu
instinto de dona de casa ajuntando os pratos para facilitar a vida dos auxiliares da casa.
-É isto mesmo. Vamos continuar a conversa depois do jantar. Quero contar a vocês
algumas coisas interessantes sobre Eusébio e Eustázio.
-Eusébio ainda vá lá, apesar de algumas restrições. Agora esse nome de Eustázio é o
fim da picada... Cutucou Anete enquanto aguardavam o garçom trazer o troco para
Atanásio.
XIV
-Também concordo com Anete, este nome Eustázio é muito feio.
Começou assim a retomada do palpitante assunto dos nomes sugeridos pelo Bispo Dom
Karl, na longínqua noite do batizado de Atanásio. As meninas deitadas nas almofadas
do chão da sala, Atanásio e Francisca na poltrona chamada de namorar pelas gêmeas,
Alice na cadeira de balanço que pertencera a Júlio e Rogério no banquinho da varanda,
trazido por ele para a ocasião. Todos a postos e bem acomodados para a continuação da
viagem pelos tempos em que homens de muita fibra e coragem defenderam a nossa fé
das várias heresias que tentavam macular a Igreja daqueles dias.
-Apesar do nome esquisito e nome não deve mesmo ser critério para definir a
estatura de um homem, Eustázio de Antioquia foi também um importante Padre da
Igreja. Chamado de inimigo número um dos arianos, ele é personagem vigorosa e de
primeira linha no início da crise gerada pela heresia de Ário. Desde o primeiro
momento em que o padre herege deu a conhecer suas idéias, Eustázio, de forma firme,
decidida e sensata, havia se oposto a elas, tendo sido o bispo de Antioquia nos quatro
anos que antecederam o nosso já tão falado Concílio de Nicéia. Segundo um historiador
antioqueno do Século V, Teodoreto, foi Eustázio quem abriu o Concílio, proferindo o
discurso de boas vindas ao já conhecido de vocês, o Imperador Constantino, no dia 30
de maio de 325.
22
�Em seguida ao discurso de Eustázio o imperador apresentou o seu. Nele, exprimia o
desejo de que a paz da Igreja fosse restabelecida. Dou para vocês mais um exemplo de
como a política estava imiscuída nas coisas da Igreja. Sabem que para poderem ir às
sessões do Concílio os bispos tiveram postos à disposição pelo Imperador os meios de
transporte do Império?
Eustázio foi um dos grandes líderes de Nicéia. Segundo ainda o tal historiador da sua
terra, o Teodoreto, ele foi um “Campeão da Verdade”. Tratava severamente os bispos
simpatizantes de Ário presentes no Concílio. Um desses bispos recriminados por
Eustázio foi o Eusébio de Cesaréia, aquele que foi a terceira opção de nome para papai
e que vou lhes contar daqui a pouco, tinha uma posição um tanto quanto flexível em
relação a Ário e a suas idéias.
Em razão dos seus textos duros e determinados contra o arianismo, Eustázio foi
julgado pelos hereges quando depois de terminado o Concílio de Nicéia, estes
reapareceram graças às flutuações políticas da família imperial, como o adversário que
devia ser derrubado. Olha gente, que aqui está mais uma prova da ingerência do estado
na vida eclesial. Eis que um sínodo de bispos arianos destituiu-o da Sé Apostólica e o
imperador o exilou na Trácia, onde faleceu antes da morte de Constantino, ocorrida em
337.
Como tem acontecido com os outros Padres da Igreja, a obra pequena, mas muito
densa e importante, de Eustázio tem sido revisitada e valorizada. Ele foi o primeiro a
sacar e denunciar uma das maiores falhas da Cristologia ariana: a redução do próprio
Verbo, mutável e passível à condição de alma na Encarnação e, portanto, a substituição
do Verbo pela alma humana de Cristo, limitando desta forma a Sua humanidade.
Chegou a hora de falar um pouco também do terceiro e mais controverso bispo
dentre os três oferecidos como nomes para o papai: Eusébio de Cesaréia. Este homem
foi o primeiro grande historiador da Igreja, contando-nos em sua “História Eclesiástica”
a vida da Igreja desde o final dos tempos dos apóstolos até as vésperas do Primeiro
Concílio Ecumênico de Nicéia.
Homem muito culto, amante dos livros e da boa linguagem, foi discípulo de Pânfilo
na Escola Teológica dirigida por este em Cesaréia. De seu mestre, que morreu
martirizado, Eusébio herdou o amor pelos manuscritos, o cuidado na transmissão crítica
dos textos e o fervor pela Sagrada Escritura. Deixou muitas e muitas obras. Várias delas
hoje sabemos, não são da sua lavra. Sendo consideradas como tendo outros autores,
talvez discípulos seus as tenham produzido.
Foi um Padre da Igreja controvertido porque era simpático às idéias arianas, tendo
chegado a proteger Ário na sua Diocese. No Concílio de Nicéia fez a proposição da
fórmula de fé, o Símbolo da sua Igreja, como solução do impasse. Segundo esse Credo
o Verbo vem de Deus. Foi considerado como muito genérico pelos bispos conciliares
podendo prestar-se a equívocos por não deixar especificado o modo dessa procedência.
Repararam uma coisa interessante e muito intrigante? Dom Karl propôs três nomes
de Padres da Igreja como possibilidades para nomear papai. Dois deles, agora que vocês
já conhecem um pouco das suas histórias, são totalmente justificados levando em
consideração que se opuseram totalmente ao herege Ário, que era o nome que havia
sido definido anteriormente por vovô para o papai. Tanto Atanásio quanto Eustázio
foram verdadeiros baluartes na defesa da fé cristã contra Ário. Tanto que um foi
chamado de “Coluna da Igreja” e o outro de “Campeão da Verdade”. Difícil de
entender e explicar é a inserção por Dom Karl de Eusébio de Cesaréia com os dois.
23
�Balançando negativamente a cabeça, Alice demonstrava inquietação. Queria falar.
-Está claríssimo. Dom Karl, colocando também o Dom Eusébio como uma das três
opções, quis homenagear um homem de coração bom. Um homem que podia até se
enganar, como nós todos muitas vezes nos enganamos, mas que agia sempre de boa fé.
O fato de ele ter protegido Ário não pode servir como prova concreta de que Eusébio
estava totalmente concordante com a heresia ariana. Para mim, este Eusébio está nos
dando uma lição. Dando guarida ao Ário ele estava querendo nos mostrar que devemos
sempre combater o pecado, mas amar e perdoar o pecador. E tem mais, para mim o
Eusébio, aliás, Dom Eusébio, queria mesmo era trazer para o rebanho de Deus uma
ovelha desgarrada. Uma não, elas eram muitas porque se ele tivesse trazido o Ário,
quantos outros não teriam vindo com ele para o nosso redil? Eusébio foi um cristão
muito dos bonitos que como qualquer um de nós, teve seus erros e acertos na vida. Esta
é a minha modesta opinião.
Finalizada a intervenção de Alice, Rogério sentiu não ter subsídios para reforçar tal
idéia da sua avó, nem argumentos que pudessem contradizê-la. Optou por ficar calado e
sorrir admirando e bendizendo a Deus pelo coração bondoso e sempre aberto para
entender o outro da sua velha Alice.
XV
Desta vez Sóror Maria não estava com a mão na maçaneta. Rogério ia tocar
novamente a campainha, quando ouviu os passos fortes de alguém se aproximando. Ela
nem estava na casa, foi Monsenhor João quem a abriu, usando muito mais força do que
aquela que seria necessária, a porta. Reconheceu-o de imediato como um dos
seminaristas da Arquidiocese que neste ano haviam iniciado a Teologia.
-É o senhor que irá ficar com Dom Cristiano nesta tarde? Mas o senhor não está
chegando muito cedo?
As duas perguntas pegaram-no de surpresa. Respirou antes de responder. Disse
então que havia vindo meia hora antes porque pretendia continuar folheando uns livros
naquelas duas estantes grandes perto da outra porta.
-Mas você não chegou somente 30 minutos adiantado. Vejo que não usa relógio
porque para a hora marcada faltam ainda 45 minutos. Mas não tem problema nenhum.
A causa, o saber, é mais do que nobre. Bem vindo mas os livros, lamento informá-lo,
terão que ficar para uma outra visita. Estava com o bispo quando a campainha tocou.
Ele me contou então que o aguardava me ordenando para que se fosse você que
estivesse chegando, era para eu levá-lo de imediato até ele. Você, rapaz, deixou Dom
Cristiano curioso por saber o final de uma tal história de batizado feito na sua família
pelo saudoso Dom Karl. E vamos logo porque esta sua visita já me deu um trabalho
medonho. Completou sorrindo enquanto puxava Rogério pelo braço.
Não tendo entendido nada do final da frase do Monsenhor e matutando sobre que
raios de trabalho medonho a sua presença ali tinha gerado para ele, Rogério cruzou o
imenso corredor até chegar aos aposentos do Arcebispo. À porta, com um aceno de
mão, Monsenhor João despediu-se dando a entender que não entraria com ele no quarto.
-Sua benção, Dom Cristiano.
24
�-Deus te abençoe, meu filho. Mas afinal, me diga logo. Como foi mesmo que
acabou a história do batizado do seu pai? Você me deixou curioso.
Nem bem se sentara, Rogério já era incentivado a retomar o relato deixado em
suspenso ao final da visita da semana passada. Cristiano a tudo ouvia com o maior
interesse. Perguntava quando não entendia um determinado ponto e algumas vezes
deixou o nosso relator em dificuldades não sabendo como responder aos
questionamentos sobre pontos que não haviam sido tratados por Alice. Assumiu o
compromisso de buscar os novos dados para repassá-los ao atento ouvinte numa outra
oportunidade.
-Semana que vem então você já terá as minhas respostas?
-Não, Dom Cristiano, infelizmente não poderei estar com a minha avó neste final de
semana. Temo que o senhor vai ter que esperar um pouco mais.
-Eu sei, meu filho. Tenho que ter mais paciência. Nesta altura da vida e mesmo
sabendo que estou queimando o meu último toco de vela, tenho me tornado mais
impaciente ainda do que sempre fui. Imagine só, passei a vida toda lutando contra este
meu modo de ser ansioso, querendo ter tudo à hora do meu desejo e quando penso que
já tenho dominado esta minha inclinação, me pego caindo no mesmo defeito. E você
veja que é defeito pra lá de antigo. Eis que o carrego desde a mais tenra juventude. O
consolo que tenho é que Deus é totalmente misericórdia e terá compaixão comigo, este
velho e doente pecador. Eu espero, meu filho. E continuo rezando ao Senhor para que
me dê paciência. Reze por mim também para que eu vá me convertendo.
Com uma expressão de muita paz em seu semblante, Cristiano havia terminado de
falar. Rogério, admirado da humildade do seu Arcebispo ao confessar o seu defeito,
mais ainda o respeitava. Lembrou-se de Vitor, assustado perguntando-lhe se havia se
confessado com Dom Cristiano.
-Desde aquele instante em que você iniciou para mim o relato do batizado de
Atanásio, queria lhe confessar uma coisa. Só não o fiz antes porque fiquei receoso de
que você se inibisse e não me contasse todo o acontecido.
A curiosidade mudara radicalmente de lado. Neste momento ela estava totalmente
com Rogério. O que poderia ser este fato que Cristiano lhe omitira e que queria lhe
confessar? Vitor retorna inteiro em sua memória no instante em que mentalmente repete
a palavra confessar. O bispo parecia se divertir com a expressão de menino curioso de
Rogério olhando para ele. Dá a impressão de estar retardando por alguns momentos a
tal confissão.
-Sabe, Rogério, quando um padre é escolhido bispo pelo Papa ele deve ser sagrado
por um outro bispo. No meu caso, o bispo que me sagrou foi o mesmo que batizou
Atanásio. Ele mesmo. Dom Karl von Mahler. Veja que mundo pequeno nós temos. O
bispo que batizou o seu pai foi o mesmo que me sagrou bispo.
A cabeça de Rogério rodava forte como se alguma criança a tivesse feito de piorra.
Quando ela foi parando e no que foi apenas o zum de um momento, mas que lhe
pareceu ter sido uma eternidade, foi se dando conta de quão belo era isto tudo que ele
tinha ficado sabendo. O mesmo homem de Deus batizara o seu pai feito da carne e
também o seu pai espiritual. Uma lágrima teimava em não cair no seu rosto e ele rezou
como o salmista: Senhor, como são insondáveis e misteriosos os seus caminhos. E tão
bonitos também, continuou, apropriando-se do Salmo.
25
�-Pedi ao Monsenhor João que buscasse na biblioteca em minha casa a biografia de
Dom Karl. Ele procurou pela casa toda, revirou tudo e não encontrou o livro. Algum
amigo deve tê-lo apanhado para ler e talvez tenha se esquecido de devolvê-lo.
-Ou quem sabe, ainda o está lendo, completou Rogério rindo um pouco
decepcionado. Que bom teria sido se Monsenhor tivesse encontrado e trazido a
biografia de Dom Karl aqui no Palácio. Ela estaria nas minhas mãos e hoje mesmo à
noite já estaria iniciando a leitura. Recordou-se da confissão de impaciência de
Cristiano feita há pouco. Sentiu-se na mesma situação dele. Riu sem graça.
-Pode ficar sossegado. Apesar de esgotado nas livrarias, não é possível que não
encontremos, em toda a Arquidiocese, pelo menos um exemplar do nosso livro. Você
precisa, como eu, também cultivar a paciência.
-Sim, Dom Cristiano, também preciso ter mais paciência. Respondeu, também
sorrindo.
Sóror Maria já aparecera para lembrar-lhe da hora de ir embora e da necessidade – que
ele continuaria não atendendo – de não cansar o Senhor Arcebispo com muita conversa.
Monsenhor João já tinha ido embora, ela lhe disse. Rogério queria, agora que já sabia o
que tinha causado tanto trabalho a ele, reforçar-lhe o empenho em conseguir logo o
livro que contava a vida de Dom Karl. Agradeceu a Deus por ele ter ido já embora. Era
uma ajuda no seu exercício de paciência.
XVI
-Tenho um respeito muito grande por ele. Um homem que foi muito correto e firme
nas suas convicções. O Concílio fez com que ele sofresse muito, meu filho.
-Como o Vaticano II pode ter feito um bispo sofrer, Dom Cristiano? O que eu sei
dele é que foi feito para dinamizar a Igreja, fazê-la mais integrada e participante da
modernidade. Ter as janelas abertas para que entrasse ar renovado, deixando tudo mais
arejado, na bela imagem criada por João XXIII ao convocar o conclave. Em vista disso
tudo, como ele pôde ter sofrido?
-Exatamente por causa disto, Rogério. Dom Karl conheceu e viveu até então dentro
dum modelo de Igreja fechado e muito autoritário. Uma Igreja, já que você falou de
imagem, bem parecida com um castelo, com os seus fossos, muralhas, armamentos e
soldados preparados para a defesa. Os ventos arejantes trazidos pelo Concílio, como
que baixaram toda essa guarda do castelo. Aterraram seus fossos, deixaram abertas as
suas poderosas portas gradeadas. O problema é que Dom Mahler não estava preparado
para tantas mudanças e muito menos ainda tinha sido capaz de, sequer em sonho,
imaginar que um dia elas pudessem vir a ocorrer. Daí vem a sua dor.
-Mas ele como bispo não participou do Vaticano II?
-Sim, ele esteve lá, mas seu grupo, pequeno, não conseguiu – Graças a Deus – se
impor. A onda de abertura e de rejuvenescimento da Igreja naquele momento havia se
transformado numa vaga avassaladora. Eles eram minoria em meio à multidão dos
irmãos bispos que andavam rápido na busca da Igreja de comunhão e participação que
ali estava sendo gerada.
26
�-Quer dizer que havia um grupo que tentou resistir à s mudanças conciliares
propostas?
-É verdade, meu filho, existia uma pequena parcela de bispos que votava sempre no
continuísmo, na manutenção do modelo de igreja vigente no último milênio. Modelo
que podemos chamar de Tempo da Cristandade. Era o modelo do castelo que lhe falei
faz pouco. Desse time, você já sabe, participava o nosso bispo, Dom Karl. É
interessante observarmos que há um movimento neste jogo. Este pessoal mais
conservador que no Vaticano Segundo foi minoria e votava sempre pela continuidade,
havia sido a maioria que no Século XIX promulgara os documentos da Igreja nos
moldes do modelo da Cristandade no Concílio Vaticano I. Nesse Concílio foi feita
como que uma revalidação, uma reafirmação do Concílio de Trento, acontecido no
Século XVI para montar as estratégias de defesa da Igreja frente ao ataque dos
protestantes ao rebanho de Roma.
Não fosse eu um homem de fé, poderia até falar em ironia do destino, mas como
creio no Deus Amor, Uno e Trino, prefiro dizer da abundancia proporcionada pelo
Espírito no novo Pentecostes gerado pelo Concílio Vaticano Segundo, fazendo com que
pudesse haver a volta às origens, á Igreja Mistério com o retorno às Escrituras e aos
Padres da Igreja, como Atanásio, por exemplo que deu nome ao seu pai.
-Dom Cristiano, mas se a Igreja do Concílio no seu processo de modernidade
retornou aos Padres da Igreja, como o senhor me explica o fato de Dom Karl, um bispo
tão conservador, ter oferecido três nomes de Padres da Igreja para o batismo do papai?
-Boa pergunta, Rogério. Não quero passar a impressão que o grupo de Dom Karl era
contrário aos Padres. Não era isto. Eles, muito pelo contrário, os admiravam e
respeitavam profundamente. Eles, os Padres da Igreja, foram dos primeiros a erigir os
alicerces da grande tradição da nossa Igreja e, como você bem sabe, um dos pontos nos
quais o conservadorismo mais se apega é à tradição. A que temos que estar muito
atentos é na leitura que eles fazem dessa tradição. Eles vão até ela e de lá trazem apenas
aqueles aspectos que vão reforçar ou referendar os seus pontos de vista passadistas. O
resgate que acontece dos Padres da Igreja no Concílio Vaticano Segundo é bem
diferente. Ele visa provocar-nos para uma leitura mais profunda e carismática retratada
e preservada por eles da Igreja pós-apostólica e dos primeiros séculos. Uma Igreja bem
mais leve, mais participativa e comunitária, uma Igreja tenda, ao contrário de castelo,
uma Igreja onde os pobres e pequeninos possuíam vez e voz. Longe de mim pensar que
a Igreja dos Padres não possuía problemas. Tinha. E eles eram muitos. O que era
diferente, o que era muito mais bonito era a forma como eram tratados e resolvidos.
Com o envolvimento de todos, com a oração e o discernimento da comunidade inteira!
Cristiano se inflamara, falava alto e sua voz, ressoando pelos corredores havia
funcionado como alarme aos ouvidos de Sóror Maria que chega à porta e, sem que o
bispo a veja, faz para ele um sinal de até logo, desaparecendo imediatamente da mesma
maneira que havia chegado. Não era ainda chegada a hora de enfrentar a freira. Melhor
submeter-se para não correr riscos de ver dificultada a sua visita semanal ao seu pastor
e, mais que pastor, amigo, e mais que amigo, pai espiritual. Era assim que Rogério já o
considerava.
27
�-Dom Cristiano, é uma pena, mas o meu tempo já se encerrou. Quero pensar e
refletir sobre Dom Karl e as tantas coisas que o senhor me ensinou hoje. Quarta-feira
que vem eu volto. Sua bênção e fique com Deus.
-Vá com Deus também, Rogério. Que o Senhor te abençoe e te guarde. Não deixe
de vir na próxima semana.
Cara fechada, de poucos amigos, Sóror Maria da Igreja Triunfante levou-o até a
porta do Palácio. Definitivamente a freira não gostava das visitas do seminarista.
XVII
-Isto é o que podemos denominar como uma epidemia de equívocos. O padre
compreendeu tudo errado. Ele traduziu temor de Deus como terror de Deus. Repararam
como o Deus dele parece querer briga e vingança o tempo todo não refletindo o que é
realmente atributo do Deus de Jesus Cristo, ou seja, o Amor e a Misericórdia? Quando
o vejo fazendo estas coisas que vocês me estão mostrando o que posso sentir é dó dele.
Muita pena. Lembro-me do que mamãe me contava um dia sobre a religião pregada no
colégio onde ela estudou interna. Era um Deus frio, calculista e distante. Com seus mil
olhos vigiava a humanidade procurando pecadores para serem punidos com o fogo
eterno do inferno. Tão diferente, meus filhos, do Deus todo amor que me foi ensinado
pelas irmãs do meu Colégio Bom Pastor.
Mesmo com todo o seu jeito sempre delicado de ir ponderando as palavras, Francisca
não conseguia esconder dos três filhos a tristeza que estava sentindo com as posturas
impróprias, atabalhoadas do Padre Elesbão, novo pároco da Comunidade, com os
jovens e os catequistas.
-Pena do Padre? A senhora deve ter dó é de nós, os leigos.
-Verdade, minha filha. Devemos ter pena dos leigos comprometidos, mas também
do padre equivocado. É muito doloroso e triste tudo isto. Mamãe, a outra avó de vocês,
ficou tão marcada pela imagem deturpada de Deus e da Igreja que ela teve na infância e
juventude, que até o final da vida, sentiu muito medo dele, carregando também uma
grande mágoa da Igreja. Crianças – e Francisca agora sorria – temos que arranjar um
jeito de mostrar a este padre que as coisas não podem nem devem funcionar assim. Com
firmeza e muita caridade, encontraremos esta forma.
-Não precisam contar comigo. Eu é que não volto lá na catequese e no grupo de
jovens nem que Dom Cristiano venha aqui de joelhos, implorar-me. Para mim foi fim.
Ponto Final. The End. Aquela primeira vez que ele me humilhou e me diminuiu na
frente dos alunos, ainda perdoei, mas agora foi demais. Aos prantos, Anete demonstrava
toda a sua indignação .
-É por isto que eu, desde que passei a me entender por gente, não me envolvo nessas
coisas de Igreja. Não vale a pena. Vou à missa aos domingos e chega. Até porque vocês
já imaginaram que escândalo não seria nesta casa se eu resolvesse radicalizar e não ir
mais à missa? Ainda mais com um irmão seminarista. Seria um absurdo de proporções
atômicas. Era Anita que agora falava.
28
�Rogério a tudo ouvia. Por duas ou três vezes teve que se esforçar para conter a boca
e não intervir na fala das irmãs. Melhor deixá-las desabafar. Chegara triste em casa e
aquela conversa, que não era nenhuma novidade para ele, o estava deixando ainda mais
pra baixo. Viera rezando na viagem por Dom Cristiano. Era visível a deterioração
semanal da sua saúde. Recordava o quanto tinha aprendido com ele nesses três meses
em que nas quartas-feiras comparecia ao compromisso de ser companhia para o doente
no Palácio. Da última vez ele conseguiu dizer tão pouco. Além do cansaço provocado
pela dificuldade respiratória ao falar, e agora Rogério entendia melhor a postura de
Sóror Maria da Igreja Triunfante tentando podar-lhe as conversas. Entendia a postura
dela, mas não conseguia de maneira nenhuma justificá-la.
Optara por deixar que Anita expusesse primeiro toda a sua decepção. Depois,
quando estivesse mais calma, iria conversar com ela. Falar-lhe de tantas coisas que
vinha aprendendo no Seminário e desses ensinamentos do Palácio Episcopal, que não
deixavam também de serem proporcionados pelo Seminário. As aulas de vida e de amor
a Cristo e à sua Igreja do bom e velho bispo doente, Dom Cristiano.
As palavras ponderadas de Francisca muito o ajudariam na condução desse difícil
diálogo que iria ter daí a algum tempo com Anete. Lamentou a ausência de Alice.
Como a sua sabedoria lhe teria seria útil agora. A sua velha tinha viajado para passar
uns dias com o filho Marcelo em cidade praiana do Sul do País. Chegavam a ser hilárias
as dificuldades vividas pela família nas tentativas em convencê-la a fazer a viagem de
avião. Havia sido o seu telefonema o argumento final a convencê-la. E nem tinha sido
um argumento. Não sabendo mais o que lhe dizer. Tudo já tinha sido tentado e dito,
Rogério lhe falou apenas que estaria rezando para que tudo corresse bem e que
colocaria a viagem aérea nas intenções da missa que iria haver naquela noite lá no Rato
Molhado.
Lembrado que estava da promessa feita à avó, Rogério via-se incomodado. A
constatação de que ficaria constrangido ao colocar junto às intenções da comunidade
miserável da favela, a cara viagem da avó que estava sendo custeada pela vaquinha feita
na família, o deixava em grande incômodo. Imaginava alternativas para atender à
promessa feita para Alice, sem que fosse ofendida a pobreza imensa da Igreja no Rato
Molhado.
XVIII
Depois de uma hora de muito papo, não havia nenhum sucesso na conversa com
Anete. Tentava se posicionar do lado de fora do problema para poder enxergá-lo de
forma mais completa e chegou à conclusão de que na realidade, não havia conseguido
dizer-lhe nada. Até aquele momento o que tinha acontecido era um monologo. Tivera
que ouvir de novo, entremeado por muito pranto, todo o relato do que vinha ocorrendo
na Pastoral Catequética desde a chegada do Padre Elesbão. Tudo já muito sabido por
ele através dos vários pedidos de ajuda e apoio recebidos ao final dos desabafos dos
muitos amigos e amigas participantes de pastorais na Paróquia a respeito das atitudes do
Padre novo. Eles achavam que, por ser seminarista, Rogério estava em condições de
interceder em alguma esfera mais alta e resolver os problemas da comunidade.
29
�Olhava o rosto molhado e soluçante de Anete enquanto dava um tempo para que
ficasse mais serena e ele pudesse, agora sim, dar início às suas ponderações. Como era
complexo ser Igreja, ele ia refletindo nesse ínterim. Rezava, lembrando-se das tensões
existentes no início da Igreja que estão relatadas em textos do Novo Testamento. Se já
era difícil naqueles primórdios, imagina agora, num mundo muito mais pluralista e
complexo do que aquele em que os nossos irmãos muito mais velhos, orientados pelos
seus Padres da Igreja, viveram.
Entre um suspiro e um soluço da irmã, Rogério falou-lhe da experiência de vida e
de Igreja que estava vivendo nos contatos com o bispo doente. Anete olhou-o com
força, levantando a cabeça. A mudança da estratégia na abordagem com a irmã, não
começando por discutirem sobre o problema gerador daquela conversa, parecia surtir
efeitos. Ela se interessara. Numa dessas últimas semanas Dom Cristiano lhe falava
sobre o papel do sacerdote nas comunidades. Ensinava que havia uma grande
necessidade e isto ele enxergava cada dia mais, dos presbíteros irem formando as
lideranças leigas das suas comunidades para que, aos poucos, eles, os leigos, fossem
assumindo mais os seus carismas e tomando conta de muitos serviços que são hoje
ainda executados pelos padres. Além de estar liberando o sacerdote para dar
atendimento a mais gente, os bispos que fizerem isto nas suas Igrejas, estarão
cumprindo as determinações do Vaticano Segundo e gerando um resgate da tradição
primeira eclesial. A volta àquele tempo da Igreja Mistério, comunidade de participação
e envolvimento de todos. Mistério não no sentido de coisa mágica ou de algo que está
oculto ou seja apenas disponível a um grupo de iniciados. Mistério aqui no sentido do
grande, do imenso, do todo, do infinito. Mistério nos simbolizando Deus que de tanto
amor que é, nós nunca conseguiremos abarcá-lo nas mãos ou muito menos em nossas
inteligências. Esta atitude de abertura vai provocando uma maior agilidade e prontidão
do laicato que não mais, como hoje acontece, se põe numa postura reativa, esperando
primeiro a ordem da hierarquia para dar início à ação. E em muitas comunidades, ele
pensava agora no problema local trazido pela irmã e pelos amigos, ai daqueles leigos
que ousassem assumir um papel mais ativo.
Para sentir com a Igreja há que se ter caridade com os seus problemas e,
principalmente, tem-se que estar vivendo dentro dela. Rogério estava muito à vontade
ao refletir com a irmã sobre as dificuldades que aquela Igreja local estava enfrentando.
É como assunto de família. Acolhemos quando os de casa falam das nossas dificuldades
e defeitos, mas se vem alguém de fora e aponta o dedo nas nossas feridas, não
aceitamos. Fez-lhe bem constatar isto.
Pensava nos porquês do clero de muitos lugares podarem sempre as ações dos
leigos. Lembrava-se dos aspectos psicológicos que carregamos nas nossas mochilas da
vida. Nas diferenças entre as pessoas, suas inseguranças e medos.
Escolhendo sempre a forma mais caridosa, para que Anete não se chocasse, nem
tivesse ainda mais aumentada a raiva e decepção que tinha do padre, Rogério foi
passando à irmã os ensinamentos do bispo e as conseqüentes reflexões geradas por eles
em sua consciência.
-Rogério, eu nunca havia me tocado que Jesus não foi nem padre, nem bispo e nem
papa.
-Nem foi um rabino, Anete. Veja que Jesus não foi um presbítero. Ele foi
simplesmente um leigo integralmente comprometido com o Reino do Pai.
30
�-Como nós, os cristãos de hoje, que tentamos seguí-lo deveríamos ser, não é,
Rogério?
-Isto mesmo, minha irmã, se todos fôssemos mais comprometidos com o Reino de
Deus, hierarquia e laicato, além do fato de que Ele, com o seu Reino, voltaria mais
rápido, nós teríamos uma maior integração dos carismas e dos serviços, não fazendo
mais nenhum sentido problemas como este que estamos vivenciando aqui hoje. No
Novo Testamento não há nenhuma indicação de favorecimento do clericalismo. Somos
todos iguais e perante Deus temos a mesma importância. Os serviços é que são
diferentes. A teologia do corpo de São Paulo nos ensina isto com uma clareza que chega
a machucar os sentidos. Devemos entender que o clericalismo deve ser visto como um
defeito. E note que este defeito não tem fundamento no início da Igreja e nem no Novo
Testamento. É posterior.
-É isto mesmo, meu irmão. Agora, te ouvindo, começo a entender melhor as razões
do padre Elesbão. Ele é fruto de toda uma história, de toda uma estrutura. E não
podemos nos esquecer jamais que Deus o ama muito, não é?
-É claro, Anete. Deus não nos ama pelas coisas boas ou ruins, qualidades e
quantidades, que nós fazemos ou deixamos de fazer na comunidade ou mesmo na vida.
Ele nos ama pelo que nós somos. Simplesmente porque somos suas criaturas, seus
filhos. Aprendi com Dom Cristiano também que, além disso tudo, temos que ter em
conta também que Deus nos ama porque Ele só sabe fazer isto: amar. Lembra que João
nos ensina que Deus é amor? Como pode o amor deixar de amar? Ser cristão é tentar
estar vivendo este amor e o amor se vive em comunidade. Não pode existir cristão
solitário, desgarrado dos demais, nem é admissível que aconteçam nas comunidades
que algumas pastorais funcionem desgarradas do conjunto. Observe que quando as
pastorais começam a atuar de forma separada elas têm uma tendência muito forte em se
conduzir para o conservadorismo e o fechamento.
-Vai ficando cada vez mais transparente o meu entendimento do porquê da ação
desta maneira do danado do Padre Elesbão. Ele considera a Igreja dentro duma
dimensão muito hierárquica, clerical, como você diz.
-Sim, Anete, mamãe tem razão quando nos diz que tem dó do pobre padre Elesbão.
Ele é vítima tanto quanto você e os demais catequistas também o são. Mas veja bem,
não quero dizer com isto que não precisemos ter padres. Afinal, você sabe o quanto eu
sonho com o dia da minha ordenação.
-Uau! Tive uma idéia. Vou chamar aqui a Gilmara, as duas Andréias e a Sandra,
que são as nossas líderes da Pastoral, para que você converse com elas, falando esse
tanto de coisas que você aprendeu no Seminário e com Dom Cristiano. Conhecendo isto
tudo elas terão condições de, como você me ensinou, estarem sentindo com a Igreja,
entendendo a posição do padre e a partir daí, podendo montar um esquema de trabalho
para fazê-lo mudar o comportamento perante a comunidade. E, seu bobo, é óbvio que
eu sei que os padres e a hierarquia são mais do que necessárias. Elas são fundamentais
para a vida da Igreja. Já imaginou a loucura e a confusão que seria se não a tivéssemos?
-Excelente idéia, Anete. Só não concordo com um ponto. Não serei eu a falar com
as suas amigas líderes. Não sou a pessoa mais apropriada para isto. Você é a mais
indicada. Será você quem repassará para elas tudo o que conversamos e refletimos
juntos. Eu terei nesta reunião um papel muito importante, mas será você a executora da
ação.
31
�-Está bem, meu irmão. Já que você estará comigo cumprindo esta incumbência tão
importante, eu topo.
-Não é bem assim. O que farei é importantíssimo, mas... fisicamente, eu não estarei
com você e as suas amigas.
-Deixa de mistério, Rogério. Se não estará presente, como você poderá estar
fazendo algo tão importante comigo? Estará falando com o seu amigo o bispo?
-Não, eu estarei rezando por você, pelas líderes catequistas e pelo padre Elesbão.
Orando para que você, minha irmã, que também como suas amigas catequistas e todos
os cristãos são, pelo batismo, sagrados como sacerdotes régios, seja iluminada pelo
Espírito Santo e possa tocar o coração delas, as suas amigas, para que se convençam da
necessidade urgente de vocês agirem para auxiliar o padre, que além de ter sido sagrado
no seu batismo como sacerdote régio, o foi também pela ordenação, como sacerdote
ministerial, a mudar o seu perfil de atuação. Rezarei também para que o coração do
Padre seja também amaciado e ele comece a agir como um líder dentro duma
comunidade de líderes. Sacerdote ministerial dos sacerdotes régios.
XIX
Rogério não se perdoava pelo ato falho cometido. Em frente a Dom Cristiano, rosto
muito corado, parecendo queimar, buscava uma forma de diminuir o tamanho do que
considerava como a sua grande burrada, um baita dum gol contra. Começaram por
conversar sobre o novo documento de Roma. A pergunta feita ao bispo sobre que
conseqüências tal documento teria a longo prazo, havia encaminhado o assunto para as
posturas dos sacerdotes frente aos leigos. O seminarista esforçava-se para não
demonstrar que estava tratando de uma situação concreta, porque o interlocutor sabia
que ele havia estado em casa no final de semana e lá só havia uma paróquia. Pinçando
com todo cuidado palavra por palavra, lá ia Rogério procurando dar a entender a
Cristiano ser aquilo tudo que ele relatava apenas uma hipótese. Factível de acontecer
algum dia nalguma comunidade de uma diocese qualquer, mas por enquanto, que
ficasse claro que era apenas uma hipótese. O seminarista só não estava contando com a
perspicácia e sensibilidade do seu Arcebispo. Alguma palavra mal pinçada que havia
sido por ele utilizada, fizera ruir, como se castelo de cartas fosse, a construção pseudohipotética engendrada por ele para contar o milagre sem falar do santo, como
costumava filosofar a velha Alice.
-Que pena estar acontecendo isto tudo por lá...
Cristiano havia dito de chofre, deixando que primeiro o embaraço do amigo crescesse
nas infrutíferas tentativas de reconstruir o castelo, ele prosseguiu.
-Preocupa não, meu filho. Não tem que ficar chateado nem incomodado. Tudo que
você me falou como se fosse uma hipótese eu já conhecia como fato real. O que você
me trouxe não tem nenhuma novidade. Parabéns pela forma como conduziu o problema
com a sua irmã catequista. Você também foi um sábio, como diz ser a sua avó.
Com uma expressão bem enigmática que Rogério não soube definir se seria algum ricto
causado pela moléstia, ou porque Cristiano estava a lhe sugerir que as catequistas de lá
da comunidade tinham grande chance de sucesso, ele dera fim à conversa.
32
�XX
O cansaço veio forte. Gostava demais das visitas dos jovens do Seminário,
principalmente daquela visita das quartas-feiras. Este menino tem uma bela vocação.
Que Jesus Cristo o ajude para que se torne um bom padre para a sua futura comunidade
e para a Igreja. Apesar da prostração o bispo nunca reclamava e esforçava-se ao
máximo, o que acabava por aumentar ainda mais a fadiga, para não demonstrar para
Monsenhor João, para os médicos e principalmente para Sóror Maria, o quanto
debilitado ele se encontrava. Cristiano, apesar de tudo, muito sereno, fazia empenho
para adormecer. Tinha a expectativa de que o sonho voltasse.
Acordara tão feliz. Sentia-se tão consolado. Como rira da expressão de espanto de
Sóror Maria.
-Nunca tinha ouvido o senhor gritar. O senhor estava tendo uma alucinação? Esses
tantos remédios... Parece que o senhor chamava pelo seu pai...
-Minha filha, Nosso Senhor deu ao seu velho bispo um sonho maravilhoso de
presente.
As lágrimas escorrendo livres pelo rosto sulcado e muito magro de Dom Cristiano
lhe sorrindo, assustavam ainda mais a freira do que as palavras que ele proferira, depois
de tantos dias mudo e em contradição com o que dizia a ciência. E queria só ficar
relembrando...
Vinha andando rápido, quase correndo, a maleta na mão, talvez chegando de alguma
visita pastoral a uma paróquia do interior, ou quem sabe de uma reunião da Conferência
Episcopal na capital do país. Sentia uma sede imensa. Deixa a valise no chão da sala e
vai direto à copa. Abre a geladeira e neste momento geladeira já não existe mais. O que
há é a porta escancarada dando para comprido corredor como o daí de fora. Lá no final
dele está a jarra, vidro neblinando da água bem fria. Ao lado dela o copo quase
transbordante. A sede é muita e a jarra convite irrecusável. Entra porta adentro e nos
primeiros passos só tem olhos para aquela jarra. Pouco a pouco começa a reparar que
nas laterais do corredor há duas fileiras de grandes cadeiras. Uma fila de cada lado.
Espaldares altos, imponentes. Surpresa. Em cada uma delas há alguém sentado. Sorriem
para ele, mas aqueles rostos não têm olhos. Esburacados são os globos oculares
daquelas pessoas. Tem medo, mas nem pensa em voltar. Morreria de sede se retornasse.
Anda mais rápido. Esforça-se para mirar em frente, mas não consegue desviar os olhos
dos homens que estão sentados nas cadeiras do corredor. Não são só homens. Há
mulheres também, várias. Gente de todas as idades são crianças, velhos, recém
nascidos, adultos, fetos, adolescentes. Carrossel de cores, do preto mais retinto ao
branco mais leitoso, passando por todas as tonalidades de gente que possa existir na
terra. Há roupas luxuosas, há ternos, vestidos de bailes, batinas, hábitos de todas as
épocas, roupas velhas, roupas sujas, roupas remendadas e também corpos nus. Sorriem
e agora já percebe o gesto. Eles estendem a mão como se pedissem. Aperta mais ainda o
passo. Quase trota e consegue enfim olhar adiante. O cansaço já quase no fatal do corpo
é a prova de que já caminhara muito, mas o corredor parece crescer na mesma
velocidade em que anda e o jarro neblinando da água muito gelada continua longe. Na
exata mesma distância de quando abriu a porta da geladeira. Geladeira? Estava tão no lá
33
�longe aquele ato. Presta mais atenção aos rostos sem olhos. Repugnância não sente
mais. Se a garganta não queimasse tanto da tanta sede e o cansaço fosse menor, poderia
até estar sorrindo para eles, mas permanecia sério, vai morrer de sede. Meu Deus, eles
mudaram. Foi olhar um instante para a jarra que fugia e eles agora têm olhos. Amplos
olhares de olhos muito grandes. As mãos pedintes persistem, porém já não possuem
bocas alguns, nem ouvidos outros. Nos lugares onde eles deviam estar só se vêem
buracos escuros, profundos, disformes, emoldurando aqueles rasos olhos brilhantes e
tão escancarados. Olhos molhados de muita tristeza. Precisa correr, pensar nenhum já
não há. A solução é só esta. Andar, andar e mais andar. Rápido, rápido e mais rápido.
Parar é ser condenado a morrer de sede. O jarro continua a fugir. Impossível ir mais
rápido. Trôpego, trombam joelhos, chuta os pés. Cairá em minutos em sua plenitude da
maior exaustão. Derrama-se de suor e ofega. Resfolega como caminhão que sofre
ladeira acima. Sente a morte tocando-o carinhosamente na sede e cansaço de tamanho
do quase infinito. Em meio à multidude das cadeiras ocupadas vislumbra. Há uma que
está vaga. Desaba nela. Olhos cerrados sente a respiração cedendo pouco a pouco às
exigências do coração. Cansaço e sede seguiram em frente porque a sensação de muita
paz e conforto lhe invade cada célula do corpo. A morte? Ela chegou, especula. O
conforto é a prova de que a cadeira que vi vazia e na qual sentei é o colo do Senhor.
Alegrias todas. Quer dançar, cantar, esfuzia. Há música no ar. Tropa de passos batendo
o chão. Abre os olhos enfim. Diante dele a procissão. Avançam cantando os tantos e os
todos da multidão dos que jaziam sentados. Roupas dos mais variados panos não há
mais. Nem pelados eles passam. As vestes são brancas do mais impossível e claro alvar.
Até são capazes de rebrilhar. Os cegos já têm olhos, os surdos escutam e os mudos
cantam. São bonitos, são belos. Caminham em todas as velocidades. Há os que parecem
estáticos e os outros que correm. A maior parte anda. Observa que a massa imensa tem
divisões. São alas diferentes umas das outras e cantam alegres muitas suas músicas.
Imprimindo o ritmo de cada grupo, à frente, coloca-se o estandarte.
As Igrejas em desfile. Todas elas, cada qual com o seu modo de ser. Passam
sorrindo. Acenam, vão gesticulando em mil convites para que entre no cordão. Igrejas
que tanto criticara. Outras que era como se não existissem por não lhe dizer respeito,
aquelas com as quais tanto se identificara lá vem vindo também e passam e vão adiante.
As congregações masculinas, as femininas, as mistas, as extintas, as nascentes, os
institutos seculares, a cúria romana, os leigos todos eles dentro das suas pastorais e
serviços. O que é isto agora? Que alas imensas são estas que nem reconheço? Mais
perto os estandartes vão se dando a conhecer se apresentando fazendo-lhe reverência. O
povo de Jesus, os nossos irmãos mais idosos vem passando nas suas doze vezes doze
tribos que hoje vivem.Os irmãos separados, ortodoxos, luteranos, batistas,
presbiterianos, metodistas, pentecostais, assembléias, universais, neo-pentecostais, e
tantos outros. E novas nuvens de gente vêm chegando e passam bailando e vão
cantando outros tantos ritmos. Povos e povos, do mundo, os africanos, orientais,
australianos, índios. Outros tantos mil de milhões. Budistas, xintoístas, muçulmanos,
espíritas e os demais integrantes todos das totais confissões vividas e que ainda vão um
dia acontecer. E vem e chegam e passam e vêm mais outros tantos de gentes. Nos
estandartes deles só a representação do Pai. Naquele outro oceano de pessoas, nem
Deus há e não cantam e nem dançam. Olhar de periscópio rodando que giram na busca
de encontrar a paz do Amor.
34
�O corredor, semelhante à cena da travessia do Mar Vermelho pelos judeus, vai se
abrindo. Não para de se expandir. Agora fogem rápidas uma da outra as paredes que até
há pouco se postavam tão próximas. Corredor da jarra neblinante, do copo com água
transbordante, das cadeiras, dos homens todos sentados, do grande desfile para ele,
somente ele, Cristiano, o menor servo do Povo de Deus assistir e abençoar já não há
mais e aí se dá conta de que tinha abençoado, uma a uma, com o sinal da cruz as alas
todas da procissão imensa. Sua cadeira, helicóptero sem hélices, paira sobre a praça
ampla. Sem beiradas que se pudessem mesmo do alto enxergar de tão imensa. As alas,
onde estão as alas? Pergunta-se Cristiano. Rosto brilhando da muita luz de Deus,
procurando da cadeira dentre aquelas primeiras que passaram, as que mais prezava.
Queria reconhecer amigos, confrades, líderes, gentes enfim com as quais tinha algum
tipo de afinidade. Busca lugar onde não seria necessário nem falar porque ao menor
olhar o seu querer já se punha conhecido. Grupos desses, grupos outros das
eclesiologias não tão simpáticas e das antipáticas, não encontra mais. Perderam-se na
multidão do todo de Deus, Cristiano reconhecia. Olhava reparando mais, apertando os
olhos para captar os detalhes, não perder nada. E eis que diante dele o pesadelo é o mais
lindo sonho. O sonho da maior esperança: O povo de Deus estava voltando e na infinita
praça inseria-se nas todas alas desfiladas. Reconheciam-se todos, lavados que tinham
sido pelo sangue do Cordeiro. Lá do alto Cristiano a tudo via. E juntavam-se e
embolavam-se, e coloriam-se mais ainda e punham tudo em comum. Olhos para o céu,
à voz plena, gritou: Pai, vede como eles se amam.
XXI
Não sonhou mais. Desejou até que fossem aumentadas as doses dos variados,
multiformes e coloridos comprimidos que a freira nos exatos horários prescritos lhe
apresentava, na esperança de que ela estivesse certa e de que tudo acontecera por causa
duma alucinação, causada pelo componente de algum daqueles remédios, ou, quem
sabe, pela mistura deles todos no seu corpo. Veio o remorso. Como poderia nomear
como alucinação esse vislumbre de paraíso que o Senhor havia lhe propiciado na sua
infinita misericórdia? Tudo era graça. Tudo é graça, rematou Cristiano.
Lamentou não poder contar para Rogério o sonho. Com todos os detalhes e
contradizendo tudo que afiançara a medicina, que garantia ser impossível que ele
pudesse falar no estágio avançado da doença em que se encontrava, Tim-tim por timtim , o amigo foi cúmplice de Cristiano, sabedor que agora ele já era do seu lindo
sonho.
-O rosto brilhante, sua paz e imensa alegria, meu bispo, são provas de que o Senhor
Deus lhe concedeu um trailer da transfiguração que no céu o senhor terá da forma
completa e eterna. O velho arcebispo tentando sorrir, num esgar se esforçava para dizer
algo. Não conseguiu. Lágrimas desfilavam pelos vincos do seu rosto macilento. Fechou
os olhos, ciente que era de que na terra não havia mais nada que necessitasse dizer.
Sentado ao seu lado, Rogério meditava sobre o que Cristiano lhe compartilhara.
Hora vencida, nem espera Sóror Maria chegar, levanta-se e pisando o chão com todo
cuidado, sai do quarto no instante mesmo em que na outra extremidade do corredor
aponta o vulto da freira no seu hábito pesado. Bem amigável agora. Acostumada que
35
�está com a presença semanal do seminarista ali no Palácio e, só Deus sabe, porque
também sente que o Senhor Arcebispo gosta muito da presença dele. Indaga o que ele
está achando do doente. Diz estar preocupada porque está se alimentando muito mal. O
doutor a havia alertado que chegaria o momento em que ele não teria mais condições de
mastigar e engolir. Há já mais de um mês só tomava líquido. Sentia estar chegando a
hora final. Ao mesmo tempo e deve ter sido milagre, ele falara. Primeiro gritando
chamando por seu pai. Depois, ele chegou a conversar comigo, ela dizia com muita
ênfase. Rogério confirmou também estar reparando a piora sensível do quadro a cada
semana, mas não comentou mais nada sobre as observações da freira. A irmã entregalhe um envelope gordo, pardo.
-Monsenhor João recomendou-me que lhe entregasse este pacote. Disse que é um livro
e pediu que eu lhe reforçasse que é um empréstimo.
Não consegue definir o sentimento quando sai do Palácio. Tristeza, coração muito
apertado pela constatação de que o fim a passos céleres se aproximava e a alegria pela
visão que Cristiano tinha tido em sonho da confraternização universal, quando todos
iam se misturando e se tornando um no amor. Povo que já não era povo, que havia se
transmudado em um Todo de Deus.
Comenta com Vitor e Mário as dificuldades ainda maiores do bispo em estar se
comunicando. Surpreso, constata que há bem mais de um mês Cristiano não mais lhes
dirigira a palavra. Disfarça a emoção que sente na descoberta uma vez mais do quanto
seu amigo gostava e confiava nele. Do quanto ele estava se esforçando para passar-lhe
tantas coisas bonitas da sua vida e da Igreja que ele amava tanto e que Rogério, fruto
dessas tantas conversas aprendera a amar muito mais. Vai para a capela e lá, sozinho,
reza e chora e ri diante do Sacrário. Acorda com frio, encolhido no mármore branco do
chão do altar. Adormecera pensando no pedido – do qual rira e também chorara em
frente ao Cristo ali na forma do pão – feito por Cristiano naquela tarde. Tentou até obter
dele mais orientações, mas o doente àquela hora já estava no limite da exaustão e já era
algo que a medicina não conseguia explicar que estivesse falando. Só completou um
gutural “se vira”. Ele se viraria. No quarto, como pôde esquecer? Vem a lembrança do
pacote. Rasga o papel pardo e na capa do livro velho está o retrato majestático de Dom
Karl von Mahler. Nem bem começara a folheá-lo e um zumzumzum do lado de fora
toma a sua atenção. Vários falam ao mesmo tempo, sem preocupação com o horário de
silêncio. Coração no tumtumtum bem forte. Tem um pressentimento e levanta-se num
salto e num átimo era como se já soubesse de tudo: Dom Cristiano Nicostrato de La
Guardia já estava no colo amoroso do Pai que ele tanto ama.
Retorna à Capela e deita-se novamente no piso frio. Agradece ao Pai pela vida de
Cristiano. Dá graças ao Filho pela santidade do bispo e bendiz ao Espírito por ter
inspirado nele o oferecimento ao voluntariado para servir ao Pastor doente. Nos grandes
quartos do Seminário, no alarido da notícia quente todos se vestem preparando-se para
irem velar o corpo na Catedral. Padre Heli já pusera alguns seminaristas no seu encalço.
Vieram encontrá-lo deitado na Capela. Já fazia parte do saber de todos que nesta tarde,
ao contrário dos dias e semanas anteriores, Cristiano havia conversado muito – e com o
seminarista – apesar dos médicos terem garantido para Monsenhor João que o seu
aparelho fonador já se encontrava em razão da doença, irremediavelmente obsoleto.
Sóror Maria, em contido pranto, a todos ia contando tal fato, posto em sua conta como o
primeiro milagre do Senhor Arcebispo.
36
�XXII
-Senhores, os ossos que me trouxeram não são, definitivamente, os do bispo que
vocês enterraram na área dos indigentes do Cemitério da Paz há três anos. Esses são
ossos de um homem jovem, na faixa entre vinte e trinta anos de idade e de baixa
estatura, ao contrário de Dom Cristiano que vocês me afiançaram, tinha setenta anos e
era bem alto. Outra prova que lhes trago está na foto. Vejam. Este buraco no crânio foi
provocado por uma arma de fogo. Reparem que a bala entrou um pouco acima da nuca
e saiu bem aqui. Reparem agora na segunda foto, junto ao globo ocular.
O legista, enfático e direto, não deixava margem a nenhuma dúvida.
-Meu Deus! Íamos sepultar na Catedral de Nossa Senhora de Bom Sucesso os ossos
de um outro homem! Se Dom Cristiano nos tivesse autorizado a enterrá-lo num caixão
melhor, que fosse de madeira, ou que pelo menos estivesse vestido com os seus
paramentos episcopais. Aí sim, haveria alguma possibilidade de o encontrarmos
naquele mar de ossos encobertos pela terra, mas daquele jeito em que foi posto,
qualquer tentativa de encontrá-lo seria uma tonta loucura.
O novo bispo, Monsenhor João e Padre Heli, abismados com a descoberta, ouviam
aquele relato. Eles eram sabedores de que com alguns poucos anos do enterro os ossos
da área pobre, daqueles cujas famílias não tinham tido condições de comprar da Santa
Casa, o pedaço de terra onde os seus queridos foram postos, à medida em que fosse
havendo a necessidade da abertura de novas covas, seriam exumados e colocados na
vala comum. Era então a hora de colocarem em prática o plano desenvolvido ainda
quando Dom Cristiano era vivo e teimava em ser colocado em meio aos pobres e
miseráveis. Na secretaria da Cúria, buscaram a papelada do enterro e encaminharam o
pedido da exumação dos ossos do bispo para trasladá-lo até aquele lugar já reservado na
nave da Catedral, conforme rezava a tradição arquidiocesana.
A primeira grande surpresa, foi quando se deram conta na administração do Campo
Santo de que possivelmente um grupo de vândalos, havia embaralhado as placas
numeradas identificadoras dos defuntos, em toda a quadra onde havia sido posto o
corpo de Cristiano. Monsenhor João, sempre orgulhoso das suas competências
matemáticas e, de muita servidão naquela hora, geográficas, não se avexava com o
problema surgido. Garantia que iria encontrar com toda certeza o lugar exato onde
repousava o corpo do pastor. A constatação por todos de que ele estava redondamente
enganado estava exposta ali pelo legista mais famoso do país e isto o fez ficar com cara
de garoto abobado, o que fez Padre Heli rir.
Dispensado o médico, chega pelo bispo a terceira surpresa advinda do plano
frustrado de traslado dos restos mortais. O bispo novo estava decidindo que no espaço
já definido e aberto dentro da Catedral fossem desde já guardados aqueles ossos do
homem que nem sabiam se seria de um batizado. Ele queria ser enterrado junto com
eles. Aqueles ossos de um indigente, um jovem que tivera morte violenta. Executado,
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�havia confirmado o especialista. O tiro foi dado á queima-roupa e por trás do corpo.
Pobre homem. Talvez vítima das lutas entre os traficantes, quem sabe, morto pela
polícia. E que não fosse dada nenhuma publicidade ao fato, ponderou, finalizando a
reunião e mirando a caixa com os ossos que seriam seus companheiros no chão à sua
frente.
XXIII
No estágio rural que cumpria na nova paróquia de Padre Elesbão, Rogério não
conseguia esconder a ansiedade. Receava que tivesse feito um mau trabalho e que, por
causa dele, a turma do Monsenhor tivesse descoberto os restos do seu amado amigo.
Poucos dias antes de viajar, ficara sabendo pelo Padre Heli, do projeto de exumação dos
ossos.
Como se tivesse sido ontem, lembrava-se de quando o bispo naquele dia lhe pedira
para que deixasse acontecer alguns meses do seu passamento e fosse ao cemitério para
lhe prestar um último e pequeno trabalho, como dissera nas palavras já truncadas e que
aos trancos ia emitindo. Céus, ele estava coberto de razão. Duvidara muito daquilo que
o bispo lhe dissera. De que tinha muito receio de que passado um tempo iriam buscar os
seus ossos para que fizessem parte da composição do subsolo da Igreja, ele havia dito
com um pouco de ironia.
Na ligação para o seminário vem o alívio. Fica sabendo por Mário que vazara a
informação vinda do Palácio, de que os ossos encontrados definitivamente não eram os
procurados. Desliga, sorri, agradece a Deus. Suas preces foram ouvidas e rememora...
O vento frio, de fazer tremer colunas, a neblina forte e o horário muito cedo, eram
todos argumentos para que alguém mesmo mais corajoso decidisse adiar uma possível
ida ao da Paz àquela hora. Na pilastra do lado esquerdo da portaria, certificou-se do
agendamento do primeiro enterro do dia. Três horas depois. Dia perfeito, meu amigo,
falou para si mesmo, pensando em Cristiano. Num pequeno papel levava no bolso os
números já decorados da quadra e sepultura que buscava. Nada se enxergava a mais de
uns dez metros. Chega ao lugar e rapidamente começa a arrancar do chão as placas
numeradas e feitas em forma de cruz, como se aquilo fosse alguma colheita e que já
estivessem maduras aquelas hastes. Faz um primeiro molhe delas. Coloca-as no chão,
três fileiras adiante. Em poucos minutos, em toda à volta, vários montes de cruzes
numeradas jaziam no chão. Meia hora depois, em toda a extensão da grande quadra
somente uma cruz permanecia de pé. Assustado com a absoluta calma que sentia,
ajoelha-se diante dela e reza para São Cristiano. Sim, ali estava a relíquia de um grande
santo. Não eram os fiéis que reconheciam os seus santos nos tempos dos Padres da
Igreja? Pois ali estava, pela última vez identificado, o amigo e santo bispo. Levanta-se.
Com cuidado e reverência, colhe a última cruz e a mistura num dos tantos e tantos
feixes deitados na tiririca que crescia viçosa por toda parte, quem sabe porque adubada
pelos tantos corpos. Ato contínuo vai plantando, aleatoriamente, aquelas cruzes todas.
Lembra do sonho e se pergunta se aqueles homens, mulheres e crianças guardados ali e
que haviam falecido nos meses e dias antes da morte do amigo não estariam também
entre aqueles tantos sentados no corredor imenso. Pois sim, é claro que lá estavam e
depois também era obvio que faziam parte daqueles que desfilavam no carnaval
imenso, dançando e cantando rumo ao Pai. Cansado, mas muito feliz, vê que as cruzes
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�já estão novamente de pé. Replantadas que foram todas. Necessário fazer um teste antes
de ir embora. Procura o lugar em que havia estado de joelhos há pouco e não mais o
encontra. Missão cumprida constata aliviado. O suor banha a roupa, sente-se extenuado.
Havia se virado. Os restos do seu bispo e amigo permaneceriam na vala comum em
meio aos pobres que ele tanto amara. Olha para cima e acena para o céu todo cinza, sem
nem uma risca de azul. Ele lá estaria rindo, apontando-o e contando ao povo que lá no
alto se transformara no Todo de Deus, sobre a peça que pregara em Monsenhor João e
na sua turma.
Fernando, boa noite.
Até que enfim, posso dar-lhe uma resposta. Não tive nenhuma dificuldade
em
ver o seu trabalho, ler com a calma que desejava, reler nessa tarde o que
gostaria de retomar.
Nada tenho a acrescentar. A visão de Igreja que queremos transmitir (e
que é
a que acreditamos) faz parte deste cenário do Dom Cristiano e do
39
�vislumbramento do seminarista Rogério.
Na verdade, não posso fazer uma análise eclesiológica, mesmo porque nem
teria as ferramentas. Li, rapidamente, "cenários da Igreja" do Pe.
Libânio
para fazer alguma comparação e, de fato, o texto está bem colocado.
Por mim, meu amigo, com a "incapacidade" de servir melhor, nada há no seu
texto que deturpe a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, assumindo também
as
nuances próprias de sua hierarquia.
Toca adiante.
Um abraço, agradecendo porque você me fez amar mais ainda essa Igreja.
Deus o abençoe.
Gilberto, sj.
Gracias, Fernando, por tu lindo trabajo.
Me gusta tu estilo. Felicitaciones.
Nos vemos en Quito. Un abrazo para Carmen
José Luis
Parabéns Fernando!
Acho a forma como você tem escrito os trabalhos muito interessante e acho
que vai ajudar muito quem lê.
Um beijo Ana Cristina
40
�
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Programa Magis
Description
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Trabalhos (monografias, sínteses) apresentados no Magis por participantes do programa. Também inclui referências para o curso.<br /><br /><em>El Programa de Formación Magis se realiza en la CVX América Latina desde 1997 (el primer encuentro intensiva se realizó en Lima-Perú desde el 1 de enero hasta el 15 de 1998). Más que un curso es un proceso de formación integral de 3 años y medio, que desarrolla 1 etapa preparatoria y 3 Módulos: Cristología, Eclesiología y Espiritualidad Laical. Cada módulo cuenta además con temas especializados en ética cristiana, discernimiento socio-político, discernimiento para la misión, espiritualidad, sexualidad en tiempos presentes, análisis de la realidad, y otros más.</em>
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Um recurso composto principalmente de palavras para leitura. Exemplos incluem livros, cartas, dissertações, poemas, jornais, artigos, arquivos de listas de discussão. Note-se que facsímiles ou imagens de textos ainda são do gênero Texto.
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Title
A name given to the resource
O Todo de Deus
Creator
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Cyrino, Fernando
Date
A point or period of time associated with an event in the lifecycle of the resource
30/05/2010
Subject
The topic of the resource
Teologia pastoral
Description
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O Todo de Deus é um conto retratando a caminhada de um jovem com seus conflitos, dificuldades e descobertas na fé.
Language
A language of the resource
pt-BR
Publisher
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Programa Magis - Magis II
Format
The file format, physical medium, or dimensions of the resource
doc
Type
The nature or genre of the resource
Conto
Source
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Programa de formação teológica da CVX Magis - Magis II
Magis 2
Magis II
Pastoral
Teologia
Teologia cristã
Teología cristiana